“Não me venha falar da malícia de toda mulher1”: Ou: sintetizando dor e reconhecendo as “delícias” de sobreviver a ela.

“Não me venha falar da malícia de toda mulher”:

Ou: sintetizando dor e reconhecendo as “delícias” de sobreviver a ela.

 

Por Luciana Pinto

Em memória de Ana Luísa Fagundes, minha amiga tão querida.

Que se estiver vendo isso de algum lugar,

estará feliz em ver reforçadas nossas lutas e aprendizados.

Para Marcelo Matos, que criou só pra mim a ideia de como é ter amor de irmão.

Para Moya, amiga d’além-mar,

que me fez os primeiros curativos.

Salvador, BA, maio de 2013.

 

Há um ano e dez meses atrás fui estuprada em uma praia. Estava com um casal querido, e fomos “amistosamente” abordados por um nativo, que pouco tempo depois nos apontou uma arma, dando-nos apenas o espaço da companheira de meu amigo fugir para buscar ajuda. O alvo era eu. Não era um assalto. Com o passar do tempo, o que parecia um duelo de machos teve seus rumos mudados. Não sei com que inspiração consegui negociar minha vida e certo grau de integridade física. O que me garantiu forças pra correr após me livrar daquelas mãos perversas, conseguindo dirigir até em casa.

Depois desse ocorrido, passei muito tempo “pedindo socorro”. Em todo esse tempo, busquei formas de lidar com isso. Denunciar, falar, silenciar – para quem? Quando? Onde? Como?

Foram perguntas que me torturaram por muito tempo. Escrever foi uma explosão motivada por uma discussão de mesa de bar. Ali, tocou-se indelicadamente em uma ferida que ainda precisa transitar entre ataduras e exposição ao sol, para fortalecer “os poros de uma pele machucada”. A conversa, a tentativa de organizar o sentimento, a escrita, o reconhecer que existe dor, a interlocução com o/a outro/a foram e são movimentos que favorecem um caminho para ir me distanciando emocionalmente dessa marca.

Do ponto de vista do que vivi e senti, a primeira coisa que percebo é que não falar sobre a violência sofrida, suas reações e consequências reforça a tendência social que nos responsabilizam – sutil ou abertamente – por provocar a agressão vivenciada. Tendência essa que defende a ideia de que somos nós quem nos expomos, quem vacilamos, quem não nos preservamos. Enfim, sendo assim, seria nosso o papel de evitar, preparando-nos cotidianamente para combater a violência a qual estamos ameaçadas. Como se o desrespeito humano que isso implica se tratasse de um problema individual, que se resolve na relação entre a vítima e agressor. O fato, porém, é que nenhum desses “preparos” define as condições e formas de alguém reagir, e assim, estar ou não capaz de resguardar a própria vida diante de um iminente perigo, ou definir entre a vida, a gravidade da sequela ou a morte.

No pós-choque e na vivência do trauma inicial, o silêncio me permitiu uma sobrevivência emocional diante da necessidade de lidar minimamente com o que me aconteceu. Com o passar do tempo, pairou em mim uma atitude de não querer “incomodar” a possíveis ouvintes. Assim, muitas vezes me flagrei num discurso de suposta “proteção das relações”: “não falo para não tocar na ferida alheia, com a minha própria ferida”. Só muito depois me dei conta de que não falar sobre a violência sofrida adoece e reafirma a tal culpa que a sociedade nos impõe.

Foi a partir de então que e a opção por falar ou não foi se tornando um objeto de corresponsabilização entre mim e o/a outro/a. Um acordo entre uso de bom senso da minha parte, (na hora de escolher o momento e o/a interlocutor/a), e a simplicidade de quem me escutava (em assumir seu desconforto em ouvir). “Tudo bem se você não quiser falar”, ouvi certa vez de uma amiga. Do lado de cá, só pude responder: “para mim também é tranquilo se é difícil para você escutar”. Mudamos de assunto, mas nos corresponsabilizamos pelos nossos limites.

Ao mesmo tempo, me assumir vitima de uma violência é diferente de apostar na revitimização de quem deveria acolher, no contexto do sistema de atendimento a vitimas de violência no Brasil. Qualquer mulher diante das da violência sexista – É SIM – vitima de um fenômeno social que não escolheu viver, e pelo menos no momento da agressão essa pessoa é vitima. Mas vale cuidar para que não incorramos no risco de desqualificar a dor alheia em função das cobranças pessoais sobre qual seria o “procedimento adequado”. Afinal, no momento exato em que tudo aconteceu, salvar e preservar minha vida foi mais forte e instintivo que qualquer argumento político, visão de mundo, ou imaginário de – “o que seria certo fazer durante e depois?”. Porque ao final, todo mundo sabe o que fazer do conforto de uma cama quentinha. E muitas vezes o mais fácil é tão somente apertar o controle da TV e mudar o canal.

Isso, para dizer que a denúncia é um caminho de decisão da mulher. No meu caso, não denunciar foi talvez uma das decisões políticas mais difíceis da minha vida, mas havia uma escolha entre mim e o outro. Precisei me perguntar por vários dias seguidos se a denúncia (e todo o processo que ela implica) traria de fato benefícios para mim, ou só serviria para satisfazer a expectativa social da ação adequada em um caso como esse. Precisei me perguntar: “qual seria a luta!?” Na minha situação, vivendo sozinha em outra cidade e fragilizada demais para me expor, escolhi evitar a denúncia para não enlouquecer. Seguramente não teria estrutura emocional para vivenciar o passo a passo de um inquérito policial. E reviver tantas vezes mais a violência sofrida. Bem, ainda hoje acho essa escolha completamente legítima, e tão fruto do meu poder sobre a minha vida, quanto àquela decisão de quem opta por denunciar.

Naquela situação, para acomodar a minha dor, eu só tinha a mim, por mais que os afetos estivessem por perto, esse é, por definição, um processo solitário. Cada dia é um passo: os pavores vão desaparecendo gradualmente, num tempo que não é contado pelo relógio. Vão se convertendo em outras coisas, nos transformando, mas podem se apresentar de novo em qualquer situação que o corpo suponha ameaçadora. Viram medos, receios, e quem sabe um dia só lembranças. Mas não dá pra seguir vivendo insensível a tudo isso. A busca por aquietar as consequências da violência, para mim está vinculada à ideia de reconhecer os limites de uma sequela emocional, e assim, encontrar formas mais distanciadas de lidar com todas as sensações e sentimentos que esse trauma ativa.

Quase dois anos depois, novas dúvidas surgem, e me pergunto agora: qual o distanciamento emocional necessário para encampar um debate sobre um tema da violência sexista, que não pode, pelo menos para mim, ter como base apenas os dados da última estatística? Ao mesmo tempo, qual a minha condição atual de abrir mão do discurso de que “só sabe quem passa”, para considerar as reflexões mais atentas e sensíveis, e ao mesmo tempo impor limites às aberrações machistas que se escuta sobre o tema?

O que existe hoje é a minha possibilidade de falar sob outra ótica. Para sempre, minha posição sobre esse tema terá as cores e às tintas de quem reconhece e nomina as violências que viveu, e acolher isso pode ser doloroso, mas também é libertador. Ter essa clareza é um exercício diário. Perceber quem me tornei depois de tudo, e inclusive por isso me respeitar.

Sigo olhando o que se apresenta a cada dia, entendendo cada situação em que o medo se reacende ou se minimiza, como possibilidades de avançar em processos de distanciamento do trauma. Seria muito difícil lidar com isso se não percebesse assim. Perderia o sentido, amargaria, apertaria o peito, angustiaria. Ainda estou no tempo de expor a ferida ao sol, de deixar as cascas saírem. É desconfortável estar em carne viva. Paciência. Por outro lado, é bom perceber que as partilhas possíveis, os colos e os abraços aliviem o ardor que tudo isso causa. E assim continuo, colocando os remédios que a vida dá, até que essa tal ferida seja somente uma cicatriz, quem sabe um dia disfarçada por uma bela tatuagem, ou por uma pele bronzeada por um lindo sol de verão.

 

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