Carta para mulheres negras: “Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta.”
*Por Ana Paula Rósario
Nascida em Itabuna (BA) eu, Ana Paula Rosário, filha de dona Maria José Santos, irmã de Poliana Rosário, tia de Ana Clara, Ana Carolayne e Thifanny Vitória (cinco dias de nascida), uma família de mulheres negras. Vim de Itabuna para Salvador aos 16 anos, em 2012 e não foi uma viagem planejada, mas sim uma viagem cheia de medo e tristeza. Medo por não saber para onde viria e pela tristeza de largar minha família sem saber quando iria poder voltar, esse foi o resultado das minhas escolhas, do envolvimento com drogas.
Menina que já tinha vivido de tudo um pouco, cumpria medida sócio educativa e ao passar do tempo as pessoas que mim acompanhava (Equipe técnica CMSOED RECANTO) acreditava que seria possível a minha resiliência, em meio as idas e vindas acabei sendo ameaçada de morte, por uma pessoa que um dia eu amei, esse foi o maior choque de realidade que eu já tive em toda minha vida, choque esse que mim fez/faz ser forte hoje.
Nesse cenário de desespero minha mãe correu contra o tempo, contra a minha morte, lutou com todas as forças para que eu fosse inserida em um programa de proteção, e fui. Precisei largar tudo e todos e ter somente uma certeza que do dia 05/03/12 eu caminhava sozinha aos 16 anos. Chegando em Salvador fui morar em um abrigo localizado no bairro de Mata Escura, na Acopamec- Casa Lar. No dia em que eu cheguei pensei: ‘’ chegou meu fim aqui’’! Comecei a chorar e pedir para voltar, mas eu não tinha para onde voltar, então resolvi viver a minha realidade naquele momento.
Logo quando cheguei uns três dias depois conversei com uma mulher e era uma mulher negra, Nevidalva Santos, psicóloga e naquele momento foi a primeira mulher negra que eu vi e não era empregada doméstica, eu não sabia se me identificava ou se chorava e eu mim identifiquei tanto que todos os dias queria conversar com ela, mas não podia porque eu não era a única no abrigo.
Eu acho que todas as pessoas que passou e passa em minha vida, ninguém além de minha mãe, nunca acreditou e apostou tanto em mim como ela. No abrigo ela sempre ia na casa que eu morava, almoçava e conversava com a minha educadora (uma das minhas mães) Tia Rosa, exemplo de mulher e de doação. Tia Rosa tem 20 anos exercendo a profissão de mãe social, mulher negra que me ensinou a pegar no garfo, a falar, a cozinhar …. Falando assim parece que eu era criança, mas eu tinha 16 anos.
Na equipe também tinha uma assistente social, Nivea Sacramento, que eu amo demais e agradeço pela dedicação, por me inserir em outros espaços. Também tem a irmã Rafaela Corvino que muito mim puxou a orelha e quando eu mais precisei ela me deu a mão. Tive varias outras mães sociais e acho que esse tempo que morei no abrigo, serviu para que eu aprendesse a lidar com as perdas, pois as vezes a equipe mudava e a gente tinha que se adaptar com a nova equipe, a mesma coisa era com a equipe do programa de proteção.
O tempo passou e muita coisa aconteceu. Fui inserida na escola, em curso profissionalizante de culinária na Acopamec, quando nessa nova experiência conheci Fernando Filho, um homem negro que é formado em letras, falo das formações acadêmicas porque para mim naquele momento era novidade ver pessoas negras formadas. Esse cara mim convidou para participar de um grupo de discussão social e político, o Conexão Cidadã/Conexão Vida, permaneci nesse grupo quatro anos. Lá ele mim provocava e incentivava a ler. Eu sempre gostei de debater, foi então que fui criando amor pela leitura e percebi qual era o meu papel na sociedade. Percebi também que nós não somos ensinados a estudar, muito menos a ler e escrever.
No processo fui mim destacando, evoluindo e Neve (Nevidalva Santos) conversou comigo, lembro como se fosse hoje e ela disse: “ Você vai começar a trabalhar. Estou confiando em você.” Ela sempre foi e é muito rígida, fala forte e eu ficava até com medo de encontrar ela quando eu aprontava, ela sempre foi a pessoa que procurava/procuro para chorar no colo, ela é muito forte e eu queria ser igual a ela.
Quando fui para meu primeiro emprego, me descobri negra, sim me descobri, pois, sempre acreditei que era morena. Fui trabalhar no Odara – Instituto da Mulher Negra como menor aprendiz e quando cheguei fiquei surpresa, feliz e maravilhada porque no instituto só tem mulher negra e minha primeira conversa foi com Valdecir Nascimento, mim acolheu e apresentou a todas as mulheres. Aquela foi a primeira vez que eu tinha conversado com uma pessoa, fora as pessoas da instituição que não desconfiou de mim e não olhou como outra pessoa qualquer, sem querer saber porque eu morava na instituição, porque isso, porque aquilo, a pessoa realmente não tem noção de quantas feridas se abrem com certas perguntas, mas ela sentiu que não era bom fazer certas perguntas naquele momento.
No começo eu ficava bastante com Erika Souza conversava muito com ela, acho que eu enchia o saco dela, mas ela sempre atenciosa, já Daniele Bitencourt, essa sempre agitada, gosto da simplicidade dela. E aí conheci Naiara Leite eu sempre quis ser jornalista, mas achava que não era possível até conhecer ela, poxa a mulher é um furacão. Jornalista, negra, gorda, sapatão, bonitona e resistente. Então eu pensei poxa eu vou ser jornalista.
Nessa jornada ”Odara” veio Emanuele Aduni vaidosa, negra, mestra, enfermeira e Maísa Vale com um rasta enorme professora, poderosa, ouvi ela falar parece que o mundo acabou e só ficou ela falando, é bom demais! Contar resumidamente minha historia é necessário, pois, é possível perceber o quanto as mulheres negras que passaram pela minha vida foram e são importantes para minha formação.
Hoje eu sou feminista, ativista e continuo no Odara- Instituto da Mulher Negra. Acredito que sou mais forte pela experiência e pela convivência com as mulheres negras. Na Marcha de Mulheres Negras, em 2015, eu tive contato com varias jovens e mulheres que compartilharam comigo suas histórias, conquistas e lutas, percebo que nós temos um sentimento de irmandade enraizado em nós, não vejo outro sentimento a não ser o de irmandade, porque se subimos puxamos a outra, se uma entra em uma “briga” todas entram, se uma não tem “ninguém”, passa a ter milhões de irmãs.
Eu me sinto acolhida e agradecida a esse movimento de Mulheres Negras que todos os dias apresenta coisas e alianças novas para mim. Esse movimento que acredita na minha capacidade de liderança, mesmo eu sendo de uma geração mais nova que vem “ tombando” por aí.
Como dizia Luiza Bairros: “a homenagem só é válida se cada uma e se cada um efetivamente incorporar aquilo que é o legado de quem está sendo homenageado”. E eu me sinto “incorporada” pela força e pela coragem que é enfrentar o machismo, o racismo e o sexismo.
Nós, jovens negras, temos a obrigação de dar continuidade a esta luta e fazer da força de vocês a nossa. Sou privilegiada por conhecer e conviver com mulheres negras empoderadas, que me permitem beber de uma água que é sagrada chamada conhecimento. Essa é minha humilde cartinha para vocês que “(R)existem”. É para vocês que não deixaram de acreditar na juventude negra. Para vocês que todos os dias levantam a bandeira contra o genocídio da população negra. Mesmo quando eu ouvia que não chegaria aos 16 eu sabia que uma luz iria aparecer e essa luz apareceu em quantidade, pois foram varias LUZES NEGRAS por isso eu amo essa fala de Carolina Maria de Jesus “Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta.” Carolina vivi em mim assim como todas as mulheres negras vivem em mim.
Ana Paula Rósario é negra jovem, militante do movimento de mulheres negras e do programa de comunicação do Odara – Instituto da Mulher Negra.
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