CARTA DAS MULHERES NEGRAS DA BAHIA

Nós, mulheres negras da Bahia, sustentadas pela história e força das muitas de nós que vieram antes, seguimos marchando por reparações e bem viver. Seguimos com os pés firmes na terra e o olhar voltado para horizontes de justiça. Somos filhas da luta, da sabedoria de quilombos, terreiros, comunidades ribeirinhas e territórios que resistem. Marchamos por reparações que reconheçam nosso valor, nossa dor e nossas conquistas. Marchamos também pelo Bem Viver — nosso horizonte utópico, aquele que fundamenta nossos corpos, nossas vozes e nossos sonhos de liberdade.
A Bahia tem cerca de 79,5% da população autodeclarada negra, sendo o estado mais negro do Brasil. Tal constatação deveria ser motivo de ações concretas de garantias de melhores condições de vida para essa população. No entanto, todas nós vivenciamos uma série de violações de direitos, desigualdades históricas e estruturais nesse chão que pulsa negritude. Em cada canto, esquina, encruzilhada, nos encontramos nas injustiças cotidianas promovidas pelo Estado, por instituições da iniciativa privada e mesmo por instituições religiosas historicamente comprometidas com a subalternização de povos negros. Os dados alarmantes denunciam esse fenômeno histórico.
A violência doméstica e o exacerbado avanço de casos de feminicídio, vitima em sua maioria mulheres negras. Em 2023, foram registrados 411 homicídios de mulheres negras na Bahia, representando uma taxa de 6,6 homicídios por 100 mil habitantes. Entre 2013 e 2023, houve um aumento de 13,5% no número de homicídios de mulheres negras no estado. Comparando 2022 e 2023, o aumento foi de 11,7%1. Em média, uma mulher é vítima de algum tipo de agressão a cada quatro horas e ao menos um caso de feminicídio é registrado por dia no Brasil. São famílias dilaceradas pela misoginia, racismo e violência. São as mulheres negras que estão morrendo na Bahia!!!
Quando não as investidas de morte, nossos corpos têm sido aprisionados ou marginalizados, excluídos das possibilidades de uma vida social digna. Ocupamos 92% do sistema carcerário baiano. Também somos 87,2% das que exercem o trabalho doméstico, com alto índice de informalidade e muitos casos de trabalho em condição análoga à escravidão. Em 2023, a taxa de desocupação de mulheres negras chegou a 18,6%, superando a de mulheres brancas (13,2%) e homens negros (10,1%).
Em 2023, a Bahia registrou um dos piores índices educacionais dos últimos anos3 tendo a evasão escolar no Ensino Médio como principal indicador. Desta forma, o estado permanece como o terceiro com a menor taxa de frequência líquida, ou seja, poucos jovens entre 15 e 17 anos estão devidamente matriculados nessa etapa escolar na idade adequada.
Em 2024, a Bahia apresentou uma taxa de desemprego de 9,9%4, sendo uma das maiores do país e muitas famílias que enfrentam dificuldades financeiras, acabam priorizando o trabalho em vez da educação dos filhos. Crianças e adolescentes são compelidos a trabalhar para complementar a renda familiar. Outros fatores, como ambiente familiar instável, violência doméstica, separação, ou abandono parental, afetam a continuidade dos estudos, bem como a falta de recursos básicos como água, energia, ou material didático determinam a permanência ou não na educação formal.
Os modelos educacionais vigentes estão aquém da nossa referência de uma sociedade justa e sem violência. A crença numa educação que atenda às diferenças, que seja multicultural e valorize os saberes afrodiaspóricos, está diretamente ligada ao que compreendemos como caminhos para o Bem Viver. O movimento de mulheres negras já pensa a educação de modo a atender nossas expectativas e às necessidades reais das nossas crianças, adolescentes e jovens.
Parafraseando a Carta das Mulheres Negras contra o Racismo a Violência e pelo Bem Viver, de 2015, ecoamos vozes de meninas, adolescentes, jovens, adultas, idosas, lésbicas, transexuais, transgêneros, com deficiência, quilombolas, rurais, mulheres negras das florestas e das águas, moradoras das favelas, dos bairros periféricos, das palafitas, sem teto, em situação de rua.
Sempre estivemos nas ruas, seja como ganhadeiras, ambulantes, baianas de acarajé, seja trabalhando, seja vivendo festas de largo e carnavais. Nossa luta histórica é para que o espaço público seja ocupado por todas nós de forma equânime, sem violência e preservando a nossa existência na integralidade do que somos ou desejamos ser.
Gilberto Gil diz que a Bahia lhe deu régua e compasso. Agora, afirmamos: nós, mulheres negras, damos régua e compasso a este estado!!!
Por sermos muitas Luísas Mahins, Marias Felipas, Benguelas, Mães Bernadetes, Mães Gildas, estamos em Marcha, esse é o nosso chamado ancestral!
Salvador-BA, 25 de julho de 2025.
Mulheres Negras da Bahia
1 Atlas da Violência de 2024
2 Dados levantados pela Defensoria Pública do Estado da Bahia em 2022
3 Ranking de Competitividade dos Estados e Municípios, divulgado pelo Centro de Liderança Pública (CLP)
4 Dados do IBGE de 2024.
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