Carta das Juventudes Negras da Bahia Em Marcha por Reparação e Bem Viver: O que queremos dizer?

Nós, jovens negras da Bahia, fortalecidas e forjadas pelo movimento social de mulheres negras, organizadas a partir do Núcleo de Juventudes Negras do Odara – Instituto da Mulher Negra, centradas no compromisso político de seguir com nossa luta ancestral, viemos através deste documento, reafirmar que é preciso confiar na criatividade e na perspectiva de jovens negras para construir uma sociedade de Bem Viver que inclua todas as pessoas.
O racismo se reinventa e se reorganiza cotidianamente para produzir violências que atravessam nossos corpos, territórios, universidades, escolas, comunidades religiosas e além. Na estrutura do racismo que sustenta o Estado brasileiro, nossas vidas são reduzidas a números, nossas mortes são estatísticas, e o projeto de nação em curso, é pensado para que sejamos escoadas para o desemprego, ou os empregos informais, para que sigamos liderando os números de evasão escolar, para que não possamos nos movimentar, descobrir, construir, nos formar e expandir nossos horizontes.
Nossos corpos historicamente violados, pelo colonialismo, racismo e sexismo, seguem sendo enxergados na mesma lógica violenta de 500 anos atrás. Jovens negras são as que engravidam na adolescência, são as mais abusadas na infância, abandonam o ensino médio, somos nós as sexualizadas, somos nós lidando com a adultização muito cedo, lidando com os atravessamentos que o racismo e machismo alimentam contra nossas identidades. De acordo com o Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (SINASC) do Ministério da Saúde, em 2020, dos nascidos vivos de mães adolescentes no país, 62,74 % eram de jovens negras, enquanto 36,52 % eram de jovens brancas. Em 2022, a taxa de mortalidade materna para mulheres pretas foi de 100,38 óbitos por 100 mil nascidos vivos, mais que o dobro da taxa entre mulheres brancas, que foi de 46,56, conforme dados da Pesquisa Nascer no Brasil II, elaborada pelo Ministério da Saúde em parceria com a Fiocruz. E, pelo menos 12,5% das mulheres negras enfrentam insegurança alimentar moderada ou grave, segundo o Relatório do Observatório Brasileiro das Desigualdades. Essa taxa é significativamente maior do que a das mulheres de outras raças/etnias. Esses dados nos perseguem até a vida adulta, quando passamos a enfrentar a crescente nos casos de mortalidade materna entre mulheres negras, violência doméstica e abandono parental. Seguimos violentadas pela pobreza extrema e insegurança alimentar.
O que o mundo espera e propõe para as juventudes negras?
Antes das polícias, o braço armado, o Estado se faz presente em suas ausências e negligências, historicamente orquestradas. Não é por acaso que comunidades periféricas em todo o Brasil sofrem com falta de saneamento básico, falta de postos médicos e transporte público de qualidade. Quando a Policia Militar mata um jovem negro, morrem seus sonhos, planos, morre sua família, amigos, seus afetos. O genocídio promovido pelo Estado brasileiro acontece desde o Brasil colônia, essa nação nunca protegeu juventudes negras, nunca refletiu profundamente nossas vidas, nossas subjetividades e nossa identidade racial, de gênero e territorial.
Mas afinal, o que queremos?
Quando nós, jovens negras, somos convocadas a fortalecer o movimento de mulheres negras, precisamos compreender que, primordialmente, nosso povo lutou por liberdade, então lutou por direitos, por casa, por terra, por comida. Hoje, enquanto damos continuidade a essa luta, precisamos construir mecanismos para levantar nossas vozes contra o racismo algorítmico, contra o avanço das ideologias de extrema direita entre adolescentes, criamos estratégias de enfrentamento ao ódio promovido por comunidades neonazistas que atuam dentro e fora da internet. Enquanto jovens negras, construímos incidências através da estética, através das nossas músicas, nossas produções e conteúdos online, estamos nos movimentando e criando estratégias múltiplas de movimento através da criatividade.
A Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, a 2ª Marcha Nacional de Mulheres Negras, nos convoca a atravessar as barreiras do digital, do individual e do territorial.
Marchar é celebrar nossos passos, nossa coletividade e pluralidade. Marchamos porque estar juntas é um ato político de avanço, porque o Brasil, e o mundo, precisam visualizar a imensidão de mulheres negras que somos. Estamos expandindo a compreensão social do que é política, Nós, mulheres negras, estamos fazendo política há séculos, nossas movimentações são todas políticas e as articulações que forjamos socialmente, são articulações políticas. Por mais que a branquitude negue, esconda e finja que não, por mais que a mídia não nos dê visibilidade ou nos leve a sério, nós sabemos quem somos e sabemos quem eles são. Estamos articuladas para exigir um estado que garanta nossa vida plena, além de comida e casa, acesso a educação de qualidade, autonomia reprodutiva, liberdade religiosa e dignidade humana.
O que queremos é revolucionar toda essa estrutura criada às custas do nosso suor, nosso sangue, nossos filhos, irmãos, nossas mães e avós. O Brasil foi, e é, construído por mãos negras, saímos das senzalas para os quartos de despejos, para as favelas com esgoto a céu aberto, dos navios negreiros fomos lançadas aos ônibus e metrôs superlotados, aos kitnets, aos conjuntos habitacionais e presídios, nas casas de madeirite.
E é por isso que o Estado nos deve, às famílias oligárquicas nos devem, todos os setores que construíram fortuna com mão de obra escravocrata nos deve, não somente desculpas. Desculpas e notas de retratação não resolvem nenhum dos nossos problemas. Queremos ser reconhecidas e reconhecidos como sujeitos fundamentais para a produção de riquezas nesse país, riqueza essa que nunca cai em nossos bolsos e não soluciona nossos problemas. Queremos fortalecer um modelo político que seja eficaz para garantir nossos direitos, queremos uma saúde pautada não somente nas ciências européias de séculos atrás e queremos respeito a medicinas ancestrais trazidas do continente Africano. Queremos compreender: Por que em um país onde o Agronegócio representa mais de 25% do PIB, nós continuamos passando fome? Por que a lei 10.639/03 não é supervisionada e aplicada nas escolas? Por que golpistas e genocidas seguem vivendo livremente nas ruas?
É impossível falar de reparação histórica sem falar da dívida, social e econômica. Num mundo capitalista, nós iremos sim falar de dinheiro. Sem redistribuição de renda, não haverá sociedade de Bem Viver. Nos pilares da desigualdade, fome e pobreza, não há democracia efetiva. A democracia só faz sentido em uma sociedade de equidade plena.
Tudo parece impossível, tudo parece distante, até que tenhamos coragem de imaginar e construir. O capitalismo não é a ordem natural das coisas, o nosso sistema político foi imaginado, estruturado e implementado. Nenhuma estrutura social que existe hoje, existe naturalmente, tudo foi criado, e é seguindo essa lógica que precisamos radicalmente imaginar outro mundo, outro sistema político e educacional, outro modelo de segurança pública, de acesso à saúde e lazer. Não é normal e natural que a Bahia lidere os rankings de letalidade policial contra população negra. Não é normal que o Brasil lidere os índices de violência contra pessoas LGBTQIAPN+, nenhuma dessas violências é natural, elas foram implementadas e são sustentadas pela branquitude e pela elite econômica a fim de seguir nos eliminando e nos desumanizando.
Precisamos fortalecer o nosso movimento, precisamos olhar profundamente o legado das mais velhas e projetar nas mais novas o desejo de construir um futuro melhor para nós e para todas que ainda vão chegar.
Nossa responsabilidade e compromisso ancestral nos convocam a Marchar!
Marchar por cada jovem negro executado pela polícia militar, por nossas mais velhas que não puderam sequer sonhar, pelas que não puderam ir a escola, pelas que lavaram toneladas de roupas a beira do rio para sustentar suas casas, ir a rua e gritar pelas ancestrais que morreram sufocadas nos navios negreiros, pelas que se atiraram ao mar, marchar para que não esqueçamos dos caminhos de libertação traçados pelas líderes quilombolas no Brasil colônia. Em Brasília, seremos milhares no ayê, e seremos muitas mais no orum, nossa ancestralidade se fará em festa, como sankofa, olharemos para trás e marcaremos firmemente nossos passos no futuro.
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