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#OpiniãoOdara: Por que o Brasil se calou sobre Alícia e a violência nas escolas do Nordeste?


A menina, de 11 anos, morreu após ser espancada por colegas dentro de uma escola pública em Pernambuco. A violência em instituições de ensino, no Nordeste, cresceu cinco vezes nos últimos 10 anos

Por Redação Odara

No dia 3 de setembro de 2025, Alícia Valentina Lima dos Santos Silva, de apenas 11 anos, foi brutalmente agredida dentro do banheiro da Escola Municipal Tia Zita, em Belém do São Francisco, no Sertão de Pernambuco. Câmeras de segurança registraram o momento em que a menina entrou no banheiro e, minutos depois, saiu com a mão no ouvido, visivelmente abalada, buscando ajuda de uma funcionária.

Segundo a Polícia Civil, Alícia foi atacada por cinco colegas da mesma faixa etária logo após chegar à escola. O motivo, segundo familiares, teria sido a recusa da menina em “ficar” com um dos agressores. O espancamento causou um traumatismo cranioencefálico, que levou à sua morte dias depois. Ela era uma criança normal, sorridente, gostava de brincar com os amigos. As professoras sempre falavam que era uma boa aluna. A pergunta que fica é: ‘por que fizeram isso com ela? Como tudo aconteceu?’”, lamentou uma das tias.

O socorro foi tardio e negligente. Alícia passou por vários atendimentos, foi liberada mais de uma vez e só no dia seguinte foi transferida para um hospital especializado em Recife, a mais de 460 quilômetros de distância. No dia 7 de setembro, quatro dias após a agressão, ela teve morte cerebral confirmada. A causa registrada no atestado de óbito: traumatismo craniano provocado por instrumento contundente.

Nos corredores da escola, nas ruas da cidade, entre colegas e familiares, ficou o silêncio da ausência. Alícia morreu espancada dentro de um lugar que deveria protegê-la. E mais uma vez, como em tantos outros casos, as perguntas se repetem: onde estavam os adultos? A escola sabia de algo? Havia sinais anteriores? Como ninguém interveio?

POR QUE NÃO PARAMOS O PAÍS?

O caso de Alícia deveria ter chocado o país, mas estranhamente, não teve o impacto necessário. Foi noticiado de forma tímida, engolido pelo noticiário comum, esquecido pelas grandes redes e ignorado pelos que costumam mobilizar o debate público por causas sociais.

Não houve comoção nacional, nem propostas urgentes de mudança. A tragédia não gerou audiência, não virou pauta no Congresso, não arrastou multidões para protestos. Mas o fato de Alícia ser uma menina negra, de apenas 11 anos, moradora de uma cidade pequena e periférica, distante dos grandes centros urbanos, ajuda a explicar esse silêncio ensurdecedor. A reação pública, ou a ausência dela, escancara a seletividade da comoção no Brasil. Vidas negras, especialmente as que crescem longe dos holofotes das capitais e dos bairros centrais, seguem sendo tratadas como menos valiosas. Em contraste, vemos mobilizações massivas quando influenciadores se pronunciam sobre assuntos virais ou quando casos similares ocorrem em contextos mais privilegiados. A morte de Alícia dentro da escola, um espaço que deveria garantir sua segurança e seu futuro, foi recebida com indiferença. O país mal reagiu, e isso diz muito sobre quem escolhemos ouvir, proteger e chorar.

O nome de Alícia corre o risco de ser apagado. Mas não podemos esquecer de Alícia. Não devemos esquecer de Alícia. Sua história precisa ecoar para que nunca se repita. Porque quando a violência é ignorada, ela se fortalece. Quando o silêncio prevalece, ele se torna cúmplice.

ALÍCIA NÃO FOI A ÚNICA 

Há um provérbio africano que diz: “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.” No caso de Alícia, a aldeia falhou. A escola falhou. O sistema de saúde falhou. O Estado falhou. E, acima de tudo, a sociedade falhou porque normalizou a violência até que ela se tornasse invisível. Falhamos conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que afirma que a proteção da criança não é responsabilidade exclusiva do Estado ou da família, é uma missão coletiva.

Casos como o dela continuam se acumulando, especialmente no Nordeste, onde a violência dentro das escolas aumentou de forma acelerada nos últimos anos. Estudantes são agredidos, professores ameaçados, crianças crescem em ambientes hostis, enquanto a impunidade se espalha pelos corredores como se a escola tivesse deixado de importar.

O cenário é grave. Entre 2014 e 2024, o Nordeste registrou o maior aumento percentual de violência escolar no país. Os casos de agressão interpessoal e autoagressão quintuplicaram na última década. No Brasil como um todo, os registros saltaram de 3.746 em 2014 para 14.747 em 2024, um crescimento de 294%, segundo dados da Agência Tatu. A maioria das ocorrências envolve violência física, mas também há relatos crescentes de abuso psicológico e agressões sexuais.

O Ceará concentra os casos mais críticos da região. O número de ocorrências aumentou 943% em dez anos, de 42 registros em 2014 para 438 em 2024. Episódios como o de Farias de Brito (CE), em abril de 2023, em que um aluno do 9º ano atacou duas colegas do 4º ano com uma machadinha dentro da sala de aula. Poucos meses depois, em outubro de 2024, em Pacajus (CE), um ex-aluno de 19 anos invadiu a Escola Dione Maria Bezerra Pessoa e esfaqueou uma professora. A vítima sobreviveu, mas o ataque escancarou falhas no controle de acesso e na prevenção de riscos iminentes.

Em junho de 2025, na cidade de Aratuba (CE), uma briga generalizada entre alunos do Colégio Estadual José Joacir Pereira foi registrada em vídeo e viralizou nas redes. O conflito, originado fora da escola, acabou explodindo dentro dela, com agressões físicas ocorrendo a céu aberto, no pátio.

Na Bahia, a tragédia foi ainda mais extrema. Em 18 de outubro de 2024, há um ano, um aluno do Colégio Municipal Dom Pedro I, em Heliópolis, matou três colegas a tiros e cometeu suicídio em seguida. As vítimas tinham entre 14 e 15 anos, e assistiam aula quando o outro adolescente efetuou os disparos. O massacre evidenciou não só o avanço da violência, mas também a presença de armas em ambientes escolares e a total ausência de rede de apoio capaz de perceber os sinais prévios.

Esses casos não ocorrem “do nada”. O Nordeste é também a região com a maior concentração de crianças e adolescentes fora da escola. São 263.542 jovens, o equivalente a 25,5% do total nacional. Entre meninos, especialmente os negros e periféricos, a evasão escolar se cruza com a violência cotidiana dos setores da segurança pública e do crime organizado.

Em Sergipe, os dados mostram um padrão de precariedade: altas taxas de distorção idade-série, pobreza extrema e um número significativo de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil. Isso tudo impacta diretamente a dinâmica escolar, porque não há educação de qualidade onde falta o mínimo para sobreviver.

O QUE ESTAMOS ESPERANDO? 

Diante de tudo isso, não dá mais para tratar a violência escolar como um problema exclusivo da escola ou dos professores. É uma pauta urgente que precisa mobilizar toda a comunidade. Garantir a segurança de crianças e adolescentes não é tarefa isolada da direção da escola, da gestão municipal ou de um professor sobrecarregado. É uma responsabilidade coletiva, mas com um responsável central: o Estado (ECA). 

O Estado precisa assumir seu papel com firmeza, investimento e ação permanente. Não pode aparecer apenas depois da tragédia, com promessas vazias e notas de pesar. Cabe ao poder público garantir que toda escola seja, antes de qualquer coisa, um espaço seguro. Isso significa infraestrutura adequada, profissionais de apoio, políticas de prevenção à violência, protocolos claros e fiscalização ativa.

A escola precisa ser um lugar de proteção, de cuidado, e de construção de valores. Não apenas um espaço para cumprir currículo. Ensina-se matemática e português, sim, mas também também se deve construir espaços para o desenvolvimento de uma boa convivência, com respeito, empatia, limites, direitos e deveres. E isso não é opcional. É parte da formação integral de cada criança e adolescente.

Que Alícia, Jonathan, Fernanda, Adriele e tantos outros não sejam mais números arquivados. Que sirva de alerta, de memória e de impulso para um debate sério e duradouro sobre como cuidar da infância, adolescência e juventude neste país.

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