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Bahia expõe feridas da violência de gênero: Casos de feminicídio evidenciam ciclo nacional de misoginia e desproteção

Casos brutais em cidades baianas se somam ao avanço do feminicídio no país; mulheres negras cis e trans seguem morrendo enquanto o Estado falha na prevenção e no enfrentamento

Por Adriane Rocha | Redação Odara 

O Brasil voltou a ocupar o centro do debate sobre violência de gênero após uma sequência de feminicídios que expõem, mais uma vez, a vulnerabilidade cotidiana vivida por mulheres. Em diferentes regiões do país, episódios ocorridos entre novembro e dezembro confirmam a escalada da violência. 

Na Bahia, casos recentes evidenciam a brutalidade sistemática, e dialogam diretamente com o cenário nacional, onde a misoginia se manifesta de maneira cada vez mais explícita e letal.  

Em Salinas da Margarida, no Recôncavo da Bahia, a professora Nerica França da Conceição, 52 anos, foi encontrada morta no dia 22 de novembro, dentro da própria casa. De acordo com familiares, ela sofreu agressões físicas, facadas e sinais de asfixia. O ex- marido agressor, com quem convivia há 28 anos, teria trancado o imóvel, impedindo qualquer tentativa de socorro. O corpo foi localizado apenas no dia seguinte.

Na capital baiana, o desaparecimento de Fabiana Correia Cardoso, desde 11 de setembro, segue sem desfecho. O ex-namorado, João Pedro Souza Silva, confessou envolvimento na morte após ela vender um apartamento para reorganizar a vida ao lado dele e abrir um pequeno mercado. A compra, antes planejada como recomeço, transformou-se em ferramenta de controle e perda de autonomia. Embora vestígios de sangue tenham sido encontrados durante a operação policial, o corpo ainda não foi localizado. A história repete um padrão conhecido: violência, desaparecimento, confissão tardia e a vida de mais uma mulher interrompida de forma brutal.

No extremo oeste do estado, em Luís Eduardo Magalhães, o assassinato de Rhianna Alves, 18 anos, escancara outra dimensão da violência de gênero: a transfobia. Rhianna foi morta após uma discussão com Sérgio Henrique Lima dos Santos, de 19 anos, que entregou o corpo da vítima na delegacia territorial, confessou o crime, alegou legítima defesa e acabou liberado. A Polícia Civil investiga como feminicídio, mas a soltura imediata do agressor confesso, durante o período de flagrante, evidencia o abismo entre a legislação e sua aplicação quando se trata de corpos trans negros. Rhianna era influencer, compartilhava o cotidiano nas redes e tinha uma vida inteira pela frente. 

Em São Paulo, Tainara Santos, de 31 anos, teve as pernas amputadas após ser atropelada e arrastada por Douglas Alves Silva, com quem manteve um relacionamento. No Rio de Janeiro, Allane Matos e Layse Pinheiro que trabalhavam no  Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) Celso Suckow da Fonseca (Cefet-RJ)  foram assassinadas por um homem que não aceitava ser chefiado por mulheres.

Um país que produz e repete o mesmo padrão sistêmico 

O que acontece na Bahia também se repete nos demais estados do Brasil. A engrenagem é idêntica: homens que não aceitam perder o controle, instituições que falham sistematicamente em proteger mulheres e um Estado que permite que a violência avance até o desfecho letal. 

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, mostram que, apesar de uma redução geral nas Mortes Violentas Intencionais (MVI) em 2024, a violência letal segue concentrada nas regiões Norte e Nordeste, com a Bahia em segundo lugar no ranking de estados mais violentos do país (40,6 mortes por 100 mil habitantes), atrás apenas do Amapá. 

Outros estados nordestinos como Ceará, Pernambuco e Alagoas também figuram entre os mais violentos, evidenciando que a violência letal não é um problema isolado do Sudeste ou Sul, onde os casos ganham maior repercussão, mas um padrão nacional reproduzido de forma mais brutal em territórios historicamente marcados pela desigualdade e pela ausência de políticas públicas eficazes. 

Os dados nacionais também revelam que o Brasil registrou em 2024 o maior número de feminicídios desde a tipificação do crime, com 1.492 mulheres assassinadas, uma média de quase quatro mortes por dia, a maioria em contextos familiares e íntimos, e com mulheres negras entre as principais vítimas. Nesse cenário de violência, os indicadores deixam evidente que a tragédia é uma política de Estado que expõe seletivamente corpos de mulheres negras, periféricas e invisibilizadas, enquanto as instituições que deveriam protegê-las continuam falhando em sua obrigação de prevenção, acolhimento e responsabilização.

O Estado é cúmplice nas mortes de mulheres negras e quilombolas

Se nas cidades a violência contra mulheres negras explode em feminicídios brutais, nos quilombos ela se agrava pela invisibilidade. A Bahia, mesmo sendo o estado com maior população quilombola do país, não possui dados oficiais sobre a violência que atinge essas mulheres e essa ausência já é parte da violência. Sem números, sem registros e sem política pública, o Estado produz silêncio onde deveria haver proteção.

Os casos se acumulam. Elitânia de Souza foi morta no município de Cachoeira (BA), em 2019, mesmo após denunciar violência. Gleiciene Jesus dos Santos foi encontrada morta em Mirangaba (BA), em 2024. Tainara dos Santos, também de Cachoeira, está desaparecida desde outubro do mesmo ano e seu ex-companheiro, George da Silva, está sendo julgado por feminicídio. Tantas outras seguem sendo apagadas dos sistemas, das estatísticas e das prioridades do poder público. Suas famílias ficam entregues à própria dor, sem investigação célere, apoio psicológico, assistência social, indenização, sem memória ou justiça. 

A violência é extrema, o abandono é contínuo. O Estado não chega antes do crime e não chega depois dele. Não protege em vida e não repara na morte. E é essa ausência histórica, calculada, que transforma cada feminicídio de mulheres negras, dentro e fora dos quilombos, em uma ferida coletiva que nunca cicatriza.

Nós por nós, pela vida das mulheres negras

O enfrentamento à violência de raça e gênero na Bahia e no Nordeste é resultado do acúmulo político do movimento de mulheres negras, construído a partir da organização coletiva e da denúncia permanente do racismo patriarcal. Esse acúmulo se materializa na Semana Elitânia de Souza, que reafirma a memória das mulheres negras assassinadas e cobra responsabilização do Estado; na Jornada Pela Vida das Mulheres Negras, que articula o Nordeste contra a violência e a negligência estatal; e no Comitê de Enfrentamento à Violência de Raça e Gênero, no âmbito da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, que fortalece estratégias de proteção, incidência política e mobilização coletiva. São experiências que afirmam, na prática, que a vida das mulheres negras é uma agenda política inegociável.

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