Carolina Maria de Jesus e Abdias do Nascimento: A memória da luta por Reparação e Bem Viver

No aniversário de Abdias e Carolina lembramos que suas histórias não pertencem apenas ao passado, mas seguem vivas em cada uma de nós, nas marchas que construímos, nas palavras que ecoamos e nas políticas que reivindicamos
“Reparação e Bem Viver” ecoam diariamente em nossas vozes, ativistas negras brasileiras, protagonistas da construção de um dos maiores movimentos globais do nosso tempo: a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, ou a Marcha Transnacional de Mulheres Negras, ou ainda, a Segunda Marcha Nacional de Mulheres Negras, que acontecerá em novembro deste ano, em Brasília.
Durante o mês de março, essas duas palavras ganham ainda mais força, impulsionadas pela agenda coletiva do Março de Lutas, um processo construído por mulheres de todo o país e que também serve como um chamado para refletirmos sobre a marcha e sua importância histórica.
Mas a luta por Reparação e pelo Bem Viver não é algo novo em nossa trajetória. Esses conceitos estão entrelaçados com a história do povo negro no Brasil e ressoam nas vidas e legados de figuras que nos antecederam, como Carolina Maria de Jesus e Abdias Nascimento. Curiosamente, ambos nasceram no mesmo dia, 14 de março de 1914, ainda que em cenários distintos: ele, em Franca, São Paulo; e ela em Sacramento, Minas Gerais.
Carolina Maria de Jesus, intelectual e escritora que começou no ofício redigindo em cadernos que encontrava no lixo, quando trabalhava como catadora de material reciclado. Ela transformou sua vivência na favela do Canindé (SP) em uma das obras mais emblemáticas da literatura brasileira, Quarto de Despejo (1960), revelando as dores, angústias e resistências de uma mulher negra e pobre em um país racista e desigual. Sua escrita escancarou realidades que muitos preferiam ignorar e reafirmou a potência da palavra como ferramenta de denúncia e transformação social.
Carolina apresentou páginas em que denunciava um Brasil faminto, não apenas de alimento, mas de possibilidades de uma vida digna. Em seu diário, registrou a dura realidade das favelas e denunciou a estrutura que condenava (e ainda condena) corpos negros à marginalização. Sua obra é uma denúncia e uma busca por um modelo de humanidade onde o lucro e a exploração não são o centro da vida. Assim como o conceito de Bem Viver, que, apesar de ter sido sistematizado posteriormente, propõe um projeto de sociedade baseado na existência coletiva em equilíbrio com a natureza, onde a vida digna não seja privilégio de poucos.
“Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é a dor e a aflição do pobre.” (Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada, 1960)
Já Abdias Nascimento foi um intelectual, ativista e artista multifacetado que dedicou sua vida à luta contra o racismo e à valorização da cultura afro-brasileira. Em 1944, fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), uma iniciativa revolucionária que buscava romper as barreiras raciais no teatro brasileiro, promovendo a inclusão de atores negros e a valorização da cultura africana.
Além de seu papel na cultura, Abdias também teve uma trajetória marcante na política. Como deputado federal pelo PDT/RJ, ele foi um dos primeiros parlamentares a propor medidas concretas de ação afirmativa no Brasil. Em 1983, apresentou o Projeto de Lei 1.332, que visava implementar ações compensatórias para garantir a igualdade de oportunidades para a população negra. Entre suas propostas estavam a reserva de 20% das vagas em órgãos da administração pública direta e indireta para homens negros e 20% para mulheres negras, além da destinação de 40% das vagas nos vestibulares de instituições de ensino superior públicas e privadas para estudantes negros.
Abdias justificava suas propostas afirmando que o Brasil tinha uma dívida histórica com a população negra, que foi forçada a construir este país sob condições de escravidão. Em um de seus discursos mais emblemáticos, declarou:
“Os africanos não vieram para o Brasil livremente, como resultado de sua própria decisão ou opção. Vieram acorrentados, sob toda sorte de violências físicas e morais; eles e seus descendentes trabalharam mais de quatro séculos construindo este país. Não tiveram, no entanto, a mínima compensação por esse gigantesco trabalho realizado.”
Sua convicção de que a reparação histórica era essencial para reduzir as desigualdades no Brasil influenciou diretamente o avanço das políticas de cotas raciais e outras medidas.
A convergência de suas trajetórias e a força de suas obras nos lembram que a luta por Reparação e pelo Bem Viver é contínua. Suas histórias não pertencem apenas ao passado, mas seguem vivas em cada uma de nós, nas marchas que construímos, nas palavras que ecoamos e nas políticas que reivindicamos. Neste ano, ao marcharmos novamente em Brasília, carregamos não apenas nossas próprias vozes, mas também os sonhos e a resistência daqueles que vieram antes de nós.
Nós, mulheres negras, acreditamos que é necessário construir um novo pacto civilizatório baseado no respeito à ancestralidade, na partilha de recursos e na erradicação da pobreza e das violências. A luta das mulheres negras, portanto, não é apenas por sobrevivência, mas por uma outra forma de existir e construir comunidade, onde todas as vidas importem e sejam valorizadas.
A Marcha é a continuidade da luta de Carolina, que sonhava com um Brasil onde crianças não passassem fome, e de Abdias, que exigia a reparação por séculos de exploração.
Pensar nesses dois gigantes juntos é perceber que a luta negra não é linear, mas se entrelaça em diferentes tempos e espaços, construindo um presente de resistência e um futuro possível. A memória nos orienta, a reparação nos fortalece, e a construção de um outro mundo é possível!
Rumo a Marcha de 1 Milhão de Mulheres Negras, seguimos!
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