CARTA ABERTA À PREFEITURA DE SALVADOR: Sobre a apropriação indevida do nome e marca do “Julho das Pretas”

Prezada Prefeitura de Salvador,
Mais uma vez, ficamos impressionadas com a habilidade dessa gestão em se apropriar daquilo que não constrói. Com uma criatividade seletiva digna de prêmio, vocês tentam, a todo custo, transformar o Julho das Pretas, uma ação política construída há mais de uma década pelos Movimentos de Mulheres Negras, em vitrine institucional.
Só um detalhe: essa agenda não nasceu em gabinete, não foi criada por decreto, nem tampouco brotou da cabeça de nenhum gestor. Por isso, é importante dizer com todas as letras: não estamos falando apenas da Prefeitura de Salvador, mas de órgãos públicos, secretarias, empresas estatais e autarquias do Estado como um todo, que seguem tentando capturar o Julho das Pretas como se fosse um calendário protocolar, e não uma ação política radical, forjada na luta.
O Julho das Pretas é uma ação forjada por 13 anos de luta, suor, memória e resistência. Uma campanha de incidência política criada pelos Movimentos de Mulheres Negras do Brasil, em 2013, aqui em Salvador, a partir do Odara – Instituto da Mulher Negra. Sim! Foi uma organização desta cidade que criou essa ação. Uma busca rápida no Google evitaria o vexame, mas parece que nem isso a “comunicação de [31] milhões da Prefs” consegue garantir.
É revoltando ver a Secretaria Municipal de Gestão (SEMGE) usando a logo da campanha num evento institucional sem nenhuma autorização e isso na mesma semana em que a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), após pressão do movimento, teve que apagar um post que fazia o mesmo uso indevido. Prefeito Bruno Reis, suas secretarias não dialogam entre si!? Deveriam, se não para fazer política, ao menos para evitar o vexame.
Mas a prática é recorrente: vídeos bem editados, falas ensaiadas sobre representatividade, uma mulher negra no palco, e pronto! Está armado o teatro do protagonismo. Só que, nos bastidores, a realidade é outra. Não aceitamos que governos, políticos ou gabinetes tentem surfar em cima de uma luta que jamais apoiaram.
A marca é nossa. A luta é nossa. E não está à venda.
Qual foi a ação desta mesma prefeitura, que ama tanto as mulheres negras, durante os 74 dias de greve das professoras da rede municipal? Onde estava a gestão quando as mulheres negras da educação voltaram às escolas e encontraram ratos, mofo, salas inundadas no inverno e insuportavelmente quentes no verão? Onde está Bruno Reis, suas secretárias e secretários, supostamente tão bem intencionados com as mulheres negras, quando o lanche nas escolas do município é meio copo de leite e um pedaço de pão? E, mais grave: as professoras e professores voltaram às salas de aula sem a garantia do pagamento do piso salarial previsto em lei. Voltaram por conta das ameaças dessa gestão!
Ah, mas quando chega julho, aí sim: se vestem de preto, colocam tecidos étnicos, usam de nossa fé, das nossas identidades, e fazem pose para declarar amor às mulheres negras. Amor de ocasião. Porque, na prática, os cargos de liderança continuam ocupados por homens brancos (ou bronzeados, como o ex-prefeito ACM Neto), e Salvador segue sendo uma cidade hostil à maioria de sua população: negra, feminina e periférica.
Olha, vamos repetir, pra ver se finalmente entra no cronograma da comunicação institucional: o Julho das Pretas é uma ação de incidência política, construída pelo movimento social. O Julho das Pretas pertence ao movimento social de mulheres negras porque nós construímos doze meses de luta, de articulação política e de diálogo sincero e real com mulheres negras de diferentes realidades.
O Julho das Pretas é legalmente registrado no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), coletivamente defendido e não pode, nem vai, ser transformado em cortina de fumaça para uma gestão que não respeita nossas vidas, nossas vozes nem nossos territórios.
Nossa insistência em defender o Julho das Pretas como uma construção dos movimentos sociais de mulheres negras não é à toa. É também um ato de prevenção. Já vimos esse filme antes. O Novembro Negro, que também nasceu da luta do movimento negro, foi sendo lentamente sequestrado por instituições públicas que apagaram sua origem política e esvaziaram seu sentido transformador. Hoje, em muitos lugares, virou um roteiro institucional morno, esvaziado, que culmina em caminhadas cada vez menos expressivas e dominadas por representações partidárias que pouco dialogam com as comunidades negras. Não vamos permitir que o mesmo destino seja imposto ao Julho das Pretas.
Exigimos a retirada imediata de qualquer conteúdo que utilize o nome Julho das Pretas nas plataformas e impressos desta Prefeitura e demais canais institucionais. Caso contrário, tomaremos todas as medidas legais cabíveis contra o uso indevido, desrespeitoso e vergonhoso.
Apoiar o Julho nas redes, com filtros e palavras bonitas, é fácil. Difícil mesmo é defender nossas vidas e nossos direitos o ano inteiro.
E já que a Prefeitura dispõe de uma verba milionária para comunicação, que tal investir esse recurso em escuta real com as mulheres negras da cidade? Aquelas que enfrentam desemprego, informalidade, subocupação, baixos salários e a ausência crônica de políticas públicas. Só em 2023, o rendimento médio das mulheres negras em Salvador foi 47% menor que o dos homens brancos. Mas isso, claro, não aparece nas legendas da Prefs.
E antes que alguém tente encerrar o mês com fogos e aplausos, deixamos um alerta: sabemos que a Prefeitura pretende realizar um festival neste fim de semana. E que artistas negras, que admiramos profundamente, estarão se apresentando. Nosso respeito por essas mulheres é inegociável. Mas isso não pode ser usado como “cala boca” institucional.
Não nos silenciarão com palco, luz e microfone, enquanto seguimos sendo excluídas das decisões políticas que afetam nossa sobrevivência.
Nós, mulheres negras, estamos em Marcha por Reparação e Bem Viver, para dizer que apesar do Estado que nos mata, que nos persegue e violenta, apesar das máscaras e maquiagens usadas para se promover em cima da nossa luta, da nossa agenda, sabemos plenamente o que queremos para nós, para Salvador e para a sociedade brasileira. Sabemos exatamente quem são nossos aliados e nossos inimigos, e na gestão municipal da “Capital Afro” NÃO HÁ ALIADOS DAS MULHERES NEGRAS.
O que está acontecendo em Salvador é grave. Não se trata apenas de apropriação de uma agenda. Trata-se de violência política, simbólica e institucional contra as mulheres negras dessa cidade. Trata-se de desmontes, de silenciamentos, de apagamentos e manipulação. Trata-se da maior agenda política de mulheres negras da América Latina sendo sequestrada por quem não respeita, não ouve e não repara.
O Julho das Pretas é dos Movimentos de Mulheres Negras. Não aceitaremos o roubo das nossas agendas.
Atenciosamente,
Odara – Instituto da Mulher Negra
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