CARTA ABERTA – Exigimos Acesso à Justiça e Reparação pela Omissão do Estado no Combate á Violência Doméstica e Feminicídio na Bahia!
26 de novembro de 2024, Salvador-BA
Ao Governador do Estado da Bahia, Jerônimo Rodrigues, secretários e secretárias estaduais que compõem a equipe de governo da administração pública do estado da Bahia
Nós, organizações de mulheres negras e organizações feministas da Bahia, desde 2020 organizamos anualmente a Semana Elitânia Souza – Pela Vida das Mulheres Negras, com o objetivo de denunciar a constante situação de violência ao qual mulheres negras estão inseridas, vítimas de feminicídio, interrompidas pela violência machista/misógina, em aliança com o racismo, a pobreza e outras violências estruturais. Articuladas a partir da agenda de enfrentamento à violência doméstica, familiar e feminicídio, construímos a Jornada Pela Vida das Mulheres Negras, cujo tema em sua terceira edição é “Acesso à Justiça: Enfrentando a Violência Doméstica, Familiar e o Feminicídio no Nordeste”, impulsionada pela Rede de Mulheres Negras do Nordeste a partir da mobilização nacional e internacional dos 21 Dias de Ativismo Pelo Fim da Violência Contra as Mulheres.
Fazemos uso desta carta como mais um instrumento de denúncia sobre a negligência do Estado no combate à violência contra as mulheres na Bahia. Nesse sentido, vale lembrar os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sendo signatário da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção CEDAW, 1979); da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994); e a Declaração Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Declaração de Durban, 2001).
Tais convenções prevêem compromissos estatais, e, por conseguinte, obrigam todas as instituições públicas a estabelecer medidas com o objetivo de erradicar todas as formas de discriminação contra as mulheres, adequadas e suficientes para garantir igualdade, justiça, direitos e garantias integrais e, sobretudo, são bases de um direito antidiscriminatório.
Em julho de 2023, o Comitê de Peritas do Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará – MESECVI (Nº 5) publicou um documento com recomendações que abordam as diversas violências sofridas por meninas e mulheres afrodescendentes na América Latina. O Comitê aponta que deve ser um dever do Estado adotar e fortalecer políticas para a prevenção da violência de gênero, abordando a interseccionalidade de raça e gênero e levando em conta o racismo como causa e fator agravante das violências, bem como adotar mecanismos para monitorar comportamentos discriminatórios.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apresentou a quarta edição da publicação “Visível e Invisível – a vitimização de mulheres no Brasil”, uma amostra a partir da escuta de 1.042 mulheres, no período de 9 a 13 de janeiro de 2023. Um dos principais resultados da pesquisa é a demonstração do aumento crescente e acentuado a cada ano de todas as formas de violência contra mulher, que atinge ainda mais diretamente as mulheres negras. “Em relação ao perfil étnico racial, mulheres negras (45%) apresentam prevalência superior de vitimização do que as mulheres brancas (36,9%), mas a comparação entre mulheres pretas (48%) e pardas (43,8%) indica que as pretas são as mais vulneráveis” (p. 19).
Conforme o Boletim “Elas Vivem: dados que não se calam”, publicado pela Rede de Observatórios da Segurança em 2022, a Bahia se tornou o estado do Nordeste com o maior número de feminicídios registrados (91) no referido ano. Em 2023 o número registrado foi ainda maior, com 128 feminicídios consumados segundo o Laboratório de Estudos de Feminicídios (LESFEM), o que representa o aumento de 40%.
Considerando a subnotificação, temos ainda ponderações sobre os dados, no que tange os casos não denunciados e os casos não notificados. Reconhecemos entre os desafios impostos às mulheres relacionados à negativa de denúncia: os maus tratos e revitimização das mulheres nos espaços de atendimento policial; a peregrinação na busca de apoio e acesso à serviços de proteção; a descredibilidade do sistema de justiça mediante a morosidade dos processos; o sentimento de desamparo nas casas de acolhimento; a percepção comum de impunidade frente ao crescimento de casos amplamente noticiados.
Bem como entendemos que o principal meio usado pelo Estado para monitoramento de casos encontra-se defasado. É limitante a oficialização dos números de violências contra mulheres prioritariamente através de boletins de ocorrências, que não levantam sequer o quantitativo de órfãos do feminicídio. A partir da análise do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAn) do Sistema Nacional de Saúde, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da University of Washington (EUA) e da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) apontam uma taxa de subnotificação de 98,5% dos casos de violência psicológica, 89,4% dos casos de violência sexual, 75,9% dos casos de violência física. Com maior percentual de subnotificação entre as regiões Norte e Nordeste.
Conforme o Mapa da Violência de Gênero, produzido pela Associação Gênero e Número, até 2019 a Bahia foi o estado do Nordeste com menor número de leis voltadas à prevenção e punição dos crimes de violência contra mulheres. Não obstante, temos resultados drásticos da Auditoria Operacional Internacional Coordenada sobre a Violência Contra às Mulheres, realizada no primeiro semestre de 2023 pelo Tribunal de Contas do Estado da Bahia, promovida pela Organização Latino-Americana e do Caribe de Entidades Fiscalizadoras Superiores (Olacefs). Entre a situação encontrada, registra-se: Inexistência de Política Estadual para o Enfrentamento da Violência contra as Mulheres; Inexistência de Plano Estadual de Políticas para as Mulheres atualizado; Deficiência do Modelo Teórico dos Programas do Plano Plurianual (PPA) 2020-2023 relacionados ao enfrentamento à violência contra a mulher; Inexistência de planejamento sistematizado para as ações de capacitação e sensibilização do público interno da Secretaria de Políticas Para Mulheres e dos atores da Rede de Atendimento no que tange a violência contra a mulher; Ausência de fiscalização da abordagem da temática nos conteúdos escolares da educação básica, conforme determinação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a partir de 2021; Deficiência dos mecanismos de articulação com a sociedade civil para o desenho e execução das políticas, programas e/ou ações associadas ao enfrentamento da violência contra a mulher. Entre outros apontamentos igualmente relevantes que explicitam escancaradamente a omissão e conivência do Estado.
Assistimos aos efeitos da ausência de uma rede de atenção às mulheres em situação de violência que seja capaz de acolhê-las e incidir junto aos agressores para interromper os processos de escalada da violência. Além disso, a política de abrigamento de mulheres em situação de violência e seus dependentes não se mostra satisfatória, pois faz com que as mulheres abdiquem de suas vidas sociais e profissionais para obter proteção, quando hoje temos outras ferramentas que podem ser mais eficazes na proteção à vida das mulheres, como por exemplo, o monitoramento eletrônico de agressores, com medidas protetivas vigentes contra si e não contra a vítima.
Além do mais, são inexistentes medidas de prevenção à violência doméstica e familiar específicas que dêem conta da territorialidade que não seja urbana, bem como são inoperantes os mecanismos de denúncia e enfrentamento no estado mais rural do país, em termos absolutos, com uma taxa de 27,93% da população com residência na área rural (IBGE, 2010). O Estado tem falhado com cada mulher quilombola, cada mulher residente em comunidades rurais, ribeirinhas e ilhadas, cada mulher do interior do interior da Bahia. Haja vista tais denúncias, exigimos a responsabilização urgente do Estado sobre o não cumprimento do seu dever de promoção de proteção às mulheres.
As organizações da sociedade civil não só têm sido linha de frente no monitoramento de dados sobre as violências contra mulheres, como têm sido a principal rede de apoio e proteção às vítimas. Nós, lideranças de movimentos de mulheres negras, somos constantemente acionadas para acolhimento e prestação de assistência. Cumprimos nossas atribuições no que rege a Lei Maria da Penha quanto à proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. No entanto, nos sentimos sozinhas e desamparadas pelo poder público, que pouco tem incidido sobre seus deveres em coibir, prevenir e enfrentar a violência doméstica e familiar.
Desse modo, reivindicamos dos poderes públicos na Bahia:
- Indenização por parte do Estado para os familiares de vítimas de feminicídio e para vítimas de violência doméstica e familiar, especialmente aquelas em condição de medida protetiva;
- Instituição de medidas protetivas mais eficientes, considerando os instrumentos de monitoramento do agressor;
- Comprometimento das Instituições de Ensino Superior públicas para criação de programas internos de prevenção à violência contra mulheres e proteção às vítimas, com comitês de monitoramento e acompanhamento;
- Formulação e implementação imediata de políticas específicas para atendimento de mulheres quilombolas, ribeirinhas, ilhadas, de fundo e fecho de pasto e com residência em comunidades rurais;
- Maior eficiência no levantamento e sistematização de dados, com cruzamento entre órgãos públicos e investimento sobre o uso do SINAN entre os órgãos públicos, como os equipamentos do Sistema Único de Saúde (SUS), do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), estabelecimentos de ensino e educação, conselhos tutelares e Centros Especializados de Atendimento à Mulher;
- Melhoria na capacitação dos agentes públicos para o atendimento, notificação do caso e encaminhamento da vítima de violência doméstica e familiar;
- Criação de Casas Abrigos nos municípios com mais de 50 mil habitantes e estabelecimento de monitoramento das instituições de abrigamento de mulheres em situação de violência e seus dependentes, com divulgação periódica de levantamentos sobre seu funcionamento;
- Criação de Delegacias de Defesa da Mulher em todos os Municípios com mais de cinquenta mil habitantes, com funcionamento ininterrupto, conforme previsto no artigo 281 da Constituição do Estado da Bahia;
- Celeridade e priorização no julgamento de casos de violência doméstica e familiar e feminicídio;
- Monitoramento da determinação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação quanto a obrigatoriedade da abordagem transversal de conteúdos relacionados à prevenção de todas as formas de violência contra a mulher nos currículos da educação básica, em vigor a partir de 2021;
- Investimento em ações de prevenção com instrumentos que viabilizem a transparência pública e o controle social.
Assinam esta carta as seguintes organizações negras e organizações políticas aliadas às lutas das mulheres negras no enfrentamento a violência doméstica, familiar e feminicídio na Bahia:
- Articulação de Mulheres Brasileiras – BA (AMB)
- Associação Comunitária Quilombola Amigos do Agreste
- Associação de Mulheres da Timbalada
- Associação de Remanescentes do Quilombo Urbano Largo da Vitória
- Associação dos Remanescentes de Quilombo Vila Guaxinim
- Associação Mulheres Sertão (AMS)
- Associação Papo de Mulher
- Associação Rede Elas Negras Conexões
- Caminhada LésBi de Salvador
- Casa Marielle Franco Brasil
- Coletiva MAHIN
- Coletivo Angela Davis
- Coletivo de Mulheres de Feira de Santana
- Coletivo de Mulheres do Calafate
- Coletivo Mulheres em Luta
- Coletivo Mulheres Presentes
- Fórum Baiano LGBT+
- Frente Nacional de Mandatas e Mandatos Coletivos
- Grupo de Trabalho Sobre Feminicídio (GT FEM)
- Grupo de Mulheres Mãos de Aroeira- Sertão Produtivo
- Instituto Coletiva de Mulheres Negras de Vera Cruz – BA (IVELCRUZ)
- Instituto Negra do Ceará (INEGRA)
- Kilombo – Organização Negra do RN
- Núcleo de Mulheres do Rosarinho
- Odara – Instituto da Mulher Negra
- ONG Mulher por Mulher
- Rede de Mulheres Negras do Ceará
- Rede de Mulheres Negras do Nordeste
- Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA)
- Revista Afirmativa
- Tamo Juntas
- Rede de Mulheres Negras da Bahia
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