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Chacinas de Verão em Salvador: Sol, mar e festas  para os turistas; massacre e genocídio para o povo negro das periferias da cidade

O verão de Salvador é um espetáculo para turistas: sol, mar, descanso, busca espiritual, festas e celebrações. Mas para quem não está na orla ou no centro, desfrutando da imensa grade de eventos e atrações, ou nas praias aproveitando o clima maravilhoso tipicamente soteropolitano, a cidade revela um lado bem diferente, marcado por violências raciais inerentes ao suposto paraíso tropical da diáspora africana, e que não vira assunto nas redes da @Prefs – persona ingrata do instagram da Prefeitura de Salvador.

Então vamos lá, falar do que nem a Prefs, nem o Governo do Estado, nem as páginas de dicas sobre a cidade mostra. Há 10 anos, em fevereiro de 2015, poucos dias antes do maior Carnaval do mundo, na Vila Moisés, no bairro do Cabula, em Salvador, 12 jovens negros (entre 16 e 27 anos) foram executados pela Polícia Militar da Bahia, durante um episódio que ficou internacionalmente conhecido como A Chacina do Cabula. Entre as vítimas, quatro eram adolescentes.

Os jovens tinham nomes, histórias e sonhos: Caique Bastos dos Santos, 16; Natanael de Jesus Costa, 17; Rodrigo Martins de Oliveira, 17; Tiago Gomes das Virgens, 18; Bruno Pires do Nascimento, 19; Agenor Vitalino dos Santos Neto, 19; Vitor Amorim de Araújo, 19; Adriano de Souza Guimarães, 21; João Luis Pereira Rodrigues, 21; Jeferson Pereira dos Santos, 22; Evson Pereira dos Santos, 27 anos; e Ricardo Vilas Boas Silva, 27.

Na ocasião, a PM alegou que teria apenas reagido a disparos de arma de fogo supostamente iniciados pelas vítimas. Na época, a corporação informou, em nota, que o tiroteio aconteceu após denúncias de que um grupo planejava roubar um banco na região. Com os jovens, segundo a polícia, teriam sido encontrados revólveres e armas de grosso calibre, como espingarda, além de cinco coletes de camuflagem utilizados pelo Exército. No entanto, posteriormente, a apreensão foi negada.

Nos corpos das vítimas haviam marcas de tortura como braços quebrados e olhos afundados. Parte dos disparos foi realizada de cima para baixo. Além disso, algumas das vítimas apresentavam perfurações na palma da mão, braços e antebraços. Os laudos também apontam que a maioria apresentava pelo menos cinco marcas de tiros — alguns deles disparados a curta distância, de menos de 1,5 metro. De acordo com as investigações cadavéricas do Departamento de Polícia Técnica (DPT), divulgados pelo Correio 24 Horas, um dos jovens foi atingido por um disparo que entrou na base da cabeça e saiu pelo queixo, evidenciando a proximidade do tiro. Os exames também identificaram perfurações que atravessaram simultaneamente braços e antebraços, indicando tentativas de defesa. Testemunhas afirmaram que os doze meninos e homens estavam desarmados, não houve confronto, eles foram rendidos e espancados antes de serem conduzidos a um campo de barro, cercado por matagal e lá, executados.

Após a divulgação da chacina na mídia, na manhã do dia 6 de março, o então governador da Bahia (PT-BA) e atual ministro da Casa Civil, Rui Costa,  parabenizou os policiais responsáveis pela chacina, pela  frieza e a calma necessárias para tomar a decisão certa:

“É como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol”, comparou. “Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão”, continuou

Rui Costa se tornou assim um dos grandes protagonistas da sequência de horrores da Chacina do Cabula: violando a memória das vítimas; revitimizando suas famílias; demonstrando ser um gestor irresponsável, racista, que não apura os fatos antes de dá declarações oficiais, supondo que adolescentes e jovens negros são criminosos por natureza; incitando o ódio, a desordem, o não cumprimento de leis, deixando a entender que acusados de cometer crimes devem ser mortos pela polícia, sendo que não há pena de morte no Brasil. 

Após a denúncia, o caso passou a ser investigado e o Ministério Público fez a denúncia apontando indícios de execução. Em julho do mesmo ano, apenas 5 meses após a chacina, a ação criminal foi julgada pela juíza Marivalda Almeida Moutinho, absolvendo os acusados. Essa decisão evidencia o racismo institucional do sistema de justiça, sobretudo considerando que a anulação da sentença pelo Tribunal de Justiça da Bahia só ocorreu em 2018. E hoje, o processo que tem alto interesse público, especialmente dos movimentos negros e outros seguimentos de defesa dos direitos humanos, corre em segredo de justiça.

Mas o racismo no sistema de justiça não se restringe ao âmbito estadual uma vez que, mesmo com a declaração do ex-governador e a evidente parcialidade do Tribunal de Justiça da Bahia para prosseguir no julgamento do caso, o Superior Tribunal de Justiça negou a federalização do processo mantendo-o sob o forte risco de tráfico de influência nas instituições baianas.

Os PMs envolvidos nos 12 homicídios seguem trabalhando normalmente.

Em 2022, sete anos depois, a história se repetiu na Gamboa de Baixo. Na madrugada de 1º de março, terça-feira de carnaval, o adolescente Patrick Sousa Sapucaia, de 16 anos; e os jovens Alexandre Santos dos Reis, de 20 anos, e Cléverson Guimarães Cruz, de 22 anos, comemoravam a folia carnavalesca em um bar na comunidade, quando foram levados por agentes do Batalhão de Rondas Especiais da Polícia Militar da Bahia (Rondesp) para uma casa abandonada, onde foram executados.

Na época, os moradores relataram que os PMs chegaram no bairro de madrugada, atirando e jogando gás lacrimogêneo sem qualquer motivação. Enquanto isso, a versão sustentada pela PM dizia que os policiais respondiam à uma ocorrência de sequestro, quando foram recebidos a tiros pelos jovens, que teriam sido atingidos no revide, e com quem os agentes teriam encontrado armas e drogas.

No entanto, com base nas investigações e laudos periciais da simulação dos crimes, restou comprovado que os policiais “plantaram” armas de fogo, como se tivessem sido utilizadas pelas vítimas e, além disso, lavaram as poças de sangue das escadarias da comunidade utilizando vassouras, baldes e água dos moradores – para encobrir as provas.

O Ministério Público da Bahia denunciou quatro policiais envolvidos na chacina pelo crime de fraude processual. Na denúncia, o órgão argumenta que os agentes “alteraram, substancialmente, a cena do crime em diversos momentos, objetivando apagar os rastros dos homicídios”.

A acusação do MP detalha ainda que os agentes teriam retirado os corpos de Alexandre, Cléverson e Patrick, já sem vida, enrolaram em lençóis e então levaram para o Hospital Geral do Estado (HGE). 

A investigação aponta que a ação tinha por objetivo, de acordo com a MP- BA: “sustentar a falsa versão de que os policiais teriam sido ‘recebidos a bala’ quando passavam pela Avenida Contorno, iniciando a perseguição dos jovens até uma casa abandonada, onde teria ocorrido confronto armado, do qual teriam saído feridas as vítimas às quais os PMs teriam prestado socorro”. Versão contestada pelas provas técnicas da investigação.

Desta vez, diferente de 2015, o então governador Rui Costa preferiu manter o silêncio e não se pronunciar sobre a chacina.

A sensação de reviver as mesmas histórias é angustiante. Um sistema de justiça e segurança pública racista que escancara a sua intenção de não defender as vidas e os direitos da população negra, e que atua a partir da prática cotidiana do genocídio e violência racial. As famílias, além da dor de enterrar seus filhos, pais e irmãos, ainda precisam lutar contra as instituições jurídicas para que a dignidade de suas vítimas não seja apagada por narrativas falaciosas e  simbolicamente violentas.

A PM-BA, por sua vez, continua se valendo de versões forjadas e de uma violência legitimada pelo discurso da “guerra às drogas”. O modus operandi é sempre o mesmo: incursões violentas, execuções sumárias e alteração da cena do crime para encobrir os assassinatos.

SALVADOR É PARAÍSO PARA QUEM?


A capital baiana é vendida como a terra da alegria, do Carnaval e festas intermináveis, das belas praias e das riquezas culturais. Mas para quem?
Enquanto o povo negro faz a cidade acontecer a partir de nossa força de trabalho, cultura, arte, intelectualidade e resistência, nos bairros populares a polícia extermina essa mesma juventude negra que estampa cartões postais e são linha de frente de todos os serviços. Nas praias, a juventude negra segue trabalhando sob o calor escaldante e condições insalubres, enquanto os grandes hotéis, que lucram com a cidade, se distanciam dessa realidade.

As chacinas do Cabula e da Gamboa expõem as contradições dessa cidade que celebra sua negritude enquanto extermina sua população negra. A cada verão, enquanto o circuito do Carnaval ganha reforço policial para proteger turistas, a periferia segue exposta às operações da PM, que atuam como um esquadrão da morte.

Os verões de Salvador são repletos de música, cor e alegria. Mas também carregam os tiros que matam jovens negros. O sol brilha para alguns, para outros, é a sombra da morte que paira no ar.

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