Coluna Beatriz Nascimento #2 Gabriely Varela
Durante os meses de agosto e setembro, veremos por aqui, a escrita insubmissa de mulheres negras na Coluna Beatriz Nascimento, uma exposição dos produtos das mulheres participantes da 3ª Turma da Escola de Ativismo e Formação Política para Mulheres Negras – Beatriz Nascimento e o segundo produto é uma carta destinada às mulheres negras brasileiras e escrita pelas mãos da Gabriely Varela.
A seguir, leia a carta na íntegra.
Natal, 20 de julho de 2022
Carta às mulheres negras do Brasil,
Este ano, 2022, marcamos a 10ª edição do Julho das Pretas. Ação de incidência política que mobiliza mulheres do Brasil inteiro, sobretudo nordestinas, para a construção de uma agenda conjunta onde são colocadas em pauta desafios e estratégias de mobilização para o Bem Viver, não apenas das mulheres, mas de toda a comunidade negra brasileira.
Após dois anos intensos marcados pela pandemia causada pelo covid-19, e a impossibilidade da realização de atividades presenciais, saímos das nossas cidades em marcha. Reivindicando nosso direito a vida, à liberdade e ao Bem Viver, que por mais de 400 anos, e até então, vem sendo usurpados por um Estado genocida que tenta de todas as formas apagar a nossa história e as contribuições dos povos negros na construção desse país. A colonialidade não vai mais usurpar a nossa consciência!
Somos múltiplas, estamos presentes nos mais diversos espaços sociais, na educação, na cultura, na política e em tantas outras áreas, perpetuando nossos saberes e construindo nossas histórias. Nossos respeitos são para todas aquelas que vieram antes de nós, abrindo os caminhos através de muito sangue derramado, silenciamentos e falta de oportunidades. Mães, avós, iyalorixás, nossas ancestrais. Hoje, após duzentos anos de uma falsa abolição, nossas realidades ainda modificam-se a passos lentos. Estamos na política, mas ainda somos poucas e nos matam, estamos nas universidades, mas a produção do nosso conhecimento ainda segue sendo questionada. Não queremos usar os clássicos, queremos usar a nossa poesia. Estamos nas artes, apesar das faltas de incentivo e boicotes. Nossa cultura popular vive e pulsa nos fazendo perceber a importância da sankofa. Estamos nos terreiros cuidando dos nossos; e apesar de que há mais de 60 anos nossas práticas religiosas não são mais consideradas crime, ainda continuam a nos apedrejar e a profanar nossos cultos, desrespeitando nossas entidades, nossos orixás, nossos inkices e voduns.
Carla Akotirene, intelectual baiana, já tem nos falado sobre a forma como a interseccionalidade afeta nossas vidas enquanto mulheres negras. Assim, raça, classe e gênero atuam de maneira conjunta em nossas vidas. As produções de Carla, e de nossas outras intelectuais atuais, reverberam e dialogam com tantas outras que no campo acadêmico deixaram suas contribuições insubmissas e dissidentes daquilo que teóricos brancos insistem em defender como verdades absolutas. Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento também derramaram suas águas reivindicando outras perspectivas epistemológicas, chamando atenção para nossa realidade e discutindo aquilo que nossa querida e grande referência literária Conceição Evaristo chama de escrevivências. Escrever sobre o que se vive, escrever sobre o que se sente, também é um legado deixado por elas.
Hoje damos continuidade a esse legado histórico, nossas crianças já podem ter contato com livros em que podem se enxergar e se orgulhar e somos nós as escritoras, tomando as rédeas das nossas vidas e construindo narrativas a partir dos nossos próprios valores civilizatórios. Com nossas pretagogias, ensinamos nossas meninas e meninos a terem orgulho de quem são, nos tornamos protagonistas de nossas histórias ensinando e aprendendo junto deles.
Assim, mesmo com tantos desafios, exercemos nosso poder e autoridade deixada pelas nossas ancestrais. Dentro dos centros sociais e associações das nossas comunidades, nos coletivos e organizações políticas, nas escolas e nas universidades, em nossas comunidades religiosas e em todos os grupos que fazemos parte. Onde estamos entre nós, buscamos o Bem Viver. Esta não é uma fala que segue um viés de romantização. Como já dito tantas vezes, os entraves são muitos e as dificuldades são diárias. Esta é uma fala que busca trazer à tona os diversos caminhos que temos percorrido, as múltiplas estratégias de luta e o desejo coletivo incansável de mudança. Estamos dando continuidade a esses passos que vieram de longe para que nossos filhos e filhas possam caminhar ainda mais, que não sejam vistas e vistos como meros números em estatísticas. Num país que os reconheça e que os valorize em sua diversidade, num país em que possamos todas e todos vivermos.
A nossa busca pelo Bem Viver começa com a nossa (re)tomada de poder, sempre estivemos à frente nas lutas do nosso povo. Que não esqueçamos de Dandara, de Tereza de Benguela e de todas as vozes que nunca se deixaram silenciar pelo colonialismo, pelo patriarcado e por todas as tentativas e métodos de eliminação de nossas existências. Somos grandes, pássaros bonitos voando em busca da liberdade, a força iyalodé derrama mel e flores em nossos caminhos para que possamos passar, não podemos e não vamos parar.
Seguimos juntas! Que Oxum nos abençoe.
Gabriely Nascimento Varela.
Sobre Gabriely Varela
Nascida e criada no litoral potyguar, candomblecista e D’Oxum. É formada em Serviço Social, Mestranda em Antropologia pela UFRN e especialista em História e Cultura Afro-brasileira. É multiartista e desenvolve trabalhos na escrita, por meio da poesia/slam, e nas artes visuais. Também é compositora e artesã. Brincante da cultura popular, faz parte como batuqueira e uma das cantoras da Nação Zambêracatu, primeira Nação de maracatu do Rio Grande do Norte. É criadora e administradora da página @colapretta onde compartilha seu trabalho de artes visuais no campo da arte gráfica digital, através das colagens. Sua arte, de maneira geral, tem como referencial a afrocentricidade, o afrofuturismo e os valores civilizatórios africanos do continente e da diáspora, um dos principais objetivos da arte que cria é apresentar outros olhares e contribuir para a construção de novas narrativas e perspectivas sobre a ancestralidade negra.
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