“Eu só queria viver”: Oito anos após tentativa de transfeminicídio na cidade de Presidente Dutra (BA), o caso Bárbara Trindade segue em passos lentos

No próximo dia 29 de julho, às 9h, será realizado em frente ao Fórum de Irecê – BA o “Ato Justiça por Bárbara Trindade”, no mesmo dia do júri popular dos acusados pela tentativa de transfeminicídio
Por Redação Odara
Na noite de 2 de abril de 2017, em Presidente Dutra, cidade do interior da Bahia, a jovem Bárbara Trindade, então com 21 anos, foi baleada duas vezes numa tentativa de transfeminicídio. O primeiro disparo atingiu o seu maxilar. O segundo, sua coluna e a deixou tetraplégica. Desde então, ela enfrenta as consequências de um crime que carrega as marcas profundas da transfobia e da impunidade.
Oito anos depois desse dia que marcou a sua vida para sempre, os responsáveis seguem sem julgamento e responsabilização. Em contrapartida, Bárbara, agora com 29 anos, vive em São Paulo, sem acesso pleno à justiça, e com o corpo transformado por um crime motivado pelo ódio e transfobia.
A tentativa de transfeminicídio aconteceu após uma troca de mensagens por redes sociais. Bárbara estava na cidade para cuidar da mãe que na época estava doente. O agressor usou um perfil falso com foto do frentista Domingos Mendes, para atrair a vítima ao local, mas quem orquestrava, segundo o Ministério Público, era o ex- policial militar Paulo Roberto Ferreira Machado. Os dois respondem por tentativa de homicídio qualificado com motivo torpe, uso de disfarce e impossibilidade de defesa da vítima. Nenhum dos dois foram julgados.
O encontro foi marcado nas proximidades de uma igreja em construção, numa área escura, a poucos metros da casa onde ela estava. Depois de atirar, os homens fugiram de moto. Bárbara conta que permaneceu no chão, tentando gritar por socorro, até que foi resgatada e levada ao Hospital Regional de Irecê. A transferência para Salvador, onde seria submetida a cirurgia na medula, demorou dias. O atraso agravou seu quadro clínico e contribuiu para a perda irreversível dos movimentos.
“Quando virei pra trás, ele estava com um revólver. Olhei pra ele e, nesse momento, ele deu o primeiro tiro”, relata Bárbara. “Cai pra trás, bati a cabeça. Ainda tentei levantar. Foi quando ele voltou e deu o segundo tiro. Atingiu o pescoço. Na hora, perdi os movimentos.”
O caso foi tratado com desdém pelas autoridades locais. A ativista denuncia que houve negligência desde os primeiros momentos da investigação: “Foi um descaso total. Tentaram abafar. Tentaram me comprar, comprar a minha família”, afirma.
Ela ainda relata que recebeu ofertas de dinheiro, eletrodomésticos e ajuda financeira em troca do silêncio. As investidas teriam vindo de pessoas ligadas à família de um dos acusados. “Eles queriam que eu entendesse que o filho deles também era uma vítima”, conta. “Uma tia e uma prima dele foram até o hospital ver como eu estava, mas com a intenção de apagar tudo.”
A prisão de Domingos Mendes aconteceu nove meses após o crime. Já o ex-policial Paulo Roberto, apontado como mentor da ação, segue em liberdade. A denúncia formal só avançou depois de intensa pressão feita por familiares e militantes da cidade. O caso chegou a ativistas do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que passaram a acompanhar e dar suporte a Bárbara.
“Minha família ligava todos os dias para as rádios da cidade. Foi o PSOL que inicialmente me ajudou. No início, ninguém acreditava em mim. Porque eu era uma travesti, pobre, de família humilde. Isso invalidou a minha palavra desde o começo.”
O QUE SIGNIFICA VIVER QUANDO O ESTADO DECIDE QUE SUA EXISTÊNCIA É DESCARTÁVEL?
O Brasil segue liderando o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans. Segundo levantamento da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), em 2023, 131 pessoas trans foram assassinadas no país. Destas, 76% eram negras. A maioria dos casos não resulta em prisão nem julgamento.
Oito anos após sofrer a tentativa de transfeminicidio, Bárbara tenta seguir. Ela alimenta sua autonomia como pode, e reivindica políticas públicas que garantam o direito de viver com dignidade: “Hoje, conseguir comer sozinha pra mim já é uma vitória. Eu sou a prova de que a gente sobrevive. Mesmo que o sistema não queira. Eu tô aqui.”
Compreender as armadilhas que atravessam o corpo de uma mulher trans no Brasil é encarar um Estado que falha em garantir o mínimo: lei, segurança, saúde, educação, dignidade. Bárbara foi mais uma entre milhares de vítimas da transfobia. Mas, diferente de tantas outras, ela sobreviveu.
“Peço que não invalidem a nossa vida. Que não tirem a nossa paz. A gente só quer viver do nosso jeito. Sem invadir o espaço de ninguém. Só isso: viver.”
O ATIVISMO COMO FORMA DE SOBREVIVÊNCIA
Foi no hospital que Bárbara conheceu militantes do partido. Uma das visitas feitas por acaso se transformou em rede de apoio. “Antes disso, eu não sabia nada sobre política. A menina ouviu falar do caso no hospital, perguntou se podia conversar comigo. Contei tudo. Depois ela voltou com outros dois ativistas. Foi assim que tudo começou.”
A experiência com a violência levou Bárbara a compreender as estruturas que sustentam o apagamento de pessoas como ela. “A gente só quer viver. Só quer o nosso espaço. Não queremos tomar o lugar de ninguém. Mas nossa vida é invalidada desde que a gente nasce.”
Desde então, ela passou a participar de espaços de militância LGBTQIA+, e segue como voz ativa em defesa de outras pessoas que vivem sob ameaça. “Quantas outras morreram e não estão aqui pra contar?”, questiona. “Eu só tô conseguindo correr atrás porque sobrevivi.”
Após o crime, Bárbara e a mãe deixaram o interior da Bahia e foram para São Paulo. Segundo ela, a decisão foi motivada principalmente pela dificuldade de acesso ao atendimento médico. “Era uma cidade muito pequena. Sempre que eu precisava de algo, tinha que ir pra cidade vizinha de ambulância. Aqui [em São Paulo], é mais acessível.”
“NÃO QUERO VINGANÇA, QUERO JUSTIÇA!”
O processo contra os dois réus segue em tramitação. Os autos foram unificados, mas a ação ainda não chegou ao julgamento pelo Tribunal do Júri. O tempo se arrasta, e Bárbara teme que o caso caia no esquecimento.
“Não quero que paguem por algo que não fizeram. Mas quero que respondam pelo que cometeram. O crime foi planejado. Fui atraída para uma emboscada. E ainda tentaram esconder tudo depois.”
Bárbara recebe assistência multidisciplinar das ONGs TamoJuntas – Assessoria Jurídica Feminista e do Odara – Instituto da Mulher Negra, com foco no acompanhamento dos processos das audiências de instrução e julgamento, prestação de serviços assistenciais, comunicação e mobilização sobre o caso, tendo em vista o apoio à vítima e familiares, bem como a incidência política na agenda de enfrentamento à violência doméstica, família, feminicídio e transfeminicídio.
No próximo dia 29 de julho, a partir das 9h, será realizado o “Ato Justiça por Bárbara”, em frente ao Fórum de Irecê – BA, no mesmo dia do júri popular dos acusados pela tentativa de transfeminicídio contra Bárbara.
O ato tem como objetivo pressionar o Judiciário pela responsabilização dos envolvidos no crime, fortalecer a memória de Bárbara, e exigir que o caso seja tratado com a seriedade que merece.
A mobilização contará com a presença de familiares, amigas, movimentos sociais, organizações de direitos humanos e ativistas da luta contra a transfobia.
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