Feliz Dia das Mães para quem?
A luta de mulheres que tiveram suas filhas e filhos arrancados pela violência do Estado
O segundo domingo de maio é uma das datas comemorativas mais importantes do calendário de feriados brasileiros: o Dia das Mães. Na maioria dos lares, é comum que este seja um dia de celebração com comidas, bebidas, presentes e homenagem às matriarcas das famílias. De forma geral, é um dia de alegria, de agradecimento às mulheres que geraram, adotaram ou criaram.
No entanto, para milhares de mulheres negras, é um dia de tristeza, dor, saudade e revolta porque suas filhas e filhos lhe foram tirados de forma precoce pelas mãos de policiais a serviço do Estado. Foi para chamar a atenção para casos assim que um grupo de mães, que integram o projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, se reuniram na última quinta-feira, 12 de maio, na frente do Fórum Ruy Barbosa, em Salvador (BA).
O ato público “Mães até o fim: em memória das filhas e filhos vítimas do extermínio” foi realizado para pedir justiça e reparação pelos assassinatos cometidos pela Polícia Militar contra crianças e adolescentes negras e negros de Salvador.
“Essas mães não estão pensando em qual presente vão ganhar no domingo. Não estão pensando no que vão fazer para almoçar com seus filhos, porque seus filhos não estão mais aqui. As vidas deles foram tiradas pelo Estado, essa grande instituição que deveria ser preservadora das vidas de todos nós”, dizia ao público Gabriela Ramos, coordenadora do projeto Minha Mãe Não Dorme.
Dentre as mães que protestavam, algumas já vêm de uma luta de mais de 10 anos buscando por justiça, como é o caso de Nadijane Macedo, mãe de Alexandre Macedo Fraga, morto aos 17 anos, em 2008, pela Polícia Militar da Bahia (PM-BA).
Outras ainda lutam para ter direito a um processo criminal que possa responsabilizar os culpados, como Joselita Silva, mãe do menino Micael Silva Menezes, morto em 2020, com apenas 11 anos de idade pela PM- BA.
Outras já têm mais tempo de luta por justiça do que puderam desfrutar com suas crianças, como Edineide Barbosa, que neste dia 12 de maio, estaria celebrando o aniversário de 13 anos da sua pequena Mirella do Carmo Barreto, que foi baleada e morta pela PM dentro de sua própria casa, em 2017, quando tinha apenas 6 anos.
“Eu tive que sufocar o luto para ir à luta”
Quem vê dona Nadijane Macedo, uma mulher tão doce e alegre, talvez jamais imagine a dor que ela vem carregando durante os últimos 15 anos. Em suas próprias palavras, ela explica: “Eu tive que sufocar o luto para ir à luta”.
Com 56 anos, ela é nascida e criada em Salvador. Compartilhou de uma infância e adolescência tranquilas junto às seis irmãs e um irmão. Ela conta que esse espaço familiar calmo lhe manteve distante de situações de violência por muitos anos, até que a violência foi introduzida na família pelo próprio Estado.
Quando tinha 23 anos, Nadijane foi mãe pela primeira vez, do menino Alexandre. Foi naquele momento que descobriu o que é “amar sem limites” e passou a fazer de tudo o que estava ao seu alcance para proteger seu filho.
“Ser mãe é um amor incondicional. Não tem como explicar. Era uma sintonia incrível. Eu me comunicava com Alexandre só pelo olhar. Tudo isso foi interrompido”,
afirma Nadijane.
Alexandre cresceu e se tornou um adolescente estudioso, de quem Nadijane se orgulhava. Ela conta que o garoto adorava bichos, jogava futebol todas as tardes e era fascinado por tudo que envolvia motocicletas. Estava cursando o ensino médio e já se encaminhando para servir à Marinha. Depois disso, o plano era estudar direito e se tornar Promotor de Justiça.
“Eu sempre procurei manter meus filhos perto dos esportes e longe das drogas”,
conta a mãe de Alexandre.
Na noite de 19 de janeiro de 2008, Alexandre e alguns amigos passeavam a bordo de motocicletas na região de Porto Seco Pirajá, em Salvador (BA). O garoto estava feliz porque havia passado de ano na escola e, como recompensa pelo esforço nos estudos, seu pai lhe emprestou a moto e permitiu que ele fosse se divertir com os amigos naquela noite.
Por volta das 21:15h Alexandre e seus amigos voltavam para casa quando ele foi atingido na região da nuca, por um policial que estava em uma viatura com os faróis apagados. Segundo as testemunhas, os policiais colocaram Alexandre na viatura informando que iriam prestar socorro, mas só às 23:45h a viatura chegou ao Hospital Geral do Estado (HGE), onde já estavam o pai e os amigos em busca de informações.
“Eu fui até o hospital achando que meu filho tinha sofrido um acidente de moto. Como eu ia imaginar que um menino que não bebia, não fumava e frequentava a igreja evangélica, ia tomar tiro da polícia?”,
questiona Nadijane.
Em sua versão sobre o caso, a Polícia Militar afirmou que estava procurando por suspeitos de uma tentativa de assalto que estariam a bordo de uma moto na região, que houve uma troca de tiros e Alexandre foi atingido. Inconformada, Nadijane conta que passou a se dedicar incansavelmente para fazer justiça e para que seu filho não fosse lembrado como um marginal.
A partir daí, a vida dessa mãe passou a ser resumida em longas tardes na porta de fóruns esperando encontrar alguém que pudesse lhe ajudar, horas e horas de audiência, cartas à mídia e ao governo e entrevistas aos canais de televisão local.
Graças à sua persistência, em 2018, um dos policiais envolvidos no crime, Idelson de Jesus, foi condenado em júri popular a 12 anos de prisão em regime fechado por homicídio qualificado por motivo fútil à traição de emboscada. O policial chegou a recorrer, mas teve o recurso negado. No entanto, Idelson continua em liberdade. Em 16 de março de 2021, foi emitido contra ele um mandado de prisão que segue em aberto. Para Nadijane “a justiça não foi feita”.
Ela atualmente é articuladora do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, onde orienta e organiza outras mães e familiares de vítimas do Estado. “Ajudar outras mães é uma forma de amenizar a minha dor”, afirma Nadjane.
A fé na justiça
Joselita Silva é uma mulher evangélica de 49 anos que vive no Complexo do Nordeste de Amarlina, em Salvador. Ela conta que é fruto de um relacionamento interracial entre uma mulher negra e um homem branco. Desde a infância, ajudava sua mãe a fazer faxinas e trabalhava para alguns vendedores do Centro de Abastecimento da Bahia (Ceasa) em troca de frutas e verduras. “Minha infância teve fases difíceis, mas teve coisas boas também”, afirma.
Ainda muito jovem teve o seu primeiro filho e diz que não se arrepende “porque filho é bênção de Deus”, mas que se tivesse a mesma cabeça de hoje em dia, nunca teria engravidado, a menos que estivesse com a vida bem estruturada. “Se eu fosse pensar, eu não teria nenhum, mas eu não tinha mente, não tinha cabeça. Foi burrice minha”, explica ela.
Apesar de, como grande parte das mulheres negras, não ter planejado suas gravidezes, ela conta que é apegada às suas filhas e filhos, e que não era diferente com o pequeno Micael. O menino, que ela define como “alegre e brincalhão” foi diagnosticado com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e era Joselita quem o levava para fazer acompanhamento psicológico no Centro de Referência da Assistência Social (Cras) do Nordeste de Amaralina.
Micael sonhava em se tornar jogador de futebol para mudar a vida da família. Ele fazia aulas de futebol em uma escolinha do bairro e também era a mãe quem o acompanhava para os treinos.
No dia 14 de Junho de 2020, Micael acordou animado e saiu para brincar na rua. Com a ajuda do pai, naquele dia Micael desfrutou de um dos seus passatempos preferidos: empinar arraia. Um pouco mais tarde, ainda brincando pelas ruas do Vale das Pedrinhas, o menino e um amigo ganharam um cachorro-quente e um refrigerante de uma conhecida. Foi a sua última refeição. Micael foi vítima de mais uma incursão da Polícia Militar, que adentra as favelas com truculência e sedenta por sangue negro.
Quando foi informada pelos vizinhos que seu filho havia sido baleado pela PM, Joselita e Maurício, seu companheiro, ficaram desesperados e andaram cerca de 5km até o Hospital Geral do Estado (HGE). Além do corpo de Micael, dentro da sala do hospital, dona Joselita se deparou com um policial militar que, segundo ela, estava todo ensanguentado, e por isso ela acredita ser o autor do disparo que matou seu filho. Revoltada, disparou ao soldado: “Você vai ficar louco, maluco, sem paz na sua vida”.
Como sempre a versão oficial da Polícia Militar alegou que foi recebida a tiros na comunidade. Moradores da localidade negam que tenha havido troca de tiros na ocasião que Micael morreu.
A morte de Micael completa 3 anos em 2023. O caso ainda está na fase de inquérito, conduzido pela própria polícia, o que significa que ainda não se tornou um processo criminal contra os policiais envolvidos – André Pereira de Aguiar; André Barone Santos Sampaio; Vinícius Ariel Costa Piedade e Marlou Reis Santos. Mesmo abatida, Dona Joselita segue lutando por justiça para seu filho.
“A justiça do homem pode falhar, mas eu sei que a de Deus não falha. Eles vão pagar pelo que fizeram”,
desabafa Joselita.
Edineide e o sonho interrompido
Edineide Barbosa do Carmo tem 48 anos e trabalha como recepcionista e telefonista. Na infância, enquanto sua mãe trabalhava para sustentar sete filhas e dois filhos, ela e suas irmãs brincavam, estudavam e cuidavam umas das outras.
Desde que consegue se lembrar, um dos seus maiores sonhos sempre foi construir sua própria família e ser mãe. Ela conta que pediu a Jeová que lhe permitisse essa bênção e que ficou muito agradecida quando soube que seria mãe de uma menina.
Quando sua filha, Mirella do Carmo Barreto, nasceu, a alegria que Edineide imaginava se concretizou. Para ela, era um prazer acordar todos os dias para arrumar a pequena, preparar seu lanche e levá-la até a escola. Aos finais de semana, a família costumava fazer passeios ou ficar em casa brincando com a menina em sua piscina de plástico. Mirella adorava jogar baralho, dançar e se maquiar.
“Ser mãe é uma coisa muito especial. É uma bênção. Graças a Deus eu tive essa oportunidade”,
conta Edineide.
A menina tinha muitos momentos divertidos com a mãe, de quem gostava de pentear os cabelos e massagear as costas. Também era Edineide quem ajudava a filha a pentear os cabelos de suas bonecas. E foi quando a mãe sofreu um acidente de moto e precisou passar por sessões de fisioterapia que Mirella decidiu que seria uma fisioterapeuta um dia para poder cuidar das pessoas da mesma forma que cuidaram de sua mãe.
Na sexta-feira, dia 17 de março de 2017, as brincadeiras de Mirella e a sonhada maternagem de Edineide foram interrompidas pela bala da Polícia Militar do estado da Bahia. A garota foi atingida quando estava na cobertura de casa, estendendo roupas com a mãe, no bairro de São Caetano, em Salvador. A mesma cobertura onde a família compartilhou inúmeros momentos de felicidade.
“Todo dia das mães é um sofrimento muito grande pra mim. Fui impedida de viver o resto da minha vida com a minha filha”,
diz a mãe de Mirella.
Mais uma vez, a polícia alegou que foi recebida a tiros na comunidade e que, ao revidar, Mirella acabou sendo atingida. Mais uma vez, as testemunhas negaram que tenha havido troca de tiros.
O caso de Mirella está sob a tutela do 2° Juízo da 2ª Vara do Júri. Apesar de Mirella ter sido vitimada numa incursão policial, apenas um dos policiais envolvidos na ação foi indiciado e está respondendo criminalmente, Aldo Santana do Nascimento, que foi o autor do disparo. Uma audiência de instrução está agendada para o próximo dia 30 de maio. A audiência ouvirá os depoimentos das testemunhas e do perito para a produção de provas e desenvolvimento das próximas etapas do processo.
“O que nos resta é pedir justiça para que não aconteça o mesmo com outras mães”,
afirma Edineide.
Se estivesse viva, Mirella teria completado 13 anos na última sexta-feira, dia 12 de maio.
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