Juventudes Negras de Salvador criam narrativas e informações sobre suas comunidades

*Por Redação Odara
Quem produz os dados que contam a história das comunidades negras? Quem decide o que deve ser medido, registrado e levado em conta na formulação das políticas públicas? Durante muito tempo, esse papel esteve restrito a instituições distantes da realidade da periferia, que olham para a juventude negra apenas a partir da lente da violência. Mas essa lógica vem sendo tensionada por iniciativas que colocam os próprios jovens como produtores de informação e protagonistas da mudança.
É com esse espírito que o Odara – Instituto da Mulher Negra realiza, em Salvador, mais uma etapa do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar (MMND). A proposta da vez é formar jovens pesquisadores negras e negros, moradores dos bairros do Cabula e do Complexo do Nordeste de Amaralina, para produzirem dados e narrativas a partir de suas próprias vivências e territórios. A atividade, acompanhada pelo Núcleo de Juventudes Odara, aposta na Geração Cidadã de Dados como estratégia de enfrentamento ao racismo e promoção da justiça social. A formação teve início no dia 17 de maio.
A nova turma é formada por jovens que já participaram de outras formações oferecidas pelo projeto, com foco em cultura de paz, acesso à justiça e direitos humanos. Desta vez, a proposta avança no sentido de dar ferramentas e linguagem para que esses jovens passem a gerar, analisar e comunicar dados que revelem não apenas as violências sofridas, mas também as potências que emergem das periferias negras da cidade.
“Essa formação parte do entendimento de que as juventudes negras não podem ser definidas apenas pelas violências que sofrem. É preciso olhar para seus sonhos, desejos e propostas. É a partir dessa escuta que se constrói um novo projeto de futuro para essas comunidades”, explica Gabriela Ashanti, coordenadora do MMND.
A metodologia propõe o deslocamento da ideia tradicional de produção de dados, geralmente concentrada em instituições distantes das realidades que analisam, para uma lógica de autonomia e escuta ativa dos territórios. Para Sophia Ayana, jovem mobilizadora do MMND, e moradora do Nordeste de Amaralina, a construção tem sido reveladora.
“Somos acostumados com dados hegemônicos, que não acessam as comunidades negras da Bahia. Ter autonomia para gerar informações sobre minha comunidade é uma chave importantíssima para pensar um novo projeto de existência. Ao produzir dados, revelamos contradições, como o fato de o Estado que gere a educação também ser o que, por meio da segurança pública, impede o acesso à escola por conta das operações policiais”, relata.
Esse impacto direto das ações do Estado sobre o direito à educação tem sido um dos temas mais debatidos pelos jovens, especialmente pelos que vivem no Complexo do Nordeste de Amaralina, onde operações policiais frequentemente impedem o deslocamento de estudantes. A ausência de aulas e a falta de políticas reparadoras chamam a atenção e serão foco de levantamento de dados feito pelos próprios jovens.
Brenda França, também mobilizadora do MMND no território do Cabula, reforça que a geração cidadã de dados vai além da coleta de números:
“Cada história pessoal e comunitária é um dado político. O estudo de Geração Cidadão de Dados nos mostra que é preciso mapear não só as violências, mas também as potências dos nossos territórios. A arte, a cultura, os saberes ancestrais. Coletar, interpretar e compartilhar dados é uma forma de reivindicar direitos e de contar nossa história com a nossa própria voz.”
VOZES DIVERSAS NA PRODUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
No site do Governo Federal, ao buscar por “juventude negra” na seção de Dados Abertos, uma das perguntas que aparece é: “Onde estão os problemas e soluções, na visão da juventude negra?”. A resposta oficial aponta para o Plano Juventude Negra Viva (PJNV), lançado em março de 2024 como uma tentativa de responder às urgências dessa população historicamente afetada pela violência e pela falta de oportunidades.
Dividido em eixos temáticos, o plano apresenta metas e compromissos assumidos por diferentes ministérios a partir de um processo de escuta com jovens negros de diversas regiões do país. No entanto, para o Instituto Odara, o plano está longe de ser suficiente. Em artigo publicado na seção Opinião Odara, a organização aponta que o PJNV repete as limitações do antigo Plano Juventude Viva, de 2012: falta de concretude nas ações, escassa articulação com os territórios e confusão entre as pautas dos movimentos sociais e a responsabilidade do Estado em garantir políticas públicas efetivas.
É diante desse cenário que se fortalece a urgência de formar jovens para atuar na disputa por políticas que realmente respondam às suas realidades. Para Laura Araújo, do Núcleo de Juventudes Odara, colocar esses jovens no centro da produção de conhecimento é fundamental para garantir transformações de fato:
“Não é só sobre saber números ou fazer pesquisa, é sobre empoderar esses jovens para que eles tenham voz ativa, possam participar das decisões que impactam suas vidas e das suas comunidades. É uma forma de colocar mais gente diversa na mesa onde as coisas acontecem, principalmente quem nunca teve muita vez nesses espaços.”
Ao investir na formação de jovens pesquisadores negros, o projeto aposta na construção de um futuro mais justo e representativo, onde a produção de dados se torne uma ferramenta para reivindicação de direitos e participação política efetiva.
“Esses jovens pesquisadores conseguem mostrar com fatos o que precisa mudar, ajudando a construir políticas mais justas e que realmente atendam às necessidades da população. Então, investir nessa formação é apostar em um futuro onde a gente seja ouvido e possa transformar nossa realidade”, finaliza Laura.
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