Mulheres Quilombolas da Bahia se organizam rumo à Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver

Por Brenda Gomes | Redação Odara
Encontro reuniu lideranças de 14 territórios de identidades da Bahia, no município de Bom Jesus da Lapa, para fortalecer a organização coletiva e alinhar estratégias
Entre os dias 29 e 31 de agosto, mulheres quilombolas de 14 territórios de identidades da Bahia se reuniram em Bom Jesus da Lapa para fortalecer a organização coletiva e alinhar estratégias de luta por justiça, reparação histórica e Bem Viver. O Encontro Estadual de Quilombolas por Reparação e Bem Viver foi realizado na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) e marcou um novo capítulo na mobilização das comunidades quilombolas do estado. A atividade é uma iniciativa do Projeto Quilomba – Pela Vida das Mulheres Negras, que faz parte do Programa de Direitos Humanos do Odara – Instituto da Mulher Negra, com associações e lideranças quilombolas dos diversos territórios do estado.
O objetivo do encontro foi fortalecer a organização coletiva e alinhar os próximos passos rumo à Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, que acontecerá em 25 de novembro de 2025, em Brasília (DF), onde mais de 1 milhão de mulheres negras do Brasil e do mundo se encontrarão para denunciar o racismo, o sexismo e todas as formas de violência que atravessam suas vidas.
ESCUTA E PARTILHA COLETIVA
O encontro foi marcado por alegria, poesia e musicalidade. Palavras de ordem, cantos dos movimentos sociais e intervenções poéticas embalaram a programação, reforçando a dimensão política e cultural da mobilização.
A mesa de abertura contou com a participação da liderança quilombola Valéria Porto, que ressaltou que a resistência negra no Brasil sempre teve origem nos quilombos, territórios de luta e de organização política. Para ela, os quilombos não foram apenas espaços de refúgio, mas lugares de elaboração de estratégias coletivas de sobrevivência, enfrentamento e construção de futuro. Valéria destacou ainda a importância da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver, realizada em 2015, como um divisor de águas para a luta nos territórios.
“Desde os quilombos, o povo preto já disputava território e buscava estratégias de sobrevivência. Ali estavam em jogo não só a terra, mas também nossa forma de viver e de existir no mundo. A Marcha de 2015 foi um marco nesse processo, porque nos impulsionou a fortalecer associações e organizações nos territórios, a ampliar nossa capacidade de mobilização e a afirmar a centralidade das mulheres negras nessa luta. Quando falamos de quilombolas disputando eleições, apoiadas por outras mulheres negras e por suas comunidades, estamos falando da continuidade dessa história de resistência que começou lá atrás, mas que segue viva hoje em cada território.”
QUILOMBOLAS DA BAHIA EM MARCHA
No sábado (30), novas mesas deram continuidade aos debates. Carlídia Pereira, da Comunidade Quilombola Lagoa do Peixe, no território do Velho Chico, relembrou a construção da primeira Marcha das Mulheres Negras e destacou a importância da presença das quilombolas baianas naquele processo histórico. Josiane Santana de Jesus, da Comunidade Coqueiros, no território Piemonte da Diamantina, reforçou a necessidade de manter viva a memória das lutas já travadas e de projetar estratégias que garantam avanços concretos para as comunidades.
Em seguida, a liderança Damiana Martins dos Santos, da Comunidade Duas Barras do Fojo, no Vale do Jiquiriçá, fez uma análise crítica sobre o cenário político nacional e denunciou a falta de representatividade quilombola no Congresso:
“Esse Congresso que está aí não nos representa. As políticas públicas só vão chegar aos nossos territórios se houver mobilização social, se estivermos juntas pressionando e ocupando os espaços de decisão. É muito significativo ver aqui a presença de 14 territórios e perceber que o que nos une é muito maior do que o que nos separa. O que nos une é a luta por reparação, especialmente pelo acesso aos direitos que nos foram negados desde a colonização deste país. Aboliram a escravidão, mas não nos deram o principal direito: a terra, que é base da nossa soberania e autonomia, e que até hoje continua sendo negada. Vamos para a Marcha reivindicar o que é nosso por direito.”
VOZES DOS TERRITÓRIOS
Ao longo dos três dias de encontro, as mulheres quilombolas compartilharam suas angústias, desafios e denúncias, mas também apresentaram estratégias de resistência e formas de manter vivas as tradições, os saberes ancestrais e a identidade quilombola em suas comunidades. Entre rodas de conversa, sorrisos e abraços, estreitaram laços e reforçaram a importância da coletividade para enfrentar o racismo e a exclusão histórica.
Nesse espírito de fortalecimento, Mariza Rosa dos Santos, da Comunidade Vazante, na Chapada Diamantina, destacou que a unidade das mulheres quilombolas será decisiva na Marcha de 2025. Para ela, o encontro em Bom Jesus da Lapa reafirma a força coletiva das quilombolas baianas e o papel estratégico das comunidades na luta por reparação e Bem Viver:
“Esse encontro trouxe muito fortalecimento para nós. É fundamental ter esse espaço de troca, de reunião, porque as mulheres quilombolas estão em constante luta pela reparação histórica. Estou muito feliz de estar aqui, porque a gente percebe que a história de uma é, na verdade, a história de todas nós.”
ESTRATÉGIA E DOÇURA
Em clima de partilha, as participantes também construíram estratégias para levar suas delegações a Brasília. A divisão dos grupos foi feita de forma simbólica e afetiva, utilizando pacotinhos de chocolate: as cores das embalagens definiram a composição dos coletivos de trabalho. A dinâmica reforçou que, além de política e resistência, a mobilização quilombola também se sustenta em vínculos de cuidado, criatividade e alegria.
Naiara Leite, coordenadora executiva do Instituto Odara e integrante do Comitê Nacional Impulsor da Marcha das Mulheres Negras, ressaltou que a Marcha de 2025 é uma mobilização de alcance global, com mulheres de mais de 30 países se articulando para estar em Brasília. Para ela, o encontro em Bom Jesus da Lapa reafirma que a força política das mulheres quilombolas se expressa tanto no território quanto na cena internacional.
“Esse encontro é extremamente importante porque reflete um processo que as mulheres quilombolas vêm travando em seus territórios: de organização, de fortalecimento das lideranças e de valorização da representação dessas mulheres na luta por direitos, pelo território e por justiça. É muito significativo ver como, ao longo dos últimos dez anos, desde a primeira Marcha, essas lideranças têm se consolidado.”
Ela também ressaltou a dimensão pedagógica do processo: muitas mulheres que participaram da Marcha de 2015 hoje assumem posições de liderança em suas comunidades e ajudam a formar novas gerações.
“Quando chegarmos a Brasília em 2025, não estaremos apenas em uma grande mobilização. Estaremos afirmando que nossas histórias, nossas estratégias e nossos territórios são parte de um projeto coletivo de futuro, construído por nós e para nós.”
Amanda Oliveira, jovem liderança quilombola do território da Chapada Diamantina e técnica do Projeto Quilomba, analisou como o racismo tem se atualizado ao longo dos anos, mas também como as estratégias de resistência das mulheres negras seguem se reinventando. Para ela, os quilombos permanecem como espaços centrais de luta e elaboração política:
“As mulheres negras colocam seus corpos no centro do enfrentamento dentro dos territórios. Nada que conquistamos veio sem embate nos quilombos, às vezes, literalmente, metendo o pé na porta. A presença das mulheres quilombolas em Brasília é fundamental, mas, para além desse momento, nossos territórios e comunidades já estão em constante construção de reparação e Bem Viver, trazendo suas perspectivas a partir da força das mulheres quilombolas.”
As falas também resgataram a memória de Luiz Alberto e Beatriz Nascimento, intelectuais e militantes que mostraram como os quilombos sempre foram espaços políticos estratégicos para compreender o presente e projetar o futuro das comunidades negras no Brasil.Como síntese desse processo de trocas e reflexões, as mulheres quilombolas redigiram coletivamente a Carta de Mulheres Quilombolas de Territórios da Bahia por Reparação e Bem Viver. O documento reúne denúncias, reivindicações e propostas para a garantia de direitos, o fortalecimento dos territórios e a valorização das comunidades quilombolas, e será levado como instrumento político à Marcha de 2025 em Brasília.

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