#OpiniãoOdara – 2 anos da Chacina da Valéria, em Salvador (BA): As mortes negras em massa, por vingança, são um padrão das polícias em todo país

A Chacina do Curió, em Fortaleza (CE), e os Crimes de Maio, em Santos (SP), são mais dois exemplos das chamadas “Chacinas por Vingança” – modus operandi dos agentes da segurança do Brasil
Por Redação Odara
No Brasil, operações policiais que deveriam proteger a população frequentemente se transformam em execuções sumárias, atingindo principalmente jovens negros e pobres das periferias. A Chacina de Valéria, em Salvador (BA), ocorrida em 15 de setembro de 2023, é um exemplo desse padrão de violência letal, militarização e controle territorial do Estado.
A ação fazia parte da Força Integrada de Combate ao Crime Organizado, lançada no mês anterior em articulação entre a Secretaria de Segurança Pública da Bahia e a Polícia Federal. A morte do agente desencadeou uma resposta marcada pelo uso letal excessivo: ao menos 15 pessoas foram executadas.
Apesar da repercussão, não houve nenhuma apuração transparente ou responsabilização até hoje. A chacina se prolongou até outubro, mas os dados oficiais não registram todas as mortes. Familiares e ativistas seguem denunciando ações truculentas das forças policiais sob a alegação de enfrentamento a organizações criminosas.
Informações sobre inquéritos, procedimentos nas corregedorias e Ministério Público não foram encontradas em fontes públicas. Essa ausência evidencia a dificuldade da sociedade civil em participar do controle externo da atuação policial. Mortes registradas como “autos de resistência” configuram um eufemismo jurídico que transforma execuções sumárias em “legítima defesa”.
A Chacina da Valéria se soma a outros dois episódios que revelam um padrão perverso na política de segurança pública: os Crimes de Maio, de 2006, em Santos (SP), e a Chacina do Curió, de 2015, em Fortaleza (CE).
No caso do Curió, em Fortaleza, a execução de 11 pessoas por policiais militares ocorreu horas depois da morte de um policial, apontando para uma ação de retaliação. Similarmente, os Crimes de Maio foram desencadeados após a morte de agentes e ataques coordenados pelo PCC (Primeiro Comando da Capital), com a resposta sendo uma verdadeira execução em massa – mais de 500 pessoas, em sua maioria jovens pobres e negros, em diversas periferias paulistas.
Esses três casos evidenciam o uso sistemático da morte como instrumento de retaliação e controle, legitimado por estruturas de impunidade institucionalizada. A motivação imediata das operações e chacinas está ligada à morte de agentes estatais ou à tentativa de reafirmação do controle sobre territórios dominados por grupos considerados “inimigos”.
Embora ocorram em estados distintos e sob gestões diferentes, os três episódios dialogam profundamente em seus aspectos: a lógica da vingança, a militarização da ação estatal, a criminalização das periferias e o apagamento sistemático das vítimas.
Essas operações se organizam como uma vingança simbólica, onde o inimigo a ser eliminado não é apenas o autor do crime original, mas qualquer corpo que represente o “outro” aquele rotulado como criminoso pela cor da pele, pelo lugar social e pelo território que ocupa. A morte, nesses casos, é menos um erro de procedimento e mais um recurso institucionalizado, utilizado para demonstrar força, impor medo e afirmar controle territorial.
O perfil das vítimas é um elo central entre os três episódios: jovens, negros e pobres, moradores de periferias urbanas. Essa infeliz “coincidência” é resultado de uma estrutura profundamente racista na qual se ancora a segurança pública no Brasil. É importante destacar que operações como essas e chacinas não ocorrem em bairros nobres, tampouco envolvem suspeitos brancos ou de classe média. O que se vê é a transformação de territórios inteiros em zonas de exceção, onde a presença do Estado se materializa quase exclusivamente na forma da violência.
A desumanização das vítimas é reforçada por discursos oficiais e pela cobertura de parte da mídia, que muitas vezes se refere aos mortos como “suspeitos”, independentemente da ausência de julgamento ou provas. Isso permite que o Estado normalize as execuções sumárias, transformando-as em uma política de gestão da pobreza e do crime, onde o simples pertencimento a um território já é suficiente para justificá-las.
Outro traço comum às três chacinas aqui mencionadas é a impunidade dos agentes envolvidos. Nos Crimes de Maio, a esmagadora maioria dos assassinatos permanece sem investigação ou julgamento adequado, mesmo após quase duas décadas. No caso do Curió, o Ministério Público do Ceará denunciou 45 policiais militares por envolvimento, até o momento apenas 6 foram condenados. Já ocorreram 4 júris populares que julgaram 20 policiais, tendo 14 sido absolvidos e apenas 6 condenados. Há a previsão do quinto e último júri neste mês de setembro.
Essa impunidade é um reflexo da ineficiência do sistema de justiça, é parte de uma política que autoriza e estimula o uso letal da força. A ausência de responsabilização opera como uma mensagem: a violência é tolerada, desde que aplicada aos corpos certos. O Estado se torna, assim, agente ativo na produção da morte e na aniquilação de direitos fundamentais.
É fundamental demarcar, ainda, que essas ações não são desvios de conduta, mas expressões recorrentes e institucionalizadas de um modelo de segurança pública militarizado e voltado para o controle social. A lógica da guerra às drogas, ao crime eao tráfico, substitui a lógica da justiça e, na prática, tem sido uma guerra a corpos negros. A consequência é um Estado que age não como garantidor de direitos, mas como agente de extermínio, especialmente contra as populações mais vulneráveis.
As três chacinas apontam para a consolidação de um modo institucionalizado de operar que naturaliza o uso da morte como ferramenta legítima da atuação policial.
O Estado brasileiro, ao invés de promover políticas de segurança baseadas em inteligência, prevenção e respeito aos direitos humanos, opta pelo caminho mais curto, violento e simbólico: o da bala. A Chacina de Valéria, a Chacina do Curió e os Crimes de Maio são marcos de uma política de segurança baseada na vingança e na certeza da impunidade.

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