#OpiniãoOdara – Salvador Capital Afro: 81% do ano letivo é afetado por tiroteios no entorno das escolas públicas da cidade
Neste dia da Consciência Negra, te convidamos a imaginar o início de uma aula em uma escola pública de Salvador (BA): estudantes focados na explicação do professor, e de repente, tiros ecoam do lado de fora. Essa cena é recorrente para muitas escolas públicas da capital baiana, onde 81% do ano letivo ocorre sob o impacto direto da violência armada, segundo dados recentemente divulgados pelo Instituto Fogo Cruzado em parceria com a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, que revelam a gravidade de uma crise que atravessa o direito básico à educação.
A realidade da educação pública brasileira para a infância e juventude negra já apresenta, por si só, uma série de desafios estruturais, sociais e históricos, que dificultam ou inviabilizam o acesso a uma educação de qualidade: o sistema educacional se configura enquanto um dos maiores espelhos das desigualdades sociorraciais do país.
Entre os obstáculos que crianças, adolescentes e jovens negros enfrentam para permanência escolar estão a falta de infraestrutura, materiais pedagógicos inadequados e, em muitos casos, professores com pouca formação em questões culturais e étnico-raciais. Além disso, os currículos escolares, muitas vezes moldados por perspectivas eurocêntricas, ignoram ou subestimam a história, a cultura e os valores da população negra, contribuindo para um ambiente escolar que muitas vezes se torna hostil para estes estudantes. Esse ambiente excludente se intensifica com o racismo institucional, tanto em atitudes explícitas quanto sutis, que não só prejudicam o desempenho, como incentivam a evasão escolar.
Em Salvador, onde o ensino público não foge à regra das carências estruturais, há, ainda, o desafio da violência armada enquanto uma importante inviabilizadora do acesso à educação. Conforme dados do Fogo Cruzado e da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, 1 (um) em cada 4 (quatro) tiroteios mapeados na capital baiana ocorre em horário letivo e em até 300 metros de distância de escolas públicas; 76% das escolas públicas de Salvador registraram tiroteios em seu entorno durante o período analisado, que compreendeu 04 de julho de 2022 a 30 de agosto de 2024.
Um dado particularmente alarmante é que as operações policiais são o principal fator de violência armada ao redor das escolas, representando 43% dos tiroteios registrados (315 eventos). Além disso, apesar de Salvador possuir 160 bairros, ⅓ desses tiroteios ocorreram em apenas 10 bairros, predominantemente periféricos e de população majoritariamente negra, historicamente negligenciados e vulneráveis, e que vivem sob a ameaça constante de confrontos armados.
Os conflitos armados representaram a suspensão de cerca de 161 dias letivos para as escolas públicas estaduais e municipais, mas também foram percebidos por iniciativas da sociedade civil organizada com atividades nesses territórios. Destacamos, nesse sentido, a realidade do Nordeste de Amaralina, um complexo de bairros majoritariamente negro, formado pelo Nordeste, o Vale das Pedrinhas, a Santa Cruz e a Chapada do Rio Vermelho, com cerca de 80 mil habitantes.
O Instituto Odara, por meio do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, realiza oficinas semanais com a juventude do Complexo Nordeste de Amaralina, e ao longo do ano corrente, essas atividades tiveram que ser suspensas inúmeras vezes, em razão da ocorrência de operações policiais.
Outro exemplo de como as intervenções policiais modificam o cotidiano das pessoas que residem nesta comunidade, destaca-se a recente operação conjunta realizada pelas polícias federal, civil e militar, nas primeiras horas do último dia 31 de outubro. A operação apelidada de “Rota Segura”, ironicamente interrompeu o acesso de cerca de 3 mil estudantes a nove escolas na região, que tiveram as atividades suspensas, além de ter gerado a suspensão da entrada de transporte público no Vale das Pedrinhas e Nordeste de Amaralina.
Esta sequência de violações de direitos da comunidade do Nordeste de Amaralina se repete em todas as periferias de Salvador em nome da chamada “guerra às drogas” — que na realidade se traduz em uma guerra contra a população negra e periférica — atinge desproporcionalmente esses territórios, onde operações ostensivas geram não apenas medo e morte, mas também negam direitos fundamentais, como o acesso à educação.
O cenário de genocídio que atinge nossas crianças, adolescentes e jovens das comunidades negras funciona desta forma: eles acessam o sistema educacional público em Salvador – que por si só é excludente e insuficiente; deveriam ter resguardado todo o cuidado que todas as infâncias e juventudes merecem ter, mas invés disso, quando não têm suas aulas suspensas, são o alvo preferencial das agências repressivas na volta para casa ou mesmo dentro dos próprios ambientes escolares; terão o desempenho escolar comprometido, quando não inviabilizada a sua permanência, além de terem que lidar (sem suporte institucional) com os sofrimentos de ordem psíquica gerados pela violência.
Esse cenário escancara que o projeto genocida da segurança pública aposta também no abandono do sistema educacional e das políticas sociais, que deveriam garantir um ambiente de aprendizado digno e seguro para todos. É inaceitavél que a educação de crianças e jovens negros em Salvador siga refém da violência e da omissão do poder público.
O atual governador do estado da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), foi secretário de educação entre 2019 e 2022, e foi omisso nesta relação entre educação e segurança pública, no entanto, neste período 98 escolas passaram pelo processo de militarização. Este é um exemplo de como o projeto político do Partidos dos Trabalhadores na Bahia adere às lógicas do ultraconservadorismo da militarização não só da segurança pública, mas da vida das populações mais vulnerabilizadas, especialmente a população negra. Enquanto os tiros ecoarem ao redor das escolas e as práticas militares forem reconhecidas como meio de controle de crianças e adolescentes, a educação será um direito apenas na teoria, negado na prática às infâncias e juventudes negras, que apesar de seu potencial, é diariamente exposta ao descaso e à repressão em territórios marcados pelo racismo e desigualdade.
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