“Democracia Representativa” para quem? Estimamos mais de um século para ocupação representativa de mulheres negras na prefeitura dos municípios da região
Por Joyce Souza¹
No mês de outubro comemora-se o Dia da Democracia (25) no Brasil. Em 2024, a data foi celebrada entre o primeiro e o segundo turno das eleições municipais. Diferente do TSE e da branquitude brasileira pró-democracia, que defende este processo como a maior conquista democrática pós-ditadura, nós, mulheres negras, nada temos a celebrar quando, novamente, ratificamos a subrepresentatividade de nossa participação e a inviabilidade do nosso pleno exercício democrático. Somos mais de 28% da população brasileira, segundo o último censo do IBGE (2022), o maior grupo populacional conforme critério de raça e gênero, no entanto, o menor quantitativo nas esferas de tomada de decisão.
Em 2024, mulheres autodeclaradas negras foram 5.4% do/as candidato/as aos cargos do executivo e 18.42% do legislativo nos municípios em todo o Brasil; são 4.3% entre a/os eleita/os para o cargo de prefeita/o; e 7.45% para o cargo de vereador/a. No Nordeste, esses dados ganham outras proporções, que constatam o aprofundamento da desigualdade na região. As mulheres negras são 37,19% da população, o que configura nove pontos percentuais a mais que o recenseado em todo o país, no entanto, a diferença percentual entre a taxa populacional e as candidatas ou as eleitas é maior do que as registradas nacionalmente.
Houve aumento na proporção de candidaturas de mulheres autodeclaradas negras entre as últimas três eleições municipais no Nordeste, com variação de 0.6 ponto percentual de candidaturas de mulheres negras para prefeitura, de 2016 para 2020; e 0.9 ponto percentual de 2020 para 2024. Se o ritmo de crescimento for 0.3 ponto percentual a cada quatro anos, levaremos uma média de 40 anos, ou seja, 10 eleições para o alcance da paridade de raça e gênero entre as candidatas para o executivo municipal no Nordeste.
A taxa de eleitas autodeclaradas negras também aumentou, no entanto, entre as prefeitas, o crescimento de 2024 (0.8 p.p.) foi 0.5 pontos percentuais menor do que o registrado em 2020 (1.3 p.p). Entre as vereadoras, o crescimento caiu de 1.5 p.p. em 2020, para 1.2 p.p. em 2024, conforme os dados sistematizados nas tabelas abaixo. A partir da média de crescimento eleitoral entre 2016 e 2024, estimamos 27 eleições municipais, ou 108 anos, para ocupação paritária do cargo de prefeita/os entre os municípios do Nordeste; e 19 pleitos ou 76 anos para o cargo de vereador(a).
Não houve variação considerável na proporção de candidaturas e eleições de mulheres autodeclaradas negras no Nordeste entre 2016 e 2024.
Conforme o perfil de candidatos disponibilizado pela plataforma de transparência pública do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é irrisório o crescimento da proporção de candidaturas femininas e femininas negras de 2016 a 2024 para os cargos municipais do executivo e legislativo no Nordeste. Nas eleições de 2020 houve uma queda de 1,2 ponto percentual entre as mulheres brancas, já em 2024 houve superação de 1,0 ponto. Entre as mulheres negras, a proporção tem crescido de forma incipiente 0,6 p.p. em 2020 e 0,9 p.p. em 2024.
Entre os candidatos à prefeita/o, a maior variação registrada é entre 2016 e 2020, com a redução da proporção de homens autodeclarados brancos (- 3,2 p.p.) e o aumento da proporção de homens autodeclarados negros (+ 3,2 p.p.). Nas eleições de 2024, de modo inverso, há aumento de homens autodeclarados brancos (+ 1,4 p.p.) e queda de homens autodeclarados negros (- 2,7 p.p.).
Esse quadro pode estar relacionado ao processo de mudança da autodeclaração racial entre os pleitos. Segundo pesquisa do Data Folha, pelo menos 42 mil candidatos (24%) alteraram a raça ou cor em 2024, em relação ao que registraram em 2020. Dentre estes, 16,9 mil pessoas (40,4%) mudaram de branco para pardo; 11,5 (27,6%) mudaram de pardo para branco; 6.221 (14,8%) mudaram de pardo para preto; e 4.729 (11,2%) de preto para pardo. A taxa de mudança foi semelhante à registrada entre 2016 e 2020, com o total de 26% entre os candidatos.
Na disputa dos cargos legislativos, a taxa de variação da proporção de raça e gênero entre 2016 e 2024 foi ainda mais inexpressiva. Em oito anos, alcançamos o valor de 2.5 pontos percentuais de crescimento dos números de candidaturas de mulheres; entre as negras, o crescimento foi de 1.59 p.p. Em 2024, o acirramento proporcional encontra-se entre o aumento de candidaturas de mulheres de modo geral e homens autodeclarados brancos, versus a redução do número de candidatos homens autodeclarados negros.
Nas eleições para o executivo, a raça é predominante para a probabilidade eleitoral medida pela proporção candidatura x eleições: brancos, homens e mulheres, têm mais chances de se elegerem; nas eleições para o legislativo, o gênero é predominante: homens, brancos e negros, têm mais chances de se elegerem. A cada 3 homens brancos que se candidataram a prefeito, 1 foi eleito; A cada 14 mulheres pretas que se candidataram a prefeita, 1 foi eleita.
A paridade da proporção de candidaturas por gênero e raça/cor está longe do alcance do que seja o ideal de uma política espelhada na composição da sociedade brasileira, quanto mais mediante a análise comparativa entre a autoatribuição de pertença (a forma como as pessoas se declaram) e a heteroatribuição de pertença (como elas são vistas socialmente, em especial a partir do fenótipo). Ora, a partir do relatório de análise das eleições de 2022 publicado pelo Instituto Odara, constatamos que, das 90 parlamentares eleitas no Nordeste, 36 se autodeclaram negras (30 pardas e 6 pretas). Entre as autodeclaradas “pardas”, 10 já haviam se declarado “brancas” anteriormente. Das 30 autodeclaradas pardas, apenas quatro ou cinco apresentam um fenótipo pardo sem absurda discrepância. Entre as 6 autodeclaradas “pretas”, uma se declarou parda anteriormente, outra já se declarou branca.
Sem mulheres negras, democracia é um mito!
Na produção do Podcast “Política Sem Caô – Uma papo Odara com Mulheres Negras”, Valdecir Nascimento, fundadora do Odara – Instituto da Mulher Negra, reafirma em entrevista que nós, mulheres negras, não experimentamos a democracia, ainda que sejamos a maioria nesta nação. Em suas palavras, “A democracia que nós queremos está por ser construída e só será possível conosco no processo de protagonizar os debates, as discussões, legislar, conduzir a nação, definir o que queremos e o que não queremos para ela. Não é possível, para nós mulheres negras, falar em democracia, quando a cada 23 minutos um menino negro é assassinado, uma criança negra é assassinada pelo Estado racista e patriarcal. […] Portanto, nós não sabemos o que é democracia, estamos forjando cotidianamente lutas por direitos para que a gente conquiste uma democracia. O que nós compreendemos como democracia ainda está por vir”.
Entre as lutas por direitos travadas cotidianamente, o movimento de mulheres negras tem feito a defesa da participação política e representatividade, marcada por dois fatos históricos: a Marcha Nacional de Mulheres Negras, realizada em Brasília em 2015, quando demarcado a estratégia de defesa de ações e políticas afirmativas para ocupação dos cargos de tomada de decisão; e o assassinato de Marielle Franco, 14 de março de 2018, quando passamos a reivindicar memória, justiça e políticas de enfrentamento à violência política de raça e gênero, sendo a subrepresentatividade uma das suas dimensões.
A partir das eleições de 2020, organizações sociais, em especial do movimento de mulheres negras, têm investido esforços para o fortalecimento de candidaturas e mandatos de mulheres negras. No entanto, a cada análise de conjuntura eleitoral, nos deparamos com o sentimento comum de estarmos nadando contra um maremoto antidemocrático. Mesmo com a intensificação da agenda de defesa da participação política, como vimos acima, não houve variação considerável na proporção de candidaturas ou de mulheres negras eleitas no Nordeste entre 2016 e 2024.
Nas eleições municipais de 2024, conforme levantamento³ realizado pelo Odara – Instituto da Mulher Negra, 57 candidatas negras defensoras de direitos humanos tiveram suas candidaturas impulsionadas no Nordeste por projetos de fortalecimento de candidaturas de mulheres negras. Entre as 51 candidaturas para vereança, 9 foram eleitas, o que corresponde a 17.65%.
3 candidatas alcançaram a 1ª suplência da federação partidária: Estela Bezerra, de João Pessoa (PB), com a diferença de 72 votos do último candidato eleito da Federação, o que corresponde a 1,3% dos seus votos; Valéria Porto, de Malhada (BA), com a diferença de 71 votos do último candidato eleito da Federação, o que corresponde a 18,5% dos seus votos; e Juciária Barbosa, de Camamu-BA, com a diferença de 134 votos do último candidato eleito da federação, o que corresponde a 32,68% de seus votos. Entre estas, uma já teve mandato de vereança: Estela Bezerra.
De modo geral, constatamos a baixa expressividade de votação em mulheres negras defensoras de direitos humanos no Nordeste. 29 de 51 candidatas a vereança não alcançaram a porcentagem mínima (10% do Quociente Eleitoral) para ocuparem o cargo de vereança por suplência, o que corresponde a 56.86% das candidatas. Cinco de seis candidaturas para o cargo de prefeita e vice-prefeita tiveram votação inexpressiva, com menos de 5% dos votos válidos.
Além da candidatura e eleição ser um grande desafio para mulheres negras, se manterem nesses espaços também é mais dificultoso com os condicionantes de raça e gênero. Entre as candidaturas levantadas, 9 já foram eleitas em outras campanhas eleitorais, mas apenas 4 destas foram eleitas novamente em 2024, 5 foram eleitas para o primeiro mandato.
As candidaturas e mandatas coletivas, que dimensionamos como estratégia de fortalecimento para o acesso às cadeiras parlamentares, têm sido mais enfraquecidas a cada pleito. Entre as analisadas, houveram 3 candidaturas coletivas (5,2%), nenhuma foi eleita; 1 das 9 eleitas já exerceu mandato coletivo anteriormente, mas neste pleito se candidatou individualmente. 1 candidatura coletiva eleita anteriormente não se reelegeu para continuidade do mandato.
Os partidos de esquerda aumentaram o número de prefeituras no Nordeste, com um ganho de 38,2% em relação a 2020. Lideranças dessa corrente comemoram o suposto ganho democrático na região e novamente o Nordeste ganha destaque nas narrativas nacionais sobre “voto de classe” ou “voto consciente”, no entanto, nossas análises nos levam a questionar quando poderemos comemorar o “voto de raça e gênero”, ou, mais precisamente, uma proporção que possa garantir a diversidade necessária para o exercício efetivo da democracia nesse país de maioria de mulheres negras, ainda mais no Nordeste.
O partido é um grande obstáculo para mulheres negras
Os resultados das eleições de 2024 expressam o tamanho do desafio que enfrentamos em relação à incidência em defesa da instituição e efetividade de políticas afirmativas no Sistema Eleitoral; e a disputa de narrativa para a formação de um novo imaginário e prática eletiva da população, com a positivação do voto em mulheres negras, para além da bolha do eleitorado do “voto de opinião”.
Por aqui, estamos diante de três grandes obstáculos: primeiro, o partidarismo brancocêntrico, no gênero masculino, de direita ou de esquerda, que inviabiliza a paridade de raça e gênero na esfera do macropoder, quando, por exemplo, os partidários se anistiam por descumprimento de cotas de gênero e da obrigatoriedade da aplicação de recursos financeiros para as candidaturas de pessoas pretas e pardas, conforme proporcionalidade; ou no micropoder, ao reiterar-se cotidianamente as práticas de violência política de raça e gênero que silenciam, invisibilizam e anulam as campnahas de mulheres negras, muitas delas fundadoras e essenciais para manutenção da estrutura partidária.
Segundo, o coronelismo e voto de cabresto, ainda efervescente no Nordeste, e repaginado pela expansão da influência evangélica na política brasileira. A população na região em grande parte segue votando por critérios de opressão ou pelo mercado de compra e venda de votos que se sustenta pela emergência de necessidades básicas e pelo descrédito político do sistema eleitoral.
Terceiro, o populismo regimentado pela esquerda sindicalista e lulista, que não agrega critérios de gênero e raça, do contrário, o mesmo voto supostamente crítico (apenas classista e nada identitário) que elege os líderes brancos nordestinos, elegeria mulheres negras de esquerda defensoras de direitos humanos, se não fosse o primeiro grande obstáculo.
¹Coordenadora do Projeto Pretas no Poder – Participação Política, Representatividade e Segurança de Ativistas Negras, do Odara – Instituto da Mulher Negra.
²Conforme o Censo IBGE 2022.
³Levantamento realizado a partir da revisão de materiais publicados por organizações, programas e projetos de apoio à candidaturas de mulheres negras disponibilizados na rede de internet, tais como o Projeto Pretas no Poder, do Odara – Instituto da Mulher Negra; A Tenda das Candidatas; Eu Voto Em Negra; Meu Partido é o Feminismo Negro, da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA); Eu Voto Negra, Voto Negro, do Movimento Negro Unificado (MNU) Bahia; Por Mais Mulheres Negras nos Espaços de Poder, do Forum Nacional Marielles.