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Quem era Elitânia de Souza, jovem negra ativista, liderança quilombola, assassinada pelo ex-namorado em 2019 na cidade de Cachoeira (BA)?

Estudante do 7º período do curso de Serviço Social, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Elitânia atuava como liderança estudantil e pelos direitos quilombolas

Redação Odara

No dia 27 de novembro de 2019, um crime brutal chocou os moradores da pequena cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Por volta das 22h40, Elitânia de Souza da Hora, de 25 anos, caminhava para casa acompanhada de uma amiga após sair da aula, do curso de Serviço Social, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), quando foi surpreendida e morta a tiros pelo ex namorado, Alexandre Passos Silva Góes. 

Não demorou para que o feminicídio se tornasse um destaque entre as notícias de veículos de comunicação na Bahia e no Brasil.

Logo descobriu-se que Alexandre já vinha agredindo e ameaçando Elitânia há algum tempo por não aceitar o fim do relacionamento. Ela, inclusive, já havia prestado queixa duas vezes contra o ex-companheiro, e tinha uma medida protetiva expedida pela Justiça de São Félix (Ba), município vizinho a Cachoeira, onde morou por um tempo com o então namorado. A jovem também esperava a expedição de outra medida protetiva pela justiça de Cachoeira, que não foi emitida há tempo. O recurso, em tese, protege mulheres sob ameaça de violência doméstica e obriga os homens a não se aproximarem de suas potenciais vítimas.

Mais de quatro anos após o crime, Alexandre será julgado por homicídio duplamente qualificado (feminicídio e por ter sido à traição, emboscada). A expectativa das advogadas Maria Leticia Ferreira e Rosane Muniz, da Tamo Juntas – Assessoria Multidisciplinar​ Gratuita para Mulheres, é que Alexandre seja condenado com todas as qualificadoras. A organização é responsável pela assistência de acusação do caso, junto ao Ministério Público.

O júri popular acontece no próximo dia 24 de julho, às 8h, no Fórum Augusto Teixeira de Freitas, em Cachoeira (BA). Antes do início do júri, haverá um ato público pacífico, às 7h, para apoiar a família e pedir justiça por Elitânia de Souza e por todas as mulheres vítimas de violência e feminicídio. 

Uma promissora trajetória política e acadêmica interrompida pelo feminicídio

Elitânia era uma jovem quilombola do município de Cachoeira (BA), estudante universitária, prestes a se formar em Serviço Social no Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL-UFRB). Além das suas atividades acadêmicas, se engajava politicamente nas lutas dentro da universidade e da sua comunidade. A estudante atuava no Coletivo de Estudantes Quilombolas da UFRB – Osório Brito e era secretária da Associação de Mulheres do Quilombo Tabuleiro da Vitória (AMQTVA).

As professoras e colegas de Elitânia guardam as memórias de uma acadêmica e ativista comprometida, que lutava pelo acesso e permanência de estudantes quilombolas na universidade e pelos direitos da sua comunidade. Seu objetivo era se tornar assistente social para, através das ferramentas do setor público, fomentar políticas públicas que contribuíssem para a preservação e desenvolvimento das comunidades quilombolas.

“Nos aproximamos mais durante a construção e apresentação do 1º Seminário Quilombola na UFRB, que ocorreu em outubro de 2018, em que fizemos parte como colaboradoras e palestrantes”, conta Izabelli Santos da Conceição, jovem quilombola e mestranda em Ciências Sociais que atuava junto a Elitânia no movimento de estudantes quilombolas.

Ela lembra que Elitânia ajudou a fortalecer e difundir as ações do coletivo para garantir o acesso e permanência de estudantes quilombolas na UFRB, orientando esses estudantes desde a inscrição no ENEM, até a matrícula na universidade e inscrição para concorrer à bolsa permanência. “Ela garantia que esses jovens não desistissem por falta de conhecimento sobre o processo e ainda motivava que eles usassem a educação como arma política para garantir o seu território quilombola”, afirma Izabelli.

As professoras de Elitânia a descrevem como uma estudante participativa, responsável e comprometida com sua formação. “Era uma jovem que sonhava em terminar o curso e não parar de estudar para contribuir na luta por melhorias da qualidade de vida da sua família e da sua comunidade, mas infelizmente teve sua vida e seus sonhos interrompidos de forma abrupta”, conta a Professora Doutora Ilzamar Pereira, que foi supervisora do estágio que Elitânia fazia na Secretaria da Assistência Social do município de Cruz das Almas (BA).

A partir de meados de 2019, no entanto, Elitânia passou a se ausentar de algumas aulas, de compromissos acadêmicos e políticos. Izabelli conta que durante uma ocupação estudantil realizada em outubro de 2019, Elitânia chegou a desabafar com ela sobre o que vinha sofrendo. “Nesse diálogo, Elitânia me falou enfaticamente sobre as ameaças de morte e agressões que já havia sofrido do ex-namorado. Ela argumentou que esse era um dos motivos de ela não estar ativa na ocupação e demais atividades do coletivo nos últimos meses”.

Tanto Izabelli, quanto outras pessoas do convívio mais próximo de Elitânia a aconselharam a deixar a cidade para se proteger de Alexandre, mas a estudante afirmava que precisava lidar com algumas demandas e cumprir o semestre acadêmico, mas que depois procuraria um lugar onde pudesse escrever seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em segurança.

Cerca de um mês depois da conversa, antes que Elitânia tivesse a chance de mudar de cidade para tentar levar uma vida mais tranquila e longe das ameaças, sua vida foi interrompida de forma brutal. “Fiquei  muito assustada, foi muito doloroso lidar com aquela situação. Refletir muito sobre como nós, mulheres e lideranças de luta política da pauta quilombola estamos mais preocupadas com as demandas externas do que a nossa vida ou segurança”, desabafa Izabelli.

O Coletivo Unificado de Estudantes Quilombolas da UFRB atualmente tem o nome de Elitânia de Souza, em homenagem à ativista e fundadora da organização.

Desde 2020, todos os anos acontece na UFRB e em comunidades de Cachoeira, a Semana Elitânia de Souza, com o objetivo de denunciar as violências que atingem as mulheres negras e cobrar respostas pelo assassinato da jovem quilombola. A agenda é organizada pelo Instituto Odara, em parceria com o Coletivo Angela Davis, a Tamo Juntas, o Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL – UFRB), professoras e estudantes do curso de Serviço Social da UFRB e organizações políticas locais como a Rede Elas Negras Conexões, a Articulação de Mulheres Negras no Quilombo Engenho da Ponte e o Núcleo de Mulheres do Rosarinho.

Mulheres negras e quilombolas são mais vitimadas pela violência e feminicídio

A situação de vulnerabilidade diante das violências, sobretudo doméstica, é ainda mais acentuada quando se trata das mulheres negras. Segundo dados levantados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, entre os anos de 2015 e 2022, mulheres representaram 75% das vítimas de violência física e sexual no Brasil. Já a Anistia Internacional aponta que 62% das vítimas de feminicídio no Brasil em 2022 eram mulheres negras.

O quadro de violência contra mulheres negras quilombolas é ainda mais grave. A Coordenação Nacional de Quilombos (CONAQ) aponta que o feminicídio foi a segunda maior causa de assassinatos contra a população quilombola entre 2018 e 2022, totalizando 31,25% dos casos, logo abaixo das mortes por conflitos fundiários (40,62%). O Nordeste é a região com maior número de feminicídios de quilombolas.

Sobre este fenômeno, Joyce Lopes, coordenadora do Projeto Quilomba – Pela Vida da Mulheres Negras, do Odara – Instituto da Mulher Negra, explica que mulheres negras quilombolas, ribeirinhas e rurais são as que menos acessam qualquer recurso previsto na Lei Maria da Penha, de modo que se encontram totalmente desamparadas pelo Estado quando se trata de prevenção e enfrentamento à violência doméstica e familiar.

A ineficácia do Estado em garantir o cumprimeto das medidas protetivas

A história de Elitânia se soma à de Edivania Rodrigues dos Santos (46), Rafaella Gonçalves (38) e tantas outras mulheres negras que foram vítimas de feminicídio mesmo estando sob medida protetiva concedida pela Justiça.

A Medida Protetiva de Urgência (MPU) é uma ação legal tomada por autoridades judiciais com a finalidade de proteger as vítimas da violência doméstica ou familiar, proibindo que agressores se aproximem delas. De acordo com um estudo realizado pelo Consórcio Lei Maria da Penha em parceria com o Instituto Avon e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre janeiro de 2020 e maio de 2022, o Brasil registrou 572.159 medidas protetivas de urgência concedidas a mulheres em situação de violência doméstica. No entanto, esses casos trágicos denunciam falhas no sistema de justiça e destacam a aparente ineficácia das medidas protetivas em manter as mulheres seguras.

Joyce Lopes enfatiza a responsabilidade do Estado na proteção das vítimas. Ela destaca que quando uma mulher denuncia uma situação de violência, o Estado tem o dever de garantir sua integridade, conforme a Lei Maria da Penha. “Na medida em que o Estado reconhece a demanda de proteção da vítima, é necessário que todos os esforços sejam empreendidos para garantia de sua integridade. Se uma mulher sob medida protetiva é assassinada, o Estado deve rever suas falhas, bem como ser responsabilizado pelo não cumprimento do seu dever de assegurar às mulheres o exercício efetivo do direito à vida”, explica. O Instituto Odara defende que os familiares de vítimas de feminicídio, em especial sob medida protetiva, devem ser indenizadas pelo Estado.

A advogada Maria Letícia destaca que o acompanhamento e a fiscalização das medidas protetivas é feito a partir de uma integração entre o sistema de justiça, o sistema sócio-assistencial e o sistema de segurança pública. No entanto, esses sistemas não se comunicam e os serviços não funcionam adequadamente em rede. “Essa falta de diálogo entre os serviços e a não aplicabilidade de vários serviços que estão previstos na Lei Maria da Penha trazem essa situação de bastante insegurança. Às vezes a mulher tem a medida protetiva, mas isso pode ser só um papel se ela não tiver o acompanhamento e fiscalização adequadas”, explica.

Apesar das falhas na execução das medidas protetivas, elas são um importante instrumento legal para a proteção das vítimas de violência doméstica e familiar. Cabe ao Estado implementar e reforçar mecanismos já existentes para garantir que elas sejam emitidas de forma rápida e cumpridas com rigor, evitando que as vidas de muitas mulheres sejam perdidas em decorrência da violência e do machismo.

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