Um ano sem Tainara dos Santos: feminicídio de jovem quilombola é lembrado em Aula Pública na Câmara de Cachoeira(BA)

Familiares e ativistas cobram justiça por Tainara e denunciam a negligência sistêmica do Estado contra mulheres negras da Bahia
Por Adriane Rocha | Redação Odara
A Câmara Municipal de Cachoeira (BA) foi marcada por um ato de dor e cobrança na manhã desta quinta-feira (9). Um ano após o feminicídio de Tainara dos Santos, jovem negra, de 27 anos, mãe, trancista e quilombola de Acutinga Montecho (BA). Familiares, amigas e ativistas de organizações de mulheres negras se reuniram em uma aula pública para exigir justiça e denunciar a negligência do Estado diante das vidas de mulheres negras e quilombolas na Bahia.
Tainara foi vista pela última vez acompanhada por homens desconhecidos em uma lan house e, mais tarde, em uma praça, com o ex-marido, George Anderson Santos, com quem teve um relacionamento de seis anos, marcado por brigas e agressões. Meses antes do desaparecimento, Tainara chegou a registrar queixa contra ele, denunciando o relacionamento abusivo e as violências sofridas.
Em um depoimento emocionado, Itamara dos Santos, irmã de Tainara, descreveu a ausência de amparo do poder público: “Um ano depois, a gente acaba revivendo tudo o que aconteceu. Só muda o dia. […] A gente estaria esquecida, sem respostas se não fosse o apoio dos movimentos de Mulheres Negras.”
Ela revelou que as filhas de Tainara, de 12 e 3 anos, seguem sem assistência governamental. “Eu consegui apoio de psicólogos com ajuda de outras pessoas, mas é caro. Uma ainda usa fralda, toma leite. Tudo sai do meu bolso. Fora isso, nada. É a gente que segura tudo,” lamentou Itamara.
A mesa da aula pública reuniu diversas lideranças e acadêmicas, incluindo Amanda Oliveira, jovem quilombola e técnica dos projetos de enfrentamento às violências do Instituto Odara, que ressaltou a ausência de amparo estatal e a importância da mobilização coletiva.
“Quando a gente diz ‘nós por nós’, a gente precisa refletir o que isso significa na prática. Quem se importa com as nossas vidas? Quem fala de nós enquanto mulheres negras e quilombolas, para além das estatísticas? O Estado se cala. Então somos nós que seguimos lutando e pressionando para que as histórias de Tainara, de Elitânia e de tantas outras não sejam esquecidas”, destacou Amanda.
A ativista do Odara ainda criticou a crise de segurança pública na Bahia, terceiro estado do país com mais casos de feminicídios, e alertou para o aumento da brutalidade dos crimes. Apontou a omissão que atinge especificamente as mulheres quilombolas, cujos casos, em grande parte, não constam nas estatísticas oficiais:
“Nas comunidades quilombolas, o controle sobre os corpos das mulheres atravessa gerações. E o Estado se omite, não leva políticas públicas, não protege, não conta os casos que acontecem dentro desses territórios. Esse esquecimento também é violência. O Estado tem uma dívida com essas famílias. Têm uma dívida com as filhas e as mães que ficam depois que as mulheres são assassinadas, muitas vezes sob medida protetiva. Essa conta também é do Estado, porque era competência dele garantir que essas mulheres continuassem vivas.”
A CADEIA DE NEGLIGÊNCIAS E A DOR DA FAMÍLIA
As falas durante a aula pública reforçaram o cenário de impunidade e desamparo. A assistente social Rose Oliveira, coordenadora da Tamo Juntas, lamentou que Tainara foi mais uma vítima de um sistema que falha em proteger mulheres negras, destacando o sofrimento contínuo da família:
“Um ano se passou desde que George decidiu interromper de forma brutal a vida de Tainara, uma mulher preta, quilombola, mãe, irmã e trabalhadora. Esse homem não só tirou a vida dela, mas retirou um pouco da vida da família a cada dia, que até hoje não conseguiu realizar um enterro digno. O corpo de Tainara ainda não foi entregue.”
A professora Paula dos Santos, do Coletivo Catarinas, reforçou que o feminicídio é o resultado de uma série de omissões. “O feminicídio começa quando uma mulher denuncia e não é ouvida. Começa quando o agressor é protegido porque é conhecido como um ‘bom pai’. O feminicídio começa no momento em que a segurança pública falha em proteger as mulheres negras.”
Silvia Pereira, vice-diretora do Centro de Artes Humanidades e Letras da Universidade Federeal da Bahia (UFRB), afirmou que a dor coletiva se transforma em força: “Nosso luto vira verbo. A gente não tem tempo do choro nem da raiva. Vivemos num cenário de igualdade formal e desigualdades reais. E isso nos move a continuar.”
A Socióloga Ângela Figueiredo, integrante do Coletivo Ângela Davis, apontou que o silêncio é uma tática de poder: “Eles fazem o Estado parecer um fantasma. Mas o Estado tem rosto, tem nome, tem gestores. O silêncio é uma política e é contra ele que seguimos lutando.”
O ato se encerrou com um gesto simbólico de homenagem a Tainara dos Santos, reafirmando o compromisso de continuar exigindo justiça e a responsabilização do Estado.
10 DE OUTUBRO – DIA NACIONAL DE LUTA CONTRA A VIOLÊNCIA À MULHER
O ato público por Tainara dos Santos, realizado em 9 de outubro, na véspera do Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher, celebrado em 10 de outubro, escancarou o que o país insiste em negar: o retrato de um Estado que falha, se omite e consente com o assassinato de mulheres especialmente negras, pobres e quilombolas.
Em um momento em que o país é convocado a refletir sobre o enfrentamento à violência contra as mulheres, o caso de Tainara revela o abismo entre o discurso oficial e a realidade brutal.
Os números apenas confirmam o que as famílias e comunidades quilombolas já denunciam há anos. Segundo o relatório Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil, o feminicídio foi a segunda principal causa de assassinatos de quilombolas entre 2018 e 2022, representando 31,25% dos casos, ficando atrás apenas dos conflitos fundiários (40,62%).
O Nordeste é a região onde essas mortes se concentram com mais força, mostrando que a luta por justiça também é uma luta por território, memória e vida.
Comentários