SALVADOR: No aquecimento para a corrida eleitoral, o útero tem superado o fígado
Por Cleidiana Ramos
Para o MIDIA 4P
Conta uma das variações dos mitos sobre Oxum que foi ela quem ensinou sobre a necessidade das mulheres participarem dos governos. No período em que orixás e homens conviviam juntos, os primeiros decidiram formar um conselho. Mas apenas os deuses estavam inseridos. As divindades femininas foram deixadas de lado. Oxum não disse nada. Apenas se recolheu aos seus interesses. Logo tudo começou a dar errado. Não tinha chuva. As mulheres deixaram de parir; as frutas sumiram, assim como as flores. Os rios deixaram de correr. O conselho foi consultar Olorum, o Deus supremo, que está inatingível para as coisas da humanidade, deixando-as para os seus filhos, os orixás. Ao ouvir tudo atentamente fez apenas uma pergunta: “Oxum não está nesse conselho?”. Os deuses olharam um para o outro e não viram alternativa a não ser ir em busca da senhora das fontes e das cachoeiras, de mananciais tão extensos, como o baiano Paraguaçu. Só a muito custo e insistência, Oxum resolveu ceder passando a ser saudada por este pioneirismo como “aquela que é a primeira a se sentar no conselho”.
Eu gosto de ouvir estas narrativas, sobretudo quando contadas pelas mais velhas e pelos mais velhos do candomblé. A saudosa ebomi Cidália Soledade o fazia com maestria. O mesmo consegue ebomi Nanci Silva, carinhosamente chamada de Vovó Cici. Não é apenas a narrativa, mas o cadenciamento da voz, a imitação dos sons, uma cantiga que nos leva para além e adiante do que o mito quer ensinar. No caso do aqui apresentado é que não há sociedade sem lugar para as mulheres. Sem elas tudo é murcho, sem cor, sem vida e sem sabor. Oxum ensina isso como é do seu feitio: com tranquilidade e silêncio. Não recorre aos artifícios da beleza, da sedução, mas ao recurso da inteligência e desfere um soco forte com a suavidade de um tapa por quem enverga luvas de renda.
Essa narrativa vem bem a propósito do que move o campo progressista na preparação para a disputa pela Prefeitura de Salvador. Quatro mulheres, das quais três são oriundas dos movimentos negros com toda a sua diversidade, e uma do movimento feminista clássico, oferecem as suas vivências e experiências aos partidos onde militam.
É um acontecimento inédito em Salvador, a cidade cercada pelas águas que o cantor-poeta Gerônimo consagrou a Oxum, mas que também oferece uma festa única a Iemanjá; que faz o Pelourinho tremer na homenagem que Iansã e Santa Bárbara compartilham; e que guarda um carinho especial por Nanã, afinal são tantas as avós, nesta capital baiana, que repetem a maternidade para que suas filhas mantenham a provisão das casas e da prole . É, portanto, a cidade das yabás, “das mulheres”, como chamou a antropóloga Ruth Landes, surpreendida na década de 1930 com a proeminência das sacerdotisas do candomblé como Mãe Menininha do Gantois, Tia Massi da Casa Branca e Flaviana de Oxum, do Terreiro do Cobre, governando, soberanas, as casas de santo sob a sua regência.
Era para ser, portanto, um momento de celebração. O PSB tem a sorte de contar com Lídice da Mata, ex-senadora, deputada federal, com experiência na Assembleia Legislativa e na Câmara Municipal e a única mulher a ter governado Salvador, no período de 1993 a 1996, como aspirante à indicação do partido para mais uma vez disputar a prefeitura. O PCdoB tem como pré-candidata Olívia Santana, ex-vereadora, com experiência na titularidade de secretarias como a de Educação do município, e as dedicadas às políticas para mulheres e trabalho, emprego, renda e esporte no âmbito estadual, além de atualmente ocupar uma cadeira no legislativo da Bahia. Já o PT tem duas aspirantes: a atual secretária de Promoção da Igualdade Racial, Fabya Reis, e o fenômeno Vilma Reis: socióloga, ativista do movimento de mulheres negras e do movimento LGBTT, frequentemente citada com admiração por Angela Davis, nas suas vindas ao Brasil.
Mas ao se observar as narrativas nos círculos especializados sobre a política local, a potência deste movimento de mulheres é tratada superficialmente ou com desdém. Como Salvador ignora este fenômeno nunca antes visto? Como se cochicha nos encontros de militância dos movimentos sociais as sugestões para que algumas delas retirem suas candidaturas para não atrapalhar as articulações das cúpulas partidárias? É impressionante como eleitores e membros da burocracia dos partidos continuam fazendo um discurso atravessado que parece querer traduzir que política não é lugar de mulheres. Aliás, pode ser. Desde que elas se contentem em aplainar a caminhada dos homens, das suas aspirações ou que apenas disputem as posições com menos visibilidade. Por que não uma vaga na Câmara de Vereadores para fazer uma base e, aí sim, brigar mais para frente como dizem alguns?
Há alguns meses estava próxima a uma pessoa que discutia uma destas candidaturas e o interlocutor da minha conhecida espumava e dizia que a teimosia da candidata era péssima para o partido e que não adiantava pois ela não teria a legenda de forma alguma. Eu, espantada, fiquei imaginando o quanto deve ser terrível resistir na militância destes partidos. Se o campo progressista não consegue compreender a importância de ter uma mulher protagonizando as discussões sobre o perfil de uma candidatura ideal imagino o que deve acontecer no centrão e na recém empoderada ultra direita.
Nunca fui filiada a partido político mesmo sendo filha de Chico Preto (Pacífico Teixeira Ramos) que comandou um campo progressista na política de Iaçu por 40 anos. Um dia antes da sua morte, em 2004, fazia planos para a eleição municipal daquele ano. Em 2016 estive perto de me filiar a uma legenda, mas uma manobra de última hora desmontou qualquer tipo de possibilidade neste sentido. O diabo da política partidária mora aí: nas manobras. É um tal de acordo disso e para aquilo no altar em que se sacrifica ideologia, bons princípios e, em alguns casos, a admiração e amizades.
Esta minha frustrada experiência partidária em Iaçu e outras vivências no entorno dos bastidores da política de lá me transformaram em uma pessimista sobre o acerto que envolve o comando de partidos . Orgulhosa que estou da batalha de Lídice da Mata, Olívia Santana, Fábia Reys e Vilma Reis confesso que tenho pouca esperança de assistir o vingar de uma destas candidaturas pra valer. A máquina burocrática dos homens é insensível, avassaladora e sem inteligência para enxergar além do umbigo.
Mas o pouco otimismo, que em mim persiste ou do contrário não respiro, torce para que essas candidaturas resistam (no PT teria um embate entre Fábia e Vilma, pois só uma seria indicada para viabilizar uma aliança na posição de vice ). Sonho com a beleza e riqueza que seria o processo eleitoral com estas características. Imagino um plano de governo elaborado não com o fígado, mas com o útero. Os debates, com certeza, seriam altamente qualificados porque mulheres se respeitam até mesmo na divergência, especialmente estas a quem me refiro. O candidato já definido pelo campo conservador se veria em apuros ainda mais com o perfil e o peso que carrega do velho, desmoralizado e mofado MDB, que não tem nem um traço da ala dos autênticos que meu pai orgulhosamente integrou.
E quem sabe uma aliança? Imaginem a dobradinha Vilma-Lídice ou Olívia-Fábia ou outras combinações. Salvador iria ao paraíso ao menos no processo eleitoral. Mas os homens dificilmente vão deixar. A maioria deles, como no mito, querem um conselho masculino. Não conseguem sequer incluir as mulheres no jogo. E é por aí que as nossas esperanças estão minguando, murchando, ficando sem cor e sabor como o mundo da narrativa antes do retorno de Oxum.
É pena porque numa eleição assim não valeria apenas o que saísse das urnas. Até aqui só a teimosia dessas mulheres em manter as pré-candidaturas provocou uma revolução. A candidatura de Vilma Reis, por exemplo, lançada não à toa no desfile do 2 de Julho, é assunto nacional, faz ferver grupos de whatsapp no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Rio Grande do Sul. E o seu partido? Ao menos para fora lamenta a desistência de um candidato estranho ao ninho, cogita dois nomes masculinos e faz de conta que as mulheres nem participam destes debates. Ao menos é o que se apresenta abertamente nos sites, nos artigos e reportagens das plataformas de mídias comerciais e no disse me disse das rodas dos partidos.
Mas deixemos então sob o comando das donas das águas, dos ventos, da lama criadora. De repente, a força delas, liderada por Oxum, opera o milagre de deixar que a cidade volte ao poder de quem é de direito. Ao menos para fazer pensar.
Cleidiana Ramos é jornalista, doutora em antropologia, publisher da Flor de Dendê e professora na Uneb (Campus XIV-Conceição do Coité, Bahia) e na Faculdade 2 de Julho
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