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A ineficácia do Estado em garantir o cumprimento de medidas protetivas custa a segurança e a vida das mulheres

Fragilidade de fiscalização das medidas protetivas e ausência de dados agravam a vulnerabilidade das vítimas, especialmente mulheres negras

Redação Odara

Elitânia de Souza estava voltando para casa após mais um dia de aula na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde cursava o 7º semestre do curso de Serviço Social. Como de costume, ela estava acompanhada de uma amiga, compartilhando risadas e conversas enquanto caminhavam pelas ruas de Cachoeira (BA). Elitânia era uma jovem brilhante, cheia de sonhos e esperanças para o futuro, liderança jovem quilombola do Tabuleiro da Vitória, na Bacia do Iguape, ativista do movimento negro e do movimento estudantil.

No entanto, no dia 27 de novembro de 2019, a vida de Elitânia foi interrompida de forma brutal. Seu ex-namorado, José Alexandre Passos Góes Silva, que não aceitava o fim do relacionamento, a abordou. Os disparos de arma de fogo ecoaram pelo ar, tirando a vida da jovem de apenas 25 anos. Meses antes desse terrível evento, Elitânia havia sido agredida por José Alexandre, e ela buscou ajuda, denunciando-o à polícia e obtendo uma medida protetiva que deveria garantir sua segurança.

Em setembro deste ano, na cidade de Jaguarari, no norte da Bahia, Edivania Rodrigues dos Santos, de 46 anos, foi brutalmente assassinada com golpes de faca. O principal suspeito do crime é seu ex-marido. O filho do casal, um adolescente de 16 anos, também foi ferido durante a ação ao tentar desarmar o agressor para proteger a mãe. Edivania tinha uma medida protetiva contra o agressor desde maio, no entanto, em julho, ela desistiu de testemunhar contra o homem, de acordo com registros do Fórum do município. 

Em outubro de 2020, a policial militar Rafaella Gonçalves, de 38 anos, foi encontrada morta em sua casa ao lado do corpo de seu ex-marido, também policial militar, Edson Salvador Ferreira de Carvalho, que teria cometido suicídio após matá-la. Desde o mês de julho daquele mesmo ano, Rafaella tinha uma medida protetiva que proibia seu ex-marido de se aproximar dela. O principal suspeito não aceitava o fim do relacionamento, e a polícia considera o caso como possível feminicídio. Duas filhas da vítima, crianças de 3 e 7 anos, estavam na residência no momento do crime, mas não sofreram ferimentos.

Ineficácia do Estado

A Medida Protetiva de Urgência (MPU) é uma ação legal tomada por autoridades judiciais para proteger vítimas de violência doméstica ou familiar, proibindo que agressores se aproximem delas. De acordo com um estudo realizado pelo Consórcio Lei Maria da Penha em parceria com o Instituto Avon e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre janeiro de 2020 e maio de 2022, o Brasil registrou 572.159 medidas protetivas de urgência concedidas a mulheres em situação de violência doméstica. No entanto, esses casos trágicos denunciam falhas gritantes no sistema de justiça e destacam a aparente ineficácia das medidas protetivas em manter as mulheres seguras.

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, da qual o Brasil é um dos países signatários, foi realizada em 1994 e estabelece que é dever do Estado garantir às mulheres uma vida sem violência – incluídas as violências que podem ser praticadas pelo próprio Estado, seja por ação ou por omissão. “A morte de uma mulher que está sob medida protetiva mostra a ineficácia do sistema em proteger a vida das mulheres. O Estado é responsável porque existe um fundamento jurídico e legal para isso e porque efetivamente as políticas de segurança e proteção à vida da mulher não são eficazes a ponto de protegê-las”, afirma a advogada Maria Letícia Ferreira, presidenta da Tamo Juntas.

A coordenadora do Projeto de Enfrentamento às Violências contra as Mulheres Negras e Quilombolas do Odara – Instituto da Mulher Negra, Joyce Lopes, também enfatiza a responsabilidade do Estado na proteção das vítimas. Ela destaca que quando uma mulher denuncia uma situação de violência, o Estado tem o dever de garantir sua integridade, conforme a Lei Maria da Penha. “Na medida em que o Estado reconhece a demanda de proteção da vítima, é necessário que todos os esforços sejam empreendidos para garantia de sua integridade. Se uma mulher sob medida protetiva é assassinada, o Estado deve rever suas falhas, bem como ser responsabilizado pelo não cumprimento do seu dever de assegurar às mulheres o exercício efetivo do direito à vida”, destaca Joyce.

Para a advogada Maria Letícia, outro fator que deixa as mulheres vítimas de violência em situação de insegurança e vulnerabilidade é a lentidão do sistema de justiça, tanto para conceder as medidas protetivas, quanto para garantir que sejam cumpridas. “A gente tem um sistema de justiça bastante lento e que promove muita permissividade para que as agressões continuem ou para que o agressor fuja de uma situação judicial. Existem casos em que, mesmo a lei prevendo que a medida deve ser concedida em até 48 horas, infelizmente existem alguns territórios em que isso demora muito mais”.

Ela destaca ainda que o acompanhamento e a fiscalização das medidas protetivas é feito a partir de uma integração entre o sistema de justiça, o sistema sócio-assistencial e o sistema de segurança pública. No entanto, esses sistemas não se comunicam e os serviços não funcionam adequadamente em rede. “Essa falta de diálogo entre os serviços e a não aplicabilidade de vários serviços que estão previstos na Lei Maria da Penha trazem essa situação de bastante insegurança. Às vezes a mulher tem a medida protetiva, mas isso pode ser só um papel se ela não tiver o acompanhamento e fiscalização adequadas”, explica Maria Letícia.

Violência contra as mulheres negras

A situação de vulnerabilidade diante das violências é ainda mais acentuada quando se trata das mulheres negras. Segundo dados levantados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde entre os anos de 2015 e 2022, mulheres representam 75% das vítimas de violência física e sexual no Brasil. Já a Anistia Internacional aponta que 62% das vítimas de feminicídio no Brasil em 2022 eram mulheres negras.

Sobre este fenômeno, Joyce Lopes explica que mulheres negras de periferia são as que menos acessam o recurso de medida protetiva, seja por não conseguirem formalizar a denúncia, seja pela negativa de concessão pelos órgãos competentes. “Essa constatação está diretamente relacionada ao fato das mulheres negras serem o maior percentual entre as vítimas de feminicídio, além de serem o grupo com maior crescimento da taxa de violência de gênero”.

Falta de dados

Durante a produção desta matéria, buscamos dados sobre a quantidade de medidas protetivas concedidas a mulheres negras e o número de mulheres que foram mortas mesmo estando sob a suposta proteção dessas medidas, mas nenhum dado neste sentido foi encontrado. Também fizemos contato por e-mail com a Secretaria de Segurança Pública (SSP/BA), a Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres e o Ministério Público da Bahia no dia 4 de outubro de 2023, solicitando tais informações. No dia 9 de outubro recebemos uma mensagem informando que a solicitação foi enviada à Superintendência de Gestão Integrada da Ação Policial – SIAP. No dia 10 de outubro, a SIAP encaminhou a solicitação à Polícia Civil. No entanto, até o momento do fechamento da matéria, a solicitação não foi atendida. 

Joyce Lopes afirma que a produção de dados confiáveis que correlacionem aspectos como raça, geração, classe e território são fundamentais para o exercício do controle social e avaliação dos mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. “Precisamos de dados que nos informem constantemente o número e os condicionantes de mulheres assassinadas na condição de medida protetiva, para que possamos avaliar e incidir sobre os efeitos da Lei na coibição dos crimes contra mulheres”, conclui Joyce.

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