Cinco anos sem Elitânia de Souza e uma questão: O que é Justiça para Mulheres Negras em casos de feminicídio?
Por Redação Instituto Odara
Elitânia de Souza era uma jovem quilombola cheia de sonhos. Natural do Quilombo Brejo do Engenho do Guaíba, na Bacia do Iguape, em Cachoeira (BA), ela estava estudando Serviço Social na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), e além das suas atividades acadêmicas, se engajava politicamente nas lutas dentro da Universidade e da sua comunidade. A estudante atuava no Coletivo de Estudantes Quilombolas da UFRB – Osório Brito e era secretária da Associação de Mulheres do Quilombo Tabuleiro da Vitória (AMQTVA) – comunidade vizinha à sua.
Elitânia foi assassinada na noite de 27 de novembro de 2019, por seu ex-companheiro, José Alexandre Passo Góes Silva, filho de um juiz do tribunal baiano. Mesmo após inúmeras denúncias de agressões, ameaças e perseguições e a emissão de duas medidas protetivas, Alexandre tirou a vida de Elitânia em uma emboscada, disparando tiros que atingiram a cabeça e o peito da jovem enquanto ela voltava da aula na UFRB.
Após cinco adiamentos, o julgamento de Alexandre aconteceu em 31 de julho de 2024, no Fórum Augusto Teixeira de Freitas, em Cachoeira. O réu foi condenado a 18 anos de prisão por homicídio duplamente qualificado, feminicídio e descumprimento de medida protetiva, além de porte ilegal de arma. A sentença, apesar da responsabilização do autor, levanta o questionamento: O que é justiça para as mulheres negras em casos de crimes de feminicídio?
A luta por justiça para Elitânia e outras mulheres negras também é a luta por um enfrentamento mais profundo às estruturas que perpetuam a violência. Valdecir Nascimento, ativista e idealizadora do Odara – Instituto da Mulher Negra, destaca a insuficiência das ações do Estado para proteger essas mulheres.
“Não basta condenar. É preciso desmantelar o sistema com uma aliança fina com gestores públicos. Uma sociedade que defende tanto a família e o casamento não encontrou ainda ferramentas para reduzir a letalidade dessa experiência. Justiça para nós, mulheres negras, vai além da prisão de agressores; é sobre construir uma sociedade onde possamos viver livres, escolher com quem casar, dizer não quando necessário, e parar de ser assassinadas.”
Valdecir também defende a centralidade do enfrentamento à violência na gestão pública: “A verdadeira justiça só será alcançada quando enfrentarmos a violência desde a base, com uma educação que ensine desde os primeiros anos de vida que homens não têm o direito de matar mulheres. Mais do que pensar na economia ou construir estradas, é preciso colocar o enfrentamento à violência no centro da gestão pública.”
MUDANÇAS NA LEGISLAÇÃO E O CAMINHO AINDA A PERCORRER
Embora a condenação de Alexandre seja um marco, destacamos que não basta a criminalização do réu. O Estado brasileiro falhou em proteger Elitânia, mesmo diante das múltiplas denúncias de violência e das medidas protetivas que não foram cumpridas. Esses casos escancaram a necessidade de responsabilização dos organismos estatais e de indenização pelos danos causados às famílias das vítimas de feminicídio.
O caso também levanta debates sobre a importância de mudanças legislativas e políticas públicas que garantam maior proteção às mulheres. Em outubro de 2024, uma alteração na legislação aumentou as penas para casos de feminicídio, refletindo a pressão dos movimentos de mulheres por medidas mais severas contra esses crimes. No entanto, avaliamos que o recrudescimento da punição é uma medida paliativa frente a negligência, incompetência e desinteresse do Estado em promover ações de prevenção e enfrentamento para redução dos índices de violência que, inclusive, não corroborem com a lógica do punitivismo e com a problemática do encarceramento em massa.
EM DEFESA DA RESPONSABILIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO
O caso de Elitânia não é isolado. Os dados alarmantes mostram que 67,4% das mulheres vítimas de feminicídio no Brasil são negras, evidenciando como raça e gênero se entrelaçam para agravar a vulnerabilidade dessas mulheres.
A Medida Protetiva de Urgência (MPU) é um instrumento legal de concessão às autoridades judiciais para proteger vítimas de violência doméstica ou familiar, impondo restrições aos agressores, como a proibição de aproximação da vítima. Segundo um estudo realizado pelo Consórcio Lei Maria da Penha, em parceria com o Instituto Avon e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre janeiro de 2020 e maio de 2022, foram concedidas 572.159 medidas protetivas de urgência a mulheres em situação de violência doméstica no Brasil. Contudo, ainda há uma lacuna significativa de dados sobre o número de medidas protetivas concedidas especificamente para mulheres negras, bem como sobre quantas mulheres foram assassinadas mesmo sob a suposta proteção dessas medidas. Essas ausências evidenciam a necessidade de maior transparência e aprofundamento na coleta de informações para enfrentar as desigualdades raciais e de gênero
A ativista do Instituto Odara e coordenadora dos projetos de enfrentamento às violências contra mulheres negras, Joyce Lopes, destaca que “Elitânia pediu socorro à justiça e teve seus pedidos menosprezados. O Estado precisa pagar por isso. Nada trará de volta a vida de Elitânia, ou mesmo o sentimento de justiça para seus familiares, amigos e comunidade, mas pensar e executar medidas reparatórias é um passo importante do pagamento da dívida acumulativa e incalculável que o Brasil tem com as mulheres negras. Temos falado sobre indenização para as famílias, mas reparação é muito mais que isso, é necessário pensar na perda coletiva, comunitária, no âmbito dos direitos humanos e cobramos resposta de um governo que de fato assuma seu compromisso pelo fim da violência e pague também de forma coletiva pelos danos causados”
Lorena Pacheco, ativista do Instituto Odara, advogada especializada no atendimento às mulheres vítimas de violência, e mestra em Direitos Humanos, destaca que o Estado carrega uma responsabilidade direta ao falhar na proteção das mulheres, especialmente em casos que envolvam medidas protetivas. Segundo ela, é dever do Estado observar, avaliar, acompanhar e fiscalizar o cumprimento dessas medidas. A omissão nesse processo configura uma grave violação que exige reparos não apenas para as vítimas, mas também para os familiares impactados. Quando o Estado não garante a proteção, torna-se necessário que ele assuma o compromisso de indenizar as vidas que foram irreversivelmente afetadas.
“O prazo de avaliação para medidas protetivas, que deveria ser de 48 horas, frequentemente se estende por meses. Essa demora expõe as mulheres a novas formas de violência, inclusive processual, que é uma violência de gênero por negligenciar demandas urgentes das mulheres. Mesmo quando as medidas passam a valer, a rede de proteção é incapaz de garantir a vida dessas mulheres, resultando em tragédias como feminicídios”, explica Lorena.
Além de responsabilizar os agressores, movimentos sociais, como o Instituto Odara, clamam por medidas indenizatórias às famílias das vítimas. Lorena Pacheco reforça que essas peças devem ser amplas: “Não se trata apenas de indenizações financeiras, mas também de reconstruir a confiança na sociedade. Quando uma mulher é assassinada, o impacto é devastador para os familiares, especialmente aos filhos que ficam órfãos. É urgente que o Estado implemente uma rede de apoio às famílias e crie políticas que ofereçam segurança e dignidade às mulheres que ainda vivem.”
A MOBILIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
Os movimentos sociais não deixaram o caso ser esquecido. A memória da jovem é lembrada em atos, marchas e na realização da Semana Elitânia de Souza – Pela Vida das Mulheres Negras, que denuncia as constantes situações de violência vividas por mulheres negras. A agenda é organizada pelo Instituto Odara, em parceria com o Coletivo Angela Davis, o Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL – UFRB), e outras organizações e coletivos como o Centro Comunitário do Rosarinho (Núcleo de Mulheres do Alto do Rosarinho), o Grupo de Mulheres Kizomba e a Associação Artístico Cultural Odeart.
Elitânia foi arrancada de seu futuro, mas sua memória segue iluminando os caminhos de quem luta por um Brasil onde as vidas negras, femininas e quilombolas sejam plenamente valorizadas e protegidas.
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