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Após oito anos, ex-policial Militar Paulo Roberto Machado é condenado por tentativa de transfeminicídio contra Bárbara Trindade 

O segundo réu, o frentista Domingos Mendes, foi absolvido por falta de provas;  já Paulo Roberto foi reconhecido como autor do crime ocorrido em Presidente Dutra e condenado a 13 anos e 10 meses de prisão

Por Adriane Rocha – Redação Odara 

O Tribunal do Júri de Irecê condenou, nesta quarta-feira (30), o ex-policial militar Paulo Roberto Ferreira Machado, 37 anos, pela tentativa de transfeminicídio que deixou Bárbara Trindade tetraplégica em 2017, na cidade de Presidente Dutra, interior da Bahia. Após 20 horas de julgamento, presidido pela juíza Isabela Pires, o réu foi sentenciado a 13 anos e 10 meses de prisão. 

A pena inicial de 21 anos foi reduzida em um terço por se tratar de crime tentado, ficando em 14 anos. Com o desconto de 146 dias já cumpridos em prisão preventiva, o resultado final foi de 13 anos e 10 meses. Paulo foi condenado por: autoria dos disparos, motivo torpe, impossibilidade de defesa da vítima e tentativa de homicídio

O segundo réu, Domingos Mendes Machado Neto, 28 anos, foi absolvido.

A tentativa de transfeminicídio aconteceu na noite de 2 de abril de 2017, quando Bárbara, então com 21 anos, estava em Presidente Dutra cuidando da mãe doente. Por volta das 23h, ela saiu para encontrar, supostamente,  Domingos Mendes, nas proximidades da igreja do bairro. Segundo relata, os dois já haviam conversado ao longo do dia, e o perfil que interagia com ela no WhatsApp utilizava o nome e a foto de Domingos.

“Eu sentei no canteiro e senti algo encostar na minha cabeça. Foi o primeiro tiro. Tentei levantar e recebi o segundo”, disse Bárbara durante o julgamento.

Os disparos atingiram a coluna e o maxilar, deixando sequelas irreversíveis. A vítima passou por três hospitais, enfrentou infecções, cirurgias e longos períodos de internação. Hoje, aos 29 anos, Bárbara vive com tetraplegia, em São Paulo, numa casa de apoio totalmente dependente de cuidados.

A NARRATIVA DO RÉU

Durante o júri, Paulo Roberto negou ter atirado, e que tenha tido qualquer envolvimento com Bárbara. Em seu depoimento, disse ser vítima de invasão de privacidade  e afirmou que sofreu perseguiçao e discriminação  na Polícia Militar após o vazamento de foto íntima sua ao lado dela. Em suas palavras:

“Se eu tivesse me relacionado com ela, eu falaria. Não teria problema. Mas a Polícia Militar é preconceituosa, não aceita pessoas que se relacionam com pessoas do mesmo sexo. Só de estar respondendo a esse processo já é uma punição. Meu dia a dia é de muita fisioterapia. O Estado que me colocou aqui é o mesmo que não me ajudou quando precisei.”

Em outro momento, reforçou:

“Eu nunca tive nenhum tipo de envolvimento com Bárbara. Não pilotei moto, não atirei nela, não participei desse crime. Estou sendo injustiçado. Eu não tinha motivo nenhum de atirar em Bárbara, ela foi tão vítima quanto eu em relação à privacidade. E quem tirou a foto, eu perdoei e jamais tentaria contra a vítima.”

Em tom emocionado, citou versículos bíblicos e disse que os oito anos respondendo ao processo foram “uma condenação” por si só. A defesa tentou convencer o júri de que Paulo não tinha motivo para atirar e que o crime não deveria ser caracterizado como transfeminicídio, mas a versão não foi aceita pelo Conselho de Sentença.

Entre os autos do processo foi registrado que a arma do crime contra Bárbara foi encontrada concretada no quintal da casa de Paulo, em um operação policial realizada mediante a denúncia de seus pais. Testemunhas ouvidas no júri relataram a prática de Paulo de criação de perfis falsos para realizar ameaças e perseguições.

NÃO CONHECIA DOMINGOS, NÃO ÉRAMOS AMIGOS SÓ O CONHECIA  DE VISTA”, AFIRMOU O EX-POLICIAL MILITAR PAULO MACHADO 

O segundo réu, Domingos Mendes Machado Neto, 28 anos, foi absolvido pelo júri. Ele respondia como suposto cúmplice do crime, acusado de atrair Bárbara para o encontro onde os disparos ocorreram. Durante todo o julgamento, Domingos negou envolvimento e disse que foi vítima de uma associação injusta ao caso.

Em depoimento, afirmou que estava em casa na noite do ataque, após sair do trabalho em um posto de combustíveis, e que sequer ouviu os disparos. Contou que pediu ao pai dinheiro para comprar uma pizza e permaneceu na residência:

“Eu estava em casa. Essas mãos nunca pegaram em arma. Eu jamais faria isso com ela.”

Domingos ainda disse que só soube das acusações quando recebeu uma ligação de conhecidos informando que seu nome estava circulando na cidade como suspeito:

“Eu fiquei surpreso. Quando falaram que estavam dizendo que fui eu, eu fui para a delegacia de livre e espontânea vontade porque tinha a consciência limpa.”

A defesa dele também reforçou que, na época do crime, Bárbara havia publicado nas redes sociais que estava na cidade, e por isso houve contato inicial por mensagens, mas Domingos negou ter combinado qualquer encontro para aquela noite.

Apesar do histórico de desavenças entre sua família e a família de Bárbara  que incluía acusações antigas de violência e até estupro coletivo contra um irmão da vítima, envolvendo parentes de Domingos, o júri considerou que não havia provas concretas de que ele tenha participado da execução ou planejado o crime. 

ATO JUSTIÇA POR BÁRBARA TRINDADE

O julgamento foi acompanhado de uma mobilização social em Irecê. O caso de Bárbara Trindade, atraiu a presença de movimentos de mulheres negras, coletivos LGBTQIA+ e organizações de direitos humanos, que ocuparam o Fórum. 

O ato “Justiça por Bárbara” foi articulado por entidades como Odara – Instituto da Mulher Negra e TamoJuntas, que acompanham o caso oferecendo assessoria jurídica e suporte multidisciplinar à vítima. 

Para as organizações, a condenação de Paulo Roberto representa uma vitória parcial contra a impunidade de crimes de ódio no Brasil, mas também evidencia as falhas  na proteção de pessoas trans e travestis.

A advogada Laina Crisóstomo, da TamoJuntas, que atuou como assistente de acusação ao lado do Ministério Público, reforçou a importância da mobilização social como parte da luta por justiça:

O caso de Bárbara não é isolado. Ele mostra que o sistema e o Estado têm falhado miseravelmente com corpos diversos. Foi nítido aqui neste tribunal a forma como Bárbara foi tratada o tempo inteiro por um pronome que não era o dela, isso também fala sobre a falha do Estado para com essas mulheres. ”

Para Laina, o ato público e a presença Da sociedade civil no julgamento também cumprem um papel político:

“No Brasil, mulheres trans e travestis não têm acesso ao direito de viver. Elas não só são assassinadas, mas também são privadas de políticas públicas, saúde e dignidade. Estar nas ruas, ocupando o espaço do júri, é dizer que nenhuma vai tombar em silêncio. Esse julgamento é sobre justiça e reparação, não só para Bárbara, mas para todas nós. Foram dois tiros que destruíram não só a mobilidade dela, mas seus sonhos, sua família e seu direito de existir. Esse corpo não serve para amor, serve para ser morto numa rua escura às 23h.”

Joyce Souza, coordenadora dos projetos de enfrentamento às violências contra mulheres negras do Odara-Instituto da Mulher Negra, questionou sobre justiça e responsabilização para além da condenação do réu.

“O Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo e no Nordeste ocorre a maior concentração de casos de transfobia registrados, mais de 70% das vítimas são de pessoas negras. Bárbara hoje vive dependente do Benefício de Prestação Continuada, quem vai reparar ela pra garantia do que é ideal pra sua qualidade de vida e dignidade humana? Quando o estado brasieliro vai ser também responsabizado por atrocidades como essa que ocorrem diariamente? Que justiça é essa que a vítima segue em condições desumanas de sobrevivência?”

Joyce tratou também sobre a importância da mobilização política para disputa de narrativa e mudança do entendimento popular sobre os direitos das pessoas trans e travestis:

“Reconhecemos o impacto de mobilizarmos um ato como este em uma cidade pequena do interior da Bahia, estamos formando opinião pública. Dissemos pra sociedade de Irecê que Bárbara não está sozinha, que ela não é uma caso, mas uma pessoa com história, com vínculos, com o direito à ampla defesa de sua vida. No frigir dos ovos, somos nós mulheres negras que nos seguramos umas às outras contra a onda de violência em direção aos nossos corpos”.

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