CONEXÕES PARA O BEM VIVER: Organizações realizam diálogos sobre reparação, justiça racial e tecnologias, paralelo ao Fórum da Internet do Brasil (FIB), em Salvador (BA)

O evento, que debateu acesso e democratização da tecnologia no contexto da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, convergiu propostas do Instituto Odara, ABONG, Ação Educativa, Cedenpa, Elo e IBASE, inscritas e rejeitadas no FIB
Por Adriane Rocha
Nos dias 28 e 29 de maio, Salvador (BA) recebeu o evento “Conexões para o Bem Viver: Reparação, Justiça Racial e Tecnologias Digitais”, realizado no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO). O encontro reuniu coletivos e organizações negras que vêm construindo uma atuação tecnopolítica comprometida com a reparação histórica e a centralidade das experiências negras no ambiente digital.
A iniciativa foi organizada a partir da parceria entre a Abong – Associação Brasileira de ONGs, o Odara – Instituto da Mulher Negra, o comitê nacional impulsor da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, o Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa) e a Elo – Ligação para a Cidadania.
Ao longo da programação, o evento promoveu debates sobre a apropriação das tecnologias pelos movimentos sociais, o impacto das plataformas digitais na equidade racial, a desinformação entre crianças e adolescentes e as conexões entre justiça ambiental e justiça algorítmica.
A abertura aconteceu na tarde da terça-feira (28), com debate em torno da mobilização da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, prevista para o dia 25 de novembro de 2025, em Brasília. A Marcha propõe reunir um milhão de mulheres negras de todo o país e reafirma o Bem Viver como horizonte civilizatório.
Naira Leite, coordenadora executiva do Odara – Instituto da Mulher Negra, esteve presente no evento e defendeu a criação de um comitê de mulheres negras para pensar tecnologia, internet e inteligência artificial dentro da Marcha das Mulheres Negras. Segundo ela, é urgente trazer essas pautas a partir das vivências das mulheres negras, indígenas e quilombolas, conectando o debate sobre reparação à ciência e à tecnologia, e afirmou que esse trabalho será construído por quem já tem acúmulo no tema e convocou todas à mobilização comunitária: “O Brasil vai parar dia 25 de novembro, e todo mundo já sabe o que tem que fazer. A marcha é nossa, mas é para o mundo.”
A mesa inicial contou com Alessandra Caripuna, do Instituto Kitanda Preta, que apresentou experiências na Amazônia que integram moda, identidade, economia preta e tecnologia ancestral; Jaqueline Franco, professora de Porto Alegre, referência em práticas pedagógicas afro centradas com uso crítico da tecnologia; Thiane Neves, do CEDENPA, que destacou a construção de uma tecnopolítica enraizada no Bem Viver e Vic Argôlo da Silva, também do CEDENPA, pesquisadora em segurança digital e afetividades negras, que defende a escrevivência como ferramenta de disputa no ambiente digital.
A mediação foi feita por Brenda Gomes, comunicadora, pesquisadora e ativista do Odara, que abriu o debate afirmando: “Pensar em tecnologia a partir do nosso lugar é reconhecer que o digital também é território”. Para ela, a ocupação desse território pelas mulheres negras é um ato político de reparação, retomada e afirmação.
O debate perpassou por diversas áreas da tecnologia ancestral, da construção de redes comunitárias à crítica sobre o funcionamento das grandes plataformas. Segundo Thiane, “existe uma busca por autonomia que é nossa, que é anterior ao digital, porque essa é a história dos nossos corpos e das nossas territorialidades. Quando a gente constrói um site próprio, por exemplo, é mais do que ferramenta: é território, é liberdade. É dizer que a gente não precisa cumprir algoritmos, não precisa ser influenciadora, nem seguir rotina de blogueira para comunicar o que precisa ser dito. A gente constrói espaços com a nossa cara, no nosso tempo e do nosso jeito.”
No segundo bloco do primeiro dia, o painel “(In)formar na Era Digital – Caminhos para superar a desinformação entre crianças e adolescentes conectados (LGPD)” reuniu especialistas e ativistas para debater os desafios e estratégias na luta contra a desinformação que atinge as infâncias e juventudes nas redes digitais.
Com mediação de Nirvana Lima, do RECRIA – Rede de Pesquisa em Comunicação, Infâncias e Adolescências, o debate contou com a participação de Débora Campelo, do Odara – Instituto da Mulher Negra; Gabriela Almeida, da Universidade de Brasília; Johanna Monagreda, da Universidad Central de Venezuela / CANDACES; Leuziene Lopes, da C-Partes; e Rodrigo Lopes, do Pajubá Tech e RECRIA, a discussão abordou os impactos da desinformação no desenvolvimento das crianças e adolescentes, e a importância da proteção de dados (LGPD) e caminhos para fortalecer a comunicação ética, inclusiva e responsável nesse universo digital conectado.
Débora, coordenadora do Projeto Ayomide Odara, destacou como as tecnologias e a educomunicação têm sido ferramentas fundamentais na formação política de meninas negras na Bahia. Para ela, a comunicação deve ser entendida não apenas como um instrumento, mas como um direito, um meio de expressão, autonomia e construção de futuros possíveis a partir das vivências e perspectivas das próprias meninas.
“A gente tem trabalhado com as meninas negras da Bahia a partir da educomunicação e das tecnologias como ferramentas de liberdade. Mas mais do que isso, defendemos a comunicação como um direito, um direito de falar, de se ver, de se representar. Quando uma menina negra entende que pode contar sua história com sua própria voz, ela começa a construir outros caminhos para si e para a comunidade. E é isso que o Ayomide busca: formar meninas que se reconheçam como potências e comunicadoras das suas realidades.”
No segundo dia de evento, foram discutidos temas como o colonialismo digital e racismo algoritmo. A mesa foi composta por Emanuel Herbert Elias Alencar – Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas – MAKIRA-E’TA, Jamile Borges da Silva – UFBA / CEAO – Centro de Estudos Afro-Orientais, Laila Thaíse Batista de Oliveira – Rede de Mulheres Negras de Sergipe e do Nordeste / CDR, Paulo Victor Melo – Intervozes Sil Bahia – Olabi / PretaLab e mediação de Tarcízio Silva do Projeto Nanet.
Nesse primeiro momento, as falas giraram em torno das experiências que fundam e impulsionam a luta por outras tecnologias, com base na memória, na imaginação e na ancestralidade negra. Sil Bahia, da Olabi e PretaLab, compartilhou reflexões potentes sobre encantamento, redes e reparação, destacando como a tecnologia pode ser pensada a partir de experiências negras, não apenas como ferramenta, mas como possibilidade de reinvenção do mundo.
Ela lembrou o impacto de ver jovens negras usando dados de uma pesquisa da Tetela Inovadora em seus trabalhos acadêmicos, reconhecendo-se ali e acessando, pela primeira vez, nomes como Sueli Carneiro, Lélia Gonzaga, Beatriz Nascimento. Mas foi além: falou do surgimento do PretaLab, da importância de sonhar e experimentar, mesmo diante do descrédito, e da urgência de construir um pensamento coletivo sobre reparação e tecnologia. “A gente não pode esperar resolver o saneamento básico para depois discutir tecnologia”, disse. “Essas pautas precisam caminhar juntas.” Sil trouxe, assim, um chamado à imaginação radical como ferramenta política, apontando rotas de fuga diante do desencanto imposto pelo sistema.
No segundo momento, foi a vez de debater o conceito do impacto ambiental e pensar como articular justiça ambiental e justiça algorítmica em uma agenda que reconheça as interdependências entre território, dados e poder com Bianca Kremer – CGI.br – Comitê Gestor da Internet no Brasil, Mariana Belmont – Geledés – Instituto da Mulher Negra, Samilly Valadares – Instituto Perpetuar e mediação de Juli Cintra.
Samilly Valadares, quilombola do território de Jacundá e integrante do Instituto Perpetuar, fez da sua fala um verdadeiro chamado ancestral, partindo da memória da avó Perpétua, liderança do quilombo e inspiração para a criação do projeto.
Com base em experiências vividas no território quilombola de Jamboaçu, Samilly apresentou iniciativas que ecoam resistências ancestrais diante das múltiplas violações enfrentadas pelos quilombos, inclusive aquelas mediadas pelas tecnologias atuais. “A gente quebra castanha na boca de muita gente”, disse, citando sua avó, para marcar que suas ações confrontam diretamente as estruturas sociais e racistas que negam seus direitos.
A partir de três experiências: o Jacundá iLab, a Escola de Liderança Quilombola e o projeto “Elas Aquilombam” — ela mostrou como as comunidades estão produzindo tecnologias ancestrais em diálogo com ferramentas digitais, ocupando a internet como território político e comunicacional. Samilly defendeu que o debate climático só fará sentido se os quilombos forem centralizados nele: “É necessário que toda a sociedade esteja em clima de quilombo para construir caminhos possíveis”. Com essa força coletiva, ela reafirmou que os modos de vida quilombolas não são alternativos, mas centrais na luta por justiça racial, climática e social.
“REJEITADOS DO FIB”
Durante o “Conexões para o Bem Viver: Reparação, Justiça Racial e Tecnologias Digitais”, organizações da sociedade civil reuniram-se para afirmar a urgência de uma internet construída a partir de princípios antirracistas, populares e enraizados nos modos de vida dos territórios negros. Enquanto esse encontro acontecia em Salvador (BA), o Fórum da Internet no Brasil (FIB), etapa preparatória para o Fórum de Governança da Internet Mundial acontecia na mesma cidade, mas excluía sistematicamente as vozes negras: grande parte dos painéis propostos por essas organizações foi rejeitada. Essa ausência escancarou o racismo e a falta de disposição em debater justiça racial, reparação e Bem Viver como eixos centrais das tecnologias.
Juliane Cintra, diretora executiva da Abong e coordenadora do Projeto Nanet, afirmou o quanto realizar o evento para falar de tecnologia para a população negra é contrapor as narrativas e uma estratégia de fortalecimento da população negra: “A governança da internet no Brasil precisa refletir sobre a diversidade do nosso povo. Esse evento é uma resposta política e simbólica à exclusão sistemática de pautas urgentes como raça, gênero e território. Queremos afirmar que a justiça racial também é um princípio essencial na construção de uma internet democrática”.
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