Entre a direita e a esquerda, o corpo negro segue sendo alvo: os modelos de segurança do Rio e da Bahia como política de genocídio

A megaoperação nos complexos do Alemão e da Penha, com mais de 2.500 policiais, deixou dezenas de mortos e expõe a continuidade de um modelo de segurança pública baseado na militarização, violência e extermínio de corpos negros, que reproduz padrões do Rio e da Bahia, afetando diretamente vidas, escolas e transportes nas periferias
Por Redação Odara
A “mega operação” realizada nos complexos do Alemão e da Penha no Rio de Janeiro, na manhã da última terça-feira (28), envolvendo pelo menos 2500 policiais civis e militares, se tornou a mais letal da história. Inicialmente, foram contabilizados 64 quatro mortos – 60 civis e 04 agentes de segurança, segundo os números oficiais do Governo do Rio -, entretanto, um dia após a chacina, moradores encontraram outros corpos em áreas de mata nos arredores das comunidades, muitas com marcas de execução, a exemplo de tiros na nuca e nas costas, e já se fala em mais de 129 pessoas assassinadas, devendo aumentar.
Desde as imagens da fumaça oriundas dos pneus queimados nas barricadas até a das centenas de corpos pretos e pardos seminus e sem vida, enfileirados em protesto, o cenário é de guerra, fiel ao que as comunidades vivenciaram nas últimas horas. Até ontem, a chacina mais letal do estado havia sido a do Jacarezinho, ocorrida em 2021 e que deixou 28 mortos – 27 civis e um policial -, e evidencia a gravidade sem precedentes da “Operação Contenção”, mesmo em se tratando do contexto do Rio de Janeiro.
Sob o comando de Cláudio Castro aconteceram 3 das 4 ações mais violentas da história do Rio de Janeiro, mas não se trata de um modo de agir restrito ao político bolsonarista. Um relatório do GENI – Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense realizou uma pesquisa das chacinas policiais ocorridas no Estado entre os anos de 1990 a 2025, evidenciando que a política de segurança pública baseada em grandes operações policiais tem sido a métrica inefetiva de governadores de bandeiras partidárias distintas, e que têm obtido como saldo o aprimoramento da política de morte, ao passo em que não se percebe a diminuição da criminalidade, mas sua consolidação e expansão.
Apesar da flagrante ineficácia do modelo, o que se percebe é uma involução diante do fracasso ou a assunção pública de que para o que realmente se pretende, a política de morte tem sido exitosa, ainda que nas justificativas do governo do Rio de Janeiro estejam o combate à expansão territorial e prisão de líderes de facções.
Essa involução no modelo de se fazer segurança pública ganha outros contornos quando se analisa, por exemplo, a “Operação Carbono Oculto”, desenvolvida na Faria Lima, em São Paulo, que envolveu o Ministério Público de 08 estados, polícia federal, receita federal, entre outros órgãos, e foi capaz de estabelecer e expor conexões entre a criminalidade organizada e o setor de combustível, responsáveis por movimentar cerca de R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024, sem, contudo ter sido necessário que se derramasse uma gota de sangue.
Na mesma esteira, e em consideração às pontuações que dão conta dos arsenais de guerra usadas pelas facções, muitas de uso restrito, importa relembrar que as maiores apreensões de fuzis da história do Estado do Rio de janeiro não ocorreram nos complexos de favelas, mas no Méier (117 fuzis), numa loja em Nova Iguaçu (68 fuzis e 12 revólveres), e no Galeão (60 fuzis), também nesses casos não se disparou tiros ou derramou sangue.
Essas conexões são importantes porque também estabelece um linha tênue entre riqueza e pobreza, entre territórios protegidos e territórios violentados, entre branquitude e racismo, entre sujeitos de direitos – ainda que suspeitos – e corpos descartáveis – mesmo que gozando da presunção de inocência. Estas operações banhadas a sangue têm sempre como destinatárias a base, os peões no xadrez das organizações, em que para cada 100 mortos, terão o dobro para assumir seus postos. Enquanto as posições intermediárias, aquelas que, efetivamente fazem a roda girar e estabelecem a ligação entre crimes, grandes negócios e proteção política, raramente são alcançadas e, quando são, são cobertas pela legalidade.
Em meio à crise instaurada pela “Operação Contenção” no Rio de Janeiro, quem assume a articulação do governo federal para lidar com a situação é Rui Costa. Governador do Bahia entre os anos de 2015 e 2023, consolidou um modelo de segurança pública centrado na militarização e no policiamento ostensivo, e aqui, que não nos esqueçamos da Chacina do Cabula, tampouco da fala do então governador que comparou a atuação de sua polícia à jogada “de um artilheiro em frente ao gol”.
O intercâmbio entre os dois estados, aliás – Bahia e Rio de Janeiro – excede o fato de possuirmos belas praias e de fazermos dois dos maiores carnavais do mundo. Em se tratando de Segurança Pública, temos importado há tempos o modelo falido e assistido, portanto, também ao acirramento de seus resultados que legou à Bahia o título de polícia que mais mata no país.
Exemplo disso foi a instalação de Bases Comunitárias de Segurança da Bahia, em 2011, inspiradas nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro e em ambos os estados são experiências marcadas pela intensificação dos confrontos e militarização dos territórios, além de corrupção e desrespeito aos direitos das comunidades nas quais foram instaladas.
No Rio de Janeiro, assim como na Bahia, em especial nas periferias de Salvador, os efeitos dessas operações são sentidos no dia-a-dia da população através do fechamento do comércio local, suspensão das aulas nas universidades e escolas, empresas e repartições que precisam dispensar funcionários mais cedo, no transporte público que, no caso de ontem no Rio, tiveram cerca de 120 linhas com o itinerário afetado ou não puderam funcionar, fazendo com que as pessoas tivessem que faltar ao trabalho ou não pudessem fazer suas atividades cotidianas.
A longo prazo, essas implicações são incalculáveis, sobretudo para as juventudes, como demonstra o estudo “Educação Sob Cerco – Aprendizagem: Efeitos da Violência armada no aprendizado e abandono escolar nas escolas do Grande Rio”, realizado pela UNICEF em parceria com Instituto Fogo Cruzado (IFC), o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF) e o Centro para o Estudo da Riqueza e da Estratificação Social (CERES-IESP), responsável por identificar que quase 40% dos estudantes não atingiram o mínimo de conhecimento para o ano escolar em que estão, além de estabelecer evidente correlação entre as taxas de abandono escolar em áreas marcadas pela violência armada.
Neste mesmo sentido, uma pesquisa do Fogo Cruzado e da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas realizada em 2024, deu conta que 1 (um) em cada 4 (quatro) tiroteios mapeados na capital baiana ocorre em horário letivo e em até 300 metros de distância de escolas públicas; 76% das escolas públicas de Salvador registraram tiroteios em seu entorno durante o período analisado, que compreendeu 04 de julho de 2022 a 30 de agosto de 2024. Tais conflitos armados representaram a suspensão de cerca de 161 dias letivos para as escolas públicas estaduais e municipais.
Outro ponto a ser destacado é o adoecimento mental a que estão expostas as comunidades que convivem diuturnamente com essa política de guerra. Nesse sentido, uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania do Rio (CESEC), que contou com a participação de 1.500 moradores de seis favelas do Rio, revelou que cenários de violência urbana concorrem para o adoecimento físico e mental das pessoas, incluindo quadros de insônia, ansiedade, depressão e pressão alta. Quadros que não se diferem dos relatos constantes nas experiências dos moradores de comunidades violentadas de Salvador.
Há, portanto, na política de segurança pública presente em ambos os estados, uma tentativa de aniquilamento de todas as possibilidades de vida e existência das populações negras periféricas, aposta num modelo de beligerância falho,caso o objetivo fosse a proteção da vida, mas exitoso em produzir a morte de corpos determinados como historicamente se pretende, e, entre governos da esquerda e da direita, negros seguem sabendo que o é, cotidianamente lembrados de maneira violenta e letal.
Para as famílias das mais de uma centena de corpos pretos sem vida, que continuarão nos territórios violentados, vivendo o horror do luto e o medo da próxima operação, nem condolências, já que para o governador Cláudio Castro, “a operação foi um sucesso” e “de vítimas lá, só tivemos os policiais”.

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