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III Encontro por Novo Modelo de Segurança Pública reúne Juventudes e Mães de Vítimas do Estado de Salvador (BA) e Olinda (PE)

Por Adriane Rocha | Redação Odara

Nos dias 15, 16 e 17 de Novembro de 2024 o Projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, do Odara – Instituto da Mulher Negra, recebeu jovens e mães de Salvador e Olinda para discutir Segurança Pública em seus respectivos estados.  O encontro, que acontece anualmente desde 2022, promoveu o intercâmbio entre as juventudes do Odara, das comunidades do Cabula e do Complexo do Nordeste de Amaralina, em Salvador (BA), e a juventude do Grupo Comunidade Assumindo suas Crianças (GCASC), de Pernambuco; além de proporcionar a troca entre mães de vítimas do Estado que participam do Projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, e o projeto Mães da Saudade que integra o GCASC (Grupo Comunidade Assumindo Suas Crianças).

A programação incluiu oficinas, rodas de conversa, mostras de teatro, dança, música e pesquisas realizadas ao longo do ano pelas comunidades. Além de fortalecer os laços entre a Bahia e Pernambuco, o encontro representou mais uma oportunidade para intensificar o debate e desenvolver estratégias de enfrentamento à violência do Estado e ao genocídio da população negra.

Gabriela Ramos, coordenadora do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, explicou sobre a proposta metodológica desta edição do Encontro: “Nas edições anteriores realizamos mesas de debate no formato de palestras, o que foi proveitoso. Contudo, este ano decidimos mudar o formato, atendendo ao que as juventudes do projeto indicaram como mais relevante. Criamos uma atividade exclusiva para eles, elas, os familiares das vítimas que acompanhamos e convidados do GCASC. Essas atividades permitiram que os participantes vissem como podem, de forma autônoma, criar narrativas contra-hegemônicas sobre seus territórios, utilizando dados para enfrentar as violações de direitos humanos.”

A coordenadora ainda destacou que as trocas de experiências foram marcantes, e poder observar que as vivências não eram individuais tanto da Bahia quanto de Pernambuco foi um ponto importante no Encontro: “Nossos jovens e as mães presentes apontaram a violência racial e policial como um fenômeno generalizado. Reafirmaram também que, ao longo do ano, aprenderam sobre direitos humanos e como isso tem impactado suas percepções e ações.”

“Eles se expressam de formas múltiplas e potentes. Isso ficou evidente nos produtos de comunicação apresentados – como revista, podcast, videocast, jornal comunitário, documentário e curta-metragem – além das artes, como poemas e performances musicais. Esse tipo de abordagem nos mostra que existem múltiplos caminhos para a formação e para a incidência política. As juventudes negras têm muito a dizer e estão em movimento”, afirmou Gabriela. 

Entendendo essas múltiplas habilidades dos jovens, a Jornalista Andressa Franco, da Revista Afirmativa, facilitou a Oficina Comunicação como Ferramenta de Defesa dos Direitos Humanos, onde pôde bater um papo com os jovens sobre a importância das mídias negras estarem indo contra os modelos jornalísticos comerciais, e de que forma cada um deles podem ecoar as suas vozes em seus próprios territórios e comunidades: “Saio dessa oficina com a convicção de que a gente tem uma juventude que está muito atenta para a centralidade da disputa de narrativas para desconstruir estereótipos e promover uma visão justa e realista dos grupos que historicamente são vulnerabilizados. Uma juventude que está organizada no sentido de contestar e modificar discursos dominantes que perpetuam preconceitos, associam pessoas negras à violência, à criminalidade, à subalternidade, e invisibilizam suas vivências e demandas históricas”, destacou Andressa. 

A jonalista afirma ainda que, mais importante do que ter uma juventude ativa, é ter uma juventude propositiva, que esteja atenta ao projeto de genocídio da população negra em curso. Diante desse cenário, essa juventude prioriza a busca por imaginar e criar alternativas para um novo modelo de segurança pública, que passa pela disputa dos imaginários e estereótipos estabelecidos sobre seus territórios e vivências. “Vejo que é uma juventude que está muito interessada em tirar a diversidade de suas experiências da invisibilidade e usá-las para construir e comunicar o projeto de Bem Viver, que atenda às suas necessidades, garanta a possibilidade de se expressar, acessar e produzir cultura, ciência e educação, e sonhar e decidir sobre seus futuros”, conclui.

O QUE OS JOVENS NEGROS PENSAM SOBRE SEGURANÇA PÚBLICA? 

Dados da Agência Brasil expõem uma verdade brutal: Nas capitais do Nordeste matam-se mais jovens do que o Rio de Janeiro (RJ), que já é conhecido pelas cenas de violência e tiroteios. A média de homicídios nas nove capitais do Nordeste, para jovens de 15 a 29 anos, é de 165,4 a cada 100 mil habitantes – uma taxa escandalosa, enquanto o Rio de Janeiro registra 97,5 homicídios a cada 100 mil jovens. A realidade das nossas periferias é muito mais cruel. Entre 2012 e 2021, 298.602 jovens foram assassinados no país, sendo 76% negros, de acordo com levantamento do Plano Juventude Negra Viva, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Banco Mundial.

No Brasil, a taxa de homicídios foi de 22,8 a cada 100 mil habitantes em 2023, conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma taxa quase quatro vezes maior que a média mundial, que é de apenas 5,8 homicídios por 100 mil pessoas. Esses números não mentem: o Estado brasileiro é responsável por uma verdadeira guerra contra a população negra, e especialmente contra a juventude negra periférica.

O último Atlas da Violência não deixa dúvidas: a violência é a principal causa de morte entre jovens no Brasil, e é sobre os negros, especialmente os homens entre 15 e 29 anos, que recai o maior número de homicídios. Esses mesmos jovens são os principais alvos da violência policial.

Esses dados são constrangedores  para a sociedade brasileira e para o que tem se chamado de Estado Democrático de Direito, mas, que continua a assassinar nossos jovens e a negar-lhes a dignidade e o direito à vida. O que está em jogo não é apenas segurança, é uma batalha pela sobrevivência, pela justiça e por um futuro onde a juventude negra possa viver e se expressar livremente. A luta é urgente, a resistência é necessária, e a vida dos jovens negros é uma prioridade.

A jovem Isabel Santana, de 16 anos, moradora do bairro do Cabula e membro do projeto Minha  Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, destacou a urgência do debate sobre segurança pública: “Eu não gostaria de ver pessoas falando sobre segurança pública sem nunca terem vivido o que nós, moradores da periferia, vivemos. Falar de segurança pública não pode ser algo distante de quem realmente entende a realidade dos bairros periféricos. Somente jovens negros, que sabem o que é viver nessas comunidades, podem falar sobre o que precisa mudar, o que deve ser melhorado e o que deve ser retirado desse conceito de segurança pública.”

Isabel completa, reafirmando que a atual abordagem não oferece soluções reais para as necessidades da população negra, jovem e periférica: “O que temos hoje não é segurança de verdade. Para mim, segurança pública precisa significar representatividade, escuta ativa da comunidade e, acima de tudo, verdadeira proteção para a nossa população. Não é apenas sobre reprimir, mas sobre garantir dignidade, direitos e oportunidades para todos, principalmente para os jovens negros que são a maior vítima da violência. Se não houver um olhar mais humano e inclusivo, nada vai mudar.”

Ronald Faustino, 29 anos, morador do Nordeste de Amaralina, em Salvador, diz que a questão da segurança pública aqui na Bahia é uma realidade muito delicada: “A violência que enfrentamos não é um acidente, ela é estruturada, fruto de um sistema que exclui e marginaliza a juventude negra. Como pode haver segurança em um lugar onde jovens são mortos todos os dias? Uma pesquisa apresentada aqui no encontro me chamou muito a atenção: Sete das dez cidades com maior taxa de homicídios no Brasil estão aqui na Bahia, isso não é por acaso. Mostra muito sobre o projeto político que os governantes têm para nós, jovens negros das favelas. A violência não é uma falha do sistema, ela é o reflexo de um modelo político que não nos vê, que não se importa com a nossa vida. Algo precisa mudar, e essa mudança começa com a gente, com os jovens negros que vivem e respiram a realidade da periferia.”

Em Pernambuco, a realidade da juventude negra e periférica não é diferente. Alvo constante de discriminação e violência, esses jovens encontraram  no seminário uma oportunidade de compartilhar suas experiências, muitas delas dolorosas, refletindo as dificuldades enfrentadas no estado. Para Virgínia Miguel, moradora da Comunidade de Peixinhos e membro do GCASC (Grupo Comunidade Assumindo Suas Crianças), a experiência de estar em Salvador foi um momento de ganhar impulso. Ela constatou que a luta dos jovens pernambucanos tem muitos pontos de convergência com a dos baianos. Em sua avaliação, participar desse seminário foi uma forma de reforçar suas convicções e ganhar novas perspectivas para compartilhar com a equipe: “A nossa luta é uma luta coletiva. Estar aqui fortaleceu tudo o que eu já sabia e trouxe novas ideias para compartilhar com a equipe..”

Keila Marques, 20 anos, também moradora da cidade de Peixinhos, em Pernambuco, falou sobre a urgência de repensar a segurança pública, destacando que a verdadeira segurança  vai além da repressão. Para ela, é fundamental mudar a forma como as políticas públicas lidam com as periferias: “O que eu espero levar do seminário é o conhecimento que adquiri aqui em Salvador, para compartilhar em Pernambuco e fortalecer ainda mais nossa luta. Quero ensinar as pessoas a se unirem, para que possamos construir um futuro melhor, tanto para as crianças quanto para os jovens. Precisamos de políticas que realmente protejam e que promovam a justiça social, e não apenas ações que nos coloquem ainda mais em risco. A verdadeira segurança está na proteção dos nossos direitos, na construção de oportunidades e no fortalecimento das nossas comunidades.”

E AS MÃES VÍTIMAS DO ESTADO: QUEM AS AMPARA?

Sheila Costa, de 47 anos, é mãe de Gilmacsom Gouveia, morto pelo Estado em Olinda (PE). Ela esteve presente no Seminário representando o Grupo Comunidade Assumindo Suas Crianças (GCASC), e compartilhou sua história de perda e luta: “O Estado matou meu filho aos 25 anos. Ele era trabalhador, humilde, tinha sonhos e planos. A polícia, que deveria protegê-lo, foi quem matou. Hoje, eu carrego essa dor imensa, mas também carrego a vontade de lutar por outras mães e por outros jovens, para que ninguém mais precise viver isso”, afirmou Sheila.

O encontro foi mais do que um espaço de troca de experiências; foi um momento de articulação e construção coletiva. Para Sheila, o seminário foi uma oportunidade de fortalecer a luta coletiva e levar novos aprendizados para sua comunidade em Olinda: “Estar aqui foi essencial para mim. O acolhimento que recebi no GCASC me deu forças para estar de pé hoje, e participar desse encontro me fez perceber que a nossa luta não é isolada. O que vivemos em Pernambuco também acontece aqui na Bahia. Saio daqui com novas ideias e com o compromisso de continuar lutando por justiça e por uma segurança pública que proteja, e não mate. O meu filho não está mais aqui, mas a minha luta continua por ele e por todos os outros jovens que ainda podem ter uma chance. A dor de uma mãe é inimaginável, mas o amor e a vontade de mudar esse sistema são maiores”, finalizou Sheila.

Nadijane Macedo, mãe, vítima do Estado e articuladora do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, emocionou-se ao participar do encontro voltado para a formação de jovens sobre direitos e cidadania. Nadijane relembrou a perda do filho mais velho, assassinado por policiais, e destacou a importância de iniciativas como esta para enfrentar os desafios impostos pela violência nas periferias.

“Meu filho mais velho foi morto por policiais. Se estivesse vivo, hoje teria 34 anos. Como mãe, é muito significativo presenciar tantos jovens aprendendo sobre seus direitos. Hoje, por exemplo, teve uma oficina sobre dados. Mesmo não conseguindo acompanhar tudo, sei que essas informações são essenciais não apenas para eles, mas para suas famílias também. Quando um jovem tem acesso ao conhecimento, isso traz mais segurança para todos nós.”

Nadijane ressaltou a dura realidade enfrentada por mães de jovens negros nas periferias brasileiras, marcada pela constante ameaça da violência. “É muito difícil ser mãe de um jovem negro, pobre e periférico. A violência nos cerca o tempo todo. Quando acontece um homicídio em uma comunidade, a primeira pergunta que fazem é: ‘Com o que ele estava envolvido?’ Como se isso justificasse a brutalidade.”

Ela também criticou a atuação das forças de segurança pública, que, segundo ela, frequentemente tratam a juventude negra como alvo: “A presença policial nas nossas comunidades não é sinônimo de proteção, mas de ameaça. Jovens negros são vistos como suspeitos antes mesmo de qualquer evidência, e isso os coloca em constante perigo. Precisamos de uma sociedade que valorize a vida deles e permita que tenham direito a sonhar, viver e crescer sem medo.”

O projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar atua justamente para enfrentar essa realidade, oferecendo suporte a jovens e famílias, promovendo acesso à informação e à formação cidadã como ferramentas para combater a desigualdade e a violência racista patriarcal.

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