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MULHERES NEGRAS NO PODER, CONSTRUINDO O BEM VIVER

Se nossas mãos estiverem no prato,
as pessoas não comerão tudo e
não lhe deixarão sem nada.
(Provérbio Ashanti)

Um círculo ao centro, uma seta parte desse círculo e se divide a partir de direções opostas, contornam e retornam ao círculo. Essa é a descrição da figura Adinkra “Wo Nsa Da Mu A”, palavras da língua Twi, do povo Ashanti, que correspondem a primeira estrofe do provérbio da África Ocidental: “Se suas mãos estiverem no prato, as pessoas não comerão tudo e não lhe deixarão nada”. 

A partir de sua nomeação, o símbolo expressa o valor de um sistema político participativo, democrático e com pluralidade. Sua representação gráfica nos diz sobre partirmos de nossa circularidade nos processos de tomada de decisão, para a ela retornarmos, mesmo que nossa diversidade possibilite trajetórias distintas. 

Esta filosofia inspira a criação da logomarca do Projeto Pretas no Poder: Participação Política, Representatividade e Segurança de Ativistas Negras, construído pelo Odara – Instituto da Mulher Negra, desde 2021. Centradas no legado africano, praticamos o exercício da busca por referências que nos orientem na defesa e construção do Bem Viver. 

Na medida em que nos colocamos no processo de construção da Marcha de Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, que acontecerá em novembro deste ano, estamos articuladas em rede fundamentando um projeto político em que nossas mãos possam estar no prato; que possamos nos alimentar com segurança e sob os nossos critérios de produção e distribuição; que estejamos no centro dos processos de tomada de decisão sobre absolutamente tudo que diz respeito às nossas vidas.

Em 2015, na primeira Marcha Nacional de Mulheres Negras, defendemos o fomento da participação política de mulheres negras nos espaços de decisão e nos órgãos públicos, com a garantia das condições materiais, simbólicas e da paridade nas quadras do poder; bem como a promoção da reforma do sistema político brasileiro visando a constituição de novos parâmetros para a democracia brasileira, para o exercício do poder, suscitando a participação dos grupos excluídos do processo de decisão e reorganizando as formas de representação e de expressão dos interesses dos diferentes grupos e do controle social do Estado (Carta da Marcha de Mulheres Negras 2015 – Contra o racismo e a violência e pelo Bem Viver).

Projetos como o Pretas no Poder nasceram dessa reivindicação, ao passo em que consolidamos no Brasil uma agenda política de mulheres negras que se articulam para o enfrentamento à Violência Política de Raça e Gênero, sendo a subrepresentatividade uma das suas formas de expressão mais latente. Nesse sentido, o movimento de mulheres negras, em especial, têm investido esforços para o fortalecimento de candidaturas e mandatos de mulheres negras. No entanto, a cada análise de conjuntura eleitoral, nos deparamos com o sentimento comum de estarmos nadando contra um maremoto antidemocrático, mesmo com a intensificação da agenda de defesa da participação política. 

Temos reafirmado: Sem mulheres negras, democracia é um mito! Na produção do Podcast “Política Sem Caô – Uma papo Odara com Mulheres Negras”, Valdecir Nascimento, fundadora do Odara, reafirma em entrevista que nós, mulheres negras, não experimentamos a democracia, ainda que sejamos a maioria nesta nação. Em suas palavras, “A democracia que nós queremos está por ser construída e só será possível conosco no processo de protagonizar os debates, as discussões, legislar, conduzir a nação, definir o que queremos e o que não queremos para ela. Não é possível, para nós mulheres negras, falar em democracia, quando a cada 23 minutos um menino negro é assassinado, uma criança negra é assassinada pelo Estado racista e patriarcal. […] Portanto, nós não sabemos o que é democracia, estamos forjando cotidianamente lutas por direitos para que a gente conquiste uma democracia. O que nós compreendemos como democracia ainda está por vir”.

Além do mais, os partidos são um grande obstáculo para mulheres negras. Os resultados das eleições de 2020, 2022 e 2024 expressam o tamanho do desafio que enfrentamos em relação à incidência em defesa da instituição e efetividade de políticas afirmativas no Sistema Eleitoral; e a disputa de narrativa para a formação de um novo imaginário e prática eletiva da população, com a positivação do voto em mulheres negras, para além da bolha do eleitorado do “voto de opinião”. 

Estamos diante de um grande obstáculo que é o partidarismo brancocêntrico, de direita ou de esquerda, que inviabiliza a paridade de raça e gênero na esfera do macropoder, quando, por exemplo, os partidários se anistiam por descumprimento de cotas de gênero e da obrigatoriedade da aplicação de recursos financeiros para as candidaturas de pessoas negras (pretas e pardas), conforme proporcionalidade; ou no micropoder, ao reiterar-se cotidianamente as práticas de violência política de raça e gênero que silenciam, invisibilizam e anulam as campnahas de mulheres negras, muitas delas fundadoras e essenciais para manutenção da estrutura partidária.

No Nordeste, a taxa de eleitas autodeclaradas negras aumentou na última eleição (2024), no entanto, entre as prefeitas, o crescimento de 2024 (0.8 p.p.) foi 0.5 pontos percentuais menor do que o registrado em 2020 (1.3 p.p). Entre as vereadoras, o crescimento caiu de 1.5 p.p. em 2020, para 1.2 p.p. em 2024, conforme os dados sistematizados no Relatório das Eleições de 2024 do Projeto Pretas no Poder. A partir da média de crescimento eleitoral entre 2016 e 2024, estimamos 27 eleições municipais, ou 108 anos, para ocupação paritária do cargo de prefeita/os entre os municípios do Nordeste; e 19 pleitos ou 76 anos para o cargo de vereador/a.

A conjuntura política ainda desfavorece a pior das estimativas. O Novo Código Eleitoral – Projeto de Lei Complementar n° 112, de 2021 – está em discussão no Senado, com uma prerrogativa que afetará diretamente a participação política de mulheres negras: retira-se a obrigatoriedade de reserva de 30% de participação feminina nas chapas eleitorais, por parte dos partidos e determina o percentual de 20% das cadeiras nos legislativos. 

A não obrigatoriedade compromete a responsabilização dos partidos desde o processo eleitoral e a transparência pública sobre o uso dos recursos do fundo partidário, que passa a ser desvinculado do piso de candidaturas femininas, um retrocesso que garante o aprofundamento da centralização de recursos e poder entre os homens brancos. A proposta busca converter o piso de candidaturas que tínhamos conquistado recentemente em um provável teto.

Este movimento liderado pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI) vai de encontro aos acordos globais de previsão de ações afirmativas para promoção da igualdade de gênero, como a Plataforma de Ação de Beijing (1995), que reitera a meta de no mínimo 30% de representação parlamentar feminina para o alcance de uma “massa crítica” favorável a incidência feminina em tomadas de decisão. A defesa da democracia paritária é registrada entre os mecanismos internacionais para além das propostas de cotas, em especial na América Latina, conforme os compromissos com a paridade registrados no Consenso de Quito (2007) e reafirmado nos Consensos de Brasília (2010) e de Santo Domingo (2013). 

As mulheres negras são mais de 28% da população brasileira, segundo o último censo do IBGE (2022), o maior grupo populacional conforme critério de raça e gênero, no entanto, o menor quantitativo nas esferas de tomada de decisão. Em 2024, mulheres  autodeclaradas negras foram 5.4% das candidatas aos cargos do executivo e 18.42% do legislativo nos municípios em todo o Brasil; são 4.3% entre a/os eleita/os para o cargo de prefeita/o; e 7.45% para o cargo de vereador/a. 

No Nordeste, esses dados ganham outras proporções, que constatam o aprofundamento da desigualdade na região. As mulheres negras são 37,19% da população, o que configura nove pontos percentuais a mais que o recenseado em todo o país, no entanto, a diferença percentual entre a taxa populacional e as candidatas ou as eleitas é maior do que as registradas nacionalmente. No Brasil, a diferença percentual entre as mulheres negras na sociedade e aquelas eleitas para o cargo de vereadora é de 21 pontos percentuais, para prefeita 23 p.p. Já no Nordeste, as diferenças são de 26 p.p. e 29 p.p. respectivamente.

Engajadas no processo de construção da Marcha de Mulheres Negras 2025, vislumbramos a paridade de raça e gênero enquanto caminho para transformação dessa realidade e garantia do Bem Viver, a partir de uma perspectiva também de reparação pelos séculos de negação à participação política de mulheres negras e manutenção da subrepresentatividade operada com força ainda na atualidade. 

Entretanto, reconhecemos que, assim como as cotas de raça e gênero, a paridade não é necessariamente o fim que vislumbramos. Com as nossas mãos no prato, torna-se viável a projeção da autonomia e garantia política, intelectual e econômica das mulheres negras e do povo negro. Tal como nos orienta a cosmovisão Ashanti, o que queremos já virou palavras de Marcha: Mulheres Negras no Poder, construindo o Bem Viver! 

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