Matéria – “Bença, Dinda”: A força das Madrinhas que guiam os caminhos do Instituto Odara

Conselho de Madrinhas reafirma seu papel essencial na construção de uma governança baseada em espiritualidade, comunicação e continuidade
*Por Brenda Gomes | Redação Odara
Para quem cresceu na cultura nordestina, “dinda” é mais que um nome carinhoso para as madrinhas: Nas comunidades ela é aquela que protege, aconselha, participa da criação. No seio da comunidade negra, o amadrinhamento é também compromisso de vida, é quem segura a mão e caminha junto. É a partir desta relação de afeto e responsabilidade que nasce o Conselho de Madrinhas do Odara – Instituto da Mulher Negra.
No mês de abril, o Odara completou 15 anos de história, uma trajetória marcada por lutas, conquistas e sonhos compartilhados. Quinze anos de construção coletiva, fortalecendo a voz e a presença das mulheres negras. Celebrar essa história é também reconhecer o papel fundamental das madrinhas da organização, que ajudam a construir essa trajetória com afeto, responsabilidade e compromisso ancestral.
Valdecir Nascimento, idealizadora e cofundadora do Odara, que hoje coordena a Captação de Recursos e Articulação Política do Instituto, explica que a criação do Conselho de Madrinhas foi pensada desde o início da organização, como uma forma de prestação de contas afetiva e política, baseada em modelos africanos de sabedoria coletiva. Ela destaca que essa escolha está em sintonia com a concepção de que ninguém constrói nada sozinha, e que o fortalecimento da organização passa pela escuta de quem vem antes, com experiência e coragem para apontar os desvios e reafirmar os acertos. “Pensamos o Conselho de Madrinhas como um resgate da nossa ancestralidade e um modelo de governança inovador. Não queríamos caminhar sozinhas. Queríamos autorizar as pessoas a nos aconselharem, a nos protegerem, a puxarem nossa orelha quando preciso”, destacou Valdecir.
O Conselho traz um diferencial para o Odara: ele é político, afetivo, espiritual e estratégico, um pacto para cuidar da vida da organização, como lembra Naiara Leite, coordenadora executiva do Odara. “Trata-se de resgatar a ideia de madrinha como aquela que participa da formação, da orientação e do fortalecimento da vida”. Segundo ela, esse conceito vai além da simbologia: é uma escolha estratégica que atravessa toda a estrutura da organização, e passou a existir a partir do lançamento público do Odara, em 2012, como parte de uma política institucional que buscava diferenciar o Instituto desde sua fundação.
Naiara destaca que era necessário um modelo de conselho que refletisse a forma como a população negra se organiza: com dindas, tias, com mais velhas, mais novas, que acompanham de perto o desenvolvimento da criança. “O conselho do Odara precisava ter essa organização. Pois não é só um aconselhamento político que a gente quer, a gente quer essa noção de amadrinhamento, de criação conjunta, de ‘dinda’. Como a população negra sempre fez.”

MADRINHAS DO ODARA
Raidalva Santos, Rosana Fernandes e Rosane Borges são as três madrinhas que acompanham o Odara de diferentes lugares de escuta, cuidado e intervenção. Naiara aponta que o diferencial do Conselho também está na forma como cada uma atua a partir de suas especificidades. “Mãe Raidalva com a espiritualidade, o cuidado, o olhar para trás e para frente, Rosana com o olhar político sobre a agenda de defesa dos direitos na região Nordeste e afetivo, e Rosane com a comunicação, a delicadeza, a imaginação de que mundo queremos e as estratégias de narrativa. Elas não estão aqui apenas para aconselhar. Elas são parte da vida do Odara”, destaca a ativista.
Mãe Raidalva, conhecida por sua atuação como ialorixá e pelo carinho com o qual trata tudo o que envolve o sagrado, é reconhecida como a voz da ancestralidade dentro do Conselho. Sua atuação dentro do Odara vai além do simbólico: ela consulta, sonha e transmite os sinais que recebe da ancestralidade, com escuta atenta e sensibilidade. Mãe Raidalva chegou ao Odara a partir de um primeiro encontro com a equipe fundadora, neste momento, segundo Naiara Leite, foi quando surgiu a compreensão de que a organização precisava integrar uma dimensão espiritual ao seu projeto político. Foi esse contato que iniciou sua trajetória como madrinha e guardiã espiritual do Instituto.
Segundo Mãe Raidalva, “Odara é um ancestral, é o orixá da alegria, da formação, das coisas positivas da nossa religião. Eu sempre pergunto à ancestralidade como posso ajudar, como posso orientar para que o trabalho da organização seja feito da melhor forma. Nosso movimento maior é ancestral. Odara é Exu da comunicação. Ele é o mentor das informações”.
Rosana Fernandes é uma militante histórica dos movimentos sociais na Bahia e tem uma relação afetiva profunda com o surgimento do Odara. Ela recorda que a organização nasceu de muitas conversas, encontros e articulações, que culminaram na necessidade de criar um espaço que atendesse às demandas das mulheres negras tanto dentro do movimento de mulheres quanto do movimento negro. Para Rosana, o nascimento do Odara foi como um parto, uma construção feita a muitas mãos e corações: “A chegada do Odara traz um pertencimento, um lugar de fala e de enfrentamento.”
Reconhecida pela sua escuta ativa e pela sinceridade afetuosa, Rosana é vista como a madrinha “sincerona”, aquela que acolhe, aconselha e também alerta quando é necessário. Em suas palavras: “Ser madrinha é acolher, mas também chamar para a conversa, dizer o que pode ser melhorado, apontar caminhos com respeito. Nosso papel é fortalecer e também provocar quando é preciso”.
Olhando para o futuro, Rosana deixa um conselho para as ativistas da organização: “O conselho é, sejam Odara. A gente sempre fala de Odara de uma perspectiva assim, bem levezinha e é, mas também Odara é uma qualidade de Exu. E Exu é tanta coisa. Carreguem esse nome, honrando o que significa ser Odara, honrando o que significa ser mulher negra, honrando o que significa ser mulher lésbica, trans, cis, honrando o que significa ter sido sequestrada e ter feito a travessia do Atlântico, que fizeram as nossas ancestrais, então o conselho que eu diria resumidamente seria esse: sejam Odara. Sejamos Odara.”
Rosane Borges é a mais nova madrinha do Odara. Maranhense, elegante, apaixonada por literatura, cinema, teatro e plantas, ela é também uma das principais pensadoras contemporâneas sobre comunicação e identidade negra no Brasil. Jornalista e professora, Rosane sempre apresenta reflexões sobre comunicação, política e transformação social no Brasil e no mundo. Há anos, ela vem colaborando com o fortalecimento da narrativa institucional do Odara. Essa visão se articula diretamente com a proposta política do Instituto, como enfatiza Naiara Leite em outro momento:
“Quando o Odara nasce a gente já tinha uma comunicação muito forte, mas a gente não queria ter uma assessoria de comunicação. A gente queria uma comunicação que pensasse numa política estratégica, que pensasse no direito à comunicação para mulheres negras, mas que a gente pensasse também em incidência a partir desse programa, para além de noticiar, para além de falar sobre nossos projetos. A gente entendeu que comunicação não era apenas um setor dentro da organização, mas que seria um setor estratégico como é o programa de direitos humanos, programa de educação.”
Ao refletir sobre os próximos passos do Instituto, Rosane Borges compartilhou uma leitura profunda: “Eu acho que pensar o futuro do Odara é pensar o presente e o passado, o que essa instituição vem delegando, o que os 15 anos do Odara delegaram para a sociedade baiana, para as mulheres baianas, para as mulheres brasileiras e as mulheres da diáspora negra. Eu acho que a partir desse olhar entre passado e presente, pensar o futuro do Odara é a gente pensar num trabalho intenso de como o nosso protagonismo é importante, não porque a gente quer ser protagonistas, mas porque o racismo e o sexismo são as duas molas hoje principais de cassino, de um politicídio e o campo progressista no Brasil tá numa defensiva terrível e sem saber o que fazer. E, eu acho que nós, mulheres negras, por não estarmos nas raias do poder, a frente das bordas do mundo, a gente vem se lançando no desafio de apostar. E não é uma aposta irresponsável, não é uma aposta inconsequente, pelo contrário, é uma aposta de que quem tá nas bordas do mundo tem condição de acertar mais sobre diagnósticos.”

Para Rosane, o futuro do Odara é promissor não apenas em termos de estrutura institucional, mas principalmente pela capacidade de ampliar sua voz no enfrentamento a um mundo em colapso. Em suas palavras: “Odara certamente terá sua voz cada vez mais ampliada e será uma voz que será escutada para um enfrentamento de um mundo que se despedaça e de um mundo que resolveu novamente relançar as suas flechas e canhões contra nós, mulheres negras, povos originários”.
“Ser madrinha é também ser formada pelo Odara. Normalmente a madrinha forma o afilhado, mas aqui também somos formadas pelo Instituto”, contou Rosane em entrevista. Para ela, a comunicação, ao lado da espiritualidade e da política, é uma ferramenta central na formação de consciência e resistência coletiva. “Nossa luta é uma aposta responsável de quem vem das bordas do mundo. Pensar o futuro é pensar com a memória viva do passado, sabendo que a comunicação é ferramenta de resistência, de invenção de um novo mundo”, afirmou Rosane.
UMA INOVAÇÃO NA FILANTROPIA
O Conselho de Madrinhas ocupa um lugar central na construção institucional do Instituto Odara, funcionando como um pacto de cuidado, responsabilidade e continuidade que atravessa toda a sua história. Sua formação aconteceu no lançamento público do Odara em 2012, como parte de uma estratégia que entendia que uma organização de mulheres negras deveria ser atravessada pelo cuidado com a ancestralidade, com uma comunicação assertiva e com referência há quem vem antes na organização política.
Valdecir Nascimento destaca que “criar o Conselho de Madrinhas foi autorizar essas mulheres a nos chamar à responsabilidade, a elogiar, a criticar, a acompanhar nossos passos. Porque a gente não cresce sozinha, a gente cresce em coletividade.”
OLHANDO PARA O FUTURO
Pensar no futuro do Odara é pensar em continuidade, mas também em reinvenção. “O Conselho de Madrinhas nos ajuda a planejar as transições, a preparar novos caminhos, a pensar como o Odara vai se reinventar. É um olhar que atravessa gerações e prepara a organização para existir enquanto houver racismo, opressão e desigualdade”, relata Naiara Leite.
E é assim, entre dindas, afetos, força ancestral e radicalidade política, que o Instituto Odara segue caminhando, inspirando e transformando nosso presente e futuro.
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