#OpiniãoOdara – Salvador faz aniversário, mas o presente nunca chegou para as mulheres negras

Neste 29 de março, Salvador (BA), a Roma Negra, completa 476 anos. Cidade de encantos e contradições, Salvador é onde a beleza e criatividade negras se fortalecem e se reinventam apesar do racismo e descaso. É onde o riso insiste, mesmo diante da dor. Como canta Lazzo Matumbi, “apesar de tanto não, tanta dor que nos invade, somos nós a alegria da cidade”. E somos mesmo. Salvador é encantada. É terra de gente que sabe viver e faz da liturgia e do protesto festa, como nas águas de Yemanjá e no Senhor do Bonfim, como na Mudança do Garcia e na Independência da Bahia.
A gente soteropolitana se alimenta de afeto, de dendê e memória. Nossa culinária é vínculo, é história viva. Aqui a ancestralidade come, caminha e dança entre nós, onde cada esquina tem um axé, e onde o povo, mesmo ferido, continua criando e resistindo.
É a cidade da inteligência coletiva, do trabalho duro, da criatividade que reinventa a sobrevivência. A capital que fala alto, dança forte, cozinha com alma e pensa com o corpo inteiro. Que carrega uma história de exploração, mas também de vanguarda política e cultural que inspira o mundo inteiro.
A história de Salvador é a história da luta por liberdade e direitos, por aqui marcharam os revoltosos de Búzios, Malês e Sabinada, a emblemática Revolta do Buzú e as Marchas das Mulheres Negras.
A CIDADE NEGRA E DAS MULHERES
Dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI) apontam que 53,8% das pessoas que vivem em Salvador são mulheres e 79,5% da população se autodeclara negra, consolidando a cidade como um dos territórios mais expressivamente negros do Brasil e do mundo. No entanto, essa demografia não se traduz em políticas públicas capazes de reduzir desigualdades raciais e de gênero no município.
Infraestrutura precária, creches insuficientes, transporte público deficiente e caro, desemprego, violência policial e altas taxas de feminicídio fazem parte do cotidiano de quem constrói e movimenta essa cidade. Por isso que neste aniversário, ecoamos que não há o que comemorar, quando para as mulheres negras soteropolitanas só há reservado o desrespeito por parte da gestão municipal.
Um levantamento feito pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, indica que Salvador lidera o ranking das capitais brasileiras com maior número de crianças sem acesso prioritário a creches. A ausência do Estado no cuidado infantil sobrecarrega as mulheres e compromete suas chances de qualificação profissional e inserção no mercado de trabalho. Isso significa que a cidade nega às mulheres negras o direito de trabalhar e aos seus filhos o direito à educação na primeira infância.
A taxa de evasão escolar entre meninas negras também é alta, muitas vezes relacionada à necessidade de assumir tarefas domésticas, como o cuidado com irmãos mais novos, ou ainda pelo impacto da pobreza menstrual. Sem creches e com um sistema educacional excludente, o futuro das crianças negras já nasce comprometido.
Mas enquanto isso acontece, na página da Secretaria de Educação de Salvador a publicidade segue sendo feita e bem feita, informando investimentos, entrega dos kits escolares e um mundo fantástico. Mas quem vive no dia-a-dia é quem sabe como a Prefeitura de Salvador trata as escolas municipais.

E falando em publicidade, no início deste mês a vereadora Marta Rodrigues (PT) cobrou explicações a “prefs” sobre um contrato de R$ 31 milhões firmado pela Secretaria de Comunicação (Secom) da Prefeitura de Salvador com a agência Bença Comunicação e Marketing, pertencente a Flávio Costa Maron, primo do ex-prefeito ACM Neto (União Brasil). O valor de R$ 31 milhões é 30 vezes acima do previsto para a área de comunicação na Lei Orçamentária Anual (LOA) aprovada pela Câmara. A LOA fixou um teto de R$ 1 milhão. Em uma cidade com tantos problemas, é inadmissível que tamanha verba pública seja direcionada a propaganda institucional enquanto a população segue invisível para os investimentos sociais.
Salvador também se destaca em violência doméstica, familiar e feminicídio. Dados da SEI em parceria com a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) demonstram que no ano passado 243 mulheres foram mortas na Bahia, destas, 68 em Salvador.
Ainda nas três primeiras semanas de 2025, seis mulheres foram assassinadas pelos seus companheiros em Salvador e Região Metropolitana. Conforme o Instituto Fogo Cruzado, em 2024, uma mulher foi vítima e em 2023, duas mulheres tiveram suas vidas ceifadas, no mesmo período, o que demonstra o aumento exponencial desta violência.
Quanto ao perfil das vítimas (em 2024 e 2025), a maioria eram adultas, negras (pretas e pardas), em relacionamentos conjugais. Esses dados revelam um padrão característico desses crimes, oferecendo informações importantes para o desenvolvimento de ações eficazes na proteção de mulheres. Mas, não é o que tem sido feito. A inoperância de políticas de prevenção e enfrentamento demonstram a falta de compromisso do governo do estado ou da prefeitura com a vida das mulheres.
Diante desse cenário, organizações da sociedade civil tem se mobilizado ao longo desses anos para pressionar e denunciar o avanço da violência, como no último novembro, quando ativistas realizaram um ato público no Centro Administrativo da Bahia (CAB), em Salvador, com o objetivo de reivindicar reparação e acesso à justiça em defesa da vida das mulheres.
VIVER A CIDADE
O transporte público em Salvador é caro, ineficiente e excludente. Moradores de bairros periféricos, grande maioria da população, passam horas nos ônibus lotados e sem segurança para chegar em seus destinos. No início de 2025 os munícipes soteropolitanos receberam um belo presente de Ano Novo: um aumento de 40 centavos (quase 8%) na tarifa do transporte coletivo por ônibus, o que fez a cidade ocupar a quinta posição entre as tarifas mais caras do país, superando capitais do Sudeste e Sul, onde a população tem rendas maiores e sistemas de transporte público mais modernos e eficientes.
E se em muitos lugares se fala em sustentabilidade, Salvador caminha na direção oposta. Enquanto cidades como Aracaju e Maceió têm ampliado suas áreas verdes, Salvador continua perdendo vegetação. Segundo especialistas, a destruição de áreas verdes se deve tanto a empreendimentos privados construídos de forma inadequada quanto a decisões da gestão municipal ligadas à mobilidade urbana.
A letalidade policial em Salvador é uma das maiores do Brasil. Crianças, adolescentes e jovens negros têm sido alvo da violência do Estado, assassinadas dentro de casa, na porta da escola, no colo de suas mães. As “chacinas de verão” é uma realidade permanente em Salvador: os meses mais quentes do ano coincidem com o aumento das operações policiais e execuções sumárias nos bairros de periferia. O Estado brasileiro segue protagonizando o extermíno da juventude negra, como uma das ações mais eficientes do projeto histórico de genocídio da população negra, e Salvador é um dos palcos centrais dessa tragédia.
A cidade também é uma das capitais com maior taxa de desemprego do Brasil. Segundo o Mapa da Desigualdade entre as Capitais, 16,7% da população soteropolitana acima de 14 anos está em condição de desemprego, uma das piores taxas do país. Entre as mulheres negras, esse número tende a ser ainda mais alarmante. Muitas são empurradas para a informalidade, trabalhando sem direitos garantidos e com salários muito abaixo da média. O racismo também se reflete no mercado de trabalho, onde essas mulheres são minoria nos cargos de liderança e maioria em funções mais precarizadas, como o serviço doméstico.
A mesma cidade que celebra a cultura negra como produto vendável, criminaliza e maltrata seus trabalhadores negros. Durante o carnaval, 303 ambulantes foram resgatados pelo Ministério do Trabalho em condições análogas à escravidão, dormindo nas ruas, sem acesso a banheiro, alimentação digna ou descanso. Sob gestão da prefeitura e responsabilidade da Ambev, esses trabalhadores foram explorados sob a promessa de renda e apoio. A denúncia é grave: jornadas exaustivas, desumanidade e silêncio oficial. É isso que Salvador oferece aos que fazem seu maior evento popular acontecer!
Enquanto isso, programas de incentivo ao empreendedorismo são colocados como solução mágica para enfrentar o desemprego e a pobreza. Mas essa política descolada da realidade apenas reforça a exclusão. Incentivar o “empreendedorismo de necessidade” sem enfrentar as barreiras reais, como o acesso a crédito, formação, rede de apoio e estabilidade econômica, empurra o povo, sobretudo as mulheres, para ciclos de trabalho precarizado e de baixa remuneração, sem mobilidade social real.
Enquanto Salvador se vende como a cidade mais negra do Brasil, a população negra segue sendo excluída do direito à sua própria cidade. Não há razão para celebrar enquanto a branquitude e gestão pública segue matando, explorando e violentando a população negra soteropolitana.
Salvador precisa se transformar em um lugar onde seja possível viver com dignidade, e isso só acontecerá com políticas públicas efetivas e comprometidas com a reparação histórica e o Bem Viver em coletivo. Até lá, seguimos em marcha!
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