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Ativistas de movimentos sociais cobram justiça e proteção para mulheres negras em ato público, em Salvador (BA)

Adriane Rocha – Redação Odara

Na última terça-feira (26), no Centro Administrativo da Bahia (CAB), em Salvador, ocorreu o Ato por Acesso à Justiça pela Vida das Mulheres Negras, construído por 14 organizações da sociedade civil, da Bahia, para denunciar casos de feminicídio e a violência doméstica e familiar, que vitimam desproporcionalmente mulheres negras no estado. A manifestação, que integrou a Semana Elitânia de Souza e a Jornada Pela Vida das Mulheres Negras do Nordeste, denunciou a negligência do Estado na garantia de segurança, acesso à justiça e promoção dos direitos fundamentais dessas mulheres, suas famílias e comunidades.

De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), entre 2017 e 2023, foram registrados 672 feminicídios no estado, com mais de 90% dos casos envolvendo parceiros íntimos das vítimas. Somente em 2023, o número de feminicídios foi de 108, o que representa um aumento de 0,9% em relação ao ano anterior. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, as mulheres negras foram 63,6% das vítimas de feminicídio, 68,6% das vítimas das demais mortes intencionais de mulheres e 52,5% das vítimas de estupro e estupro de vulnerável. Esses números evidenciam que as mulheres negras são as maiores vítimas desse tipo de violência, refletindo o impacto do racismo estrutural e da desigualdade de gênero, sobretudo as mulheres negras de territórios periféricos, rurais e quilombolas.

Dados da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e da Organização Terra de Direitos apontam a intensificação da violência contra mulheres quilombolas nos últimos anos. Esse aumento reflete uma escalada alarmante da violência de gênero nos territórios quilombolas, com um crescimento de 125% na média anual de feminicídios comparado à década anterior, 2008-2017, conforme o relatório Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil (2018 – 2022).
Além disso, a subnotificação é uma realidade grave nessas comunidades.

Muitas mulheres quilombolas evitam denunciar agressões por medo de represálias, principalmente devido à distância e falta de acesso aos mecanismos dispostos pelo Estado, além da violência institucional e da particularidade da vivência em comunidade. Esse silêncio forçado é uma extensão da violência sofrida e torna ainda mais difícil o enfrentamento do feminicídio e da violência doméstica nesses territórios. A ausência de infraestrutura básica, como delegacias especializadas e serviços de acolhimento, acesso a internet e estradas precárias agrava a situação. De acordo com a Revista AzMina, apenas 4% das ligações para o Ligue 180 — canal nacional de denúncia de violência contra a mulher — vêm de áreas rurais e quilombolas, refletindo a dificuldade de acesso dessas mulheres aos canais de apoio e proteção​.

Durante o ato, representantes de organizações deram depoimentos e reforçaram a urgência de ações por parte do poder público. Rose Oliveira, da ONG TamoJuntas, ressaltou a importância do evento e a responsabilidade do Estado. “Estamos aqui para entregar uma carta ao governador, pedindo acesso à justiça e reparação pela vida das mulheres negras. A Bahia é o terceiro estado do Brasil com mais feminicídios, e isso mostra o quanto o Estado falha em nos proteger. É um momento de extrema importância porque estamos aqui por justiça, mas também por reparação. Não somos números, somos vidas.”

Joseane Chagas, da Associação Mulheres da Timbalada, falou sobre a luta coletiva e pessoal: “Passei por uma situação de violência e sei como é importante estar aqui. Nossa luta vai além das nossas histórias individuais; é pela comunidade, por todas as mulheres negras que ainda enfrentam violência em silêncio. Precisamos de políticas públicas que realmente funcionem, porque a violência está em todos os lugares: em casa, na comunidade, na sociedade.”

Marta Leiro, fundadora do Coletivo de Mulheres do Calafate, trouxe à tona o agravamento dos casos de feminicídio como a face mais cruel da violência doméstica. O feminicídio, para ela, é o ponto final de um ciclo de violência que começa dentro de casa: “Quando fundei o coletivo, éramos sete mulheres que viviam em situação de violência. Hoje, vemos esses casos se multiplicarem. É doloroso perceber que a proteção não chega até nós.”

Sandra Munhoz, da Casa Marielle Franco, também esteve presente e enfatizou a invisibilidade das vítimas e a necessidade de medidas urgentes: “Esta mobilização é para dar voz às mulheres que foram assassinadas e às famílias que continuam sem respostas. Não podemos aceitar que a Bahia continue liderando os rankings de violência contra as mulheres. O Estado precisa assumir a responsabilidade que tem negligenciado por décadas.”

Como parte da articulação, uma carta foi protocolada na Governadoria do Estado da Bahia, com a assinatura de mais de 30 organizações negras e organizações políticas aliadas às lutas das mulheres negras no enfrentamento a violência doméstica, familiar e feminicídio na Bahia. O documento denuncia o descumprimento dos acordos assumidos pelo Estado brasileiro no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sendo signatário da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção CEDAW, 1979); da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994); e a Declaração Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Declaração de Durban, 2001).

Entre as principais reivindicações apresentadas no documento, incluem a defesa da responsabilização estatal e indenização por parte do Estado para os familiares de vítimas de feminicídio e para vítimas de violência doméstica e familiar, especialmente aquelas em condição de medida protetiva; Formulação e implementação imediata de políticas específicas para atendimento de mulheres quilombolas, ribeirinhas, ilhadas, de fundo e fecho de pasto e com residência em comunidades rurais; e o cumprimento e qualificação de medidas já acordadas na legislação brasileiras, nas áreas de Saúde, Educação, Assistência Social e Segurança Pública.

Joyce Souza, coordenadora do Projeto Quilomba – Pela Vida das Mulheres Negras do Odara – Instituto da Mulher Negra, lembrou que 2024 marca os 30 anos da Convenção de Belém do Pará, um compromisso internacional para a eliminação da violência contra as mulheres: “Apesar dos avanços, como a Lei Maria da Penha, ainda vemos uma distância imensa entre o que está no papel e o que acontece na prática. Na Bahia as políticas públicas não chegam às mulheres negras das periferias e do interior. Não temos como dizer a uma mulher quilombola que ela pode contar com o 180 ou 190, assim como não existem a execução de medidas de prevenção como as previstas nas políticas de Educação, Assistência Social ou Saúde”.

Joyce também destacou o impacto do aumento da violência nos últimos anos: “Os casos de feminicídio têm crescido de forma alarmante entre as mulheres negras e vivenciamos uma situação de interiorização das violências urbanas que afeta diretamente nossas comunidades Todos os dias, recebemos notícias de mais uma vítima. Essa violência não é um fenômeno isolado, é resultado direto de um sistema que negligencia nossas vidas em todos os âmbitos.”

Apesar da chuva que marcou a manhã de terça-feira, a articulação seguiu firme entre a Governadoria e a Secretaria de Segurança Pública, com o objetivo de dialogar com o Governador do Estado da Bahia, Jerônimo Rodrigues, que não atendeu o grupo. A entrega do documento foi protocolada na Governadoria e Irlene Carvalho, representante da Secretaria de Relações Institucionais (SERIN) coletou dados e o contato das lideranças do ato para encaminhamento das demandas reivindicadas na Carta. Com faixas, cartazes e gritos de dor e resistência, as participantes reafirmaram o compromisso com a luta por justiça e proteção.

“Esse ato é mais uma entre nossas ações de incidência política construída em rede. Seguimos mobilizadas, articuladas coletivamente e exigindo que nossas vozes sejam ouvidas e que nossas vidas sejam protegidas, com a garantia de dignidade que nos é de direito” concluiu Joyce Souza.
As mulheres negras da Bahia jamais aceitaram serem silenciadas, o Estado precisa se responsabilizar e ser responsabilizado por esses corpos negros que foram e estão sendo violados todos os dias.

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