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#OpiniãoOdara – O genocídio que dá em Chico, não dá em Francisco? A morte negra não comove o presidente Lula

O presidente reconhece o genocídio do Estado de Israel contra palestinos, mas é incapaz de assumir que existe um genocídio antinegro no Brasil

Em discurso feito na cidade de Adis Adeba, capital da Etiópia, no último domingo (18), o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva comparou os conflitos na Faixa de Gaza com o Holocausto cometido pelo regime nazista contra judeus e outros grupos durante a Segunda Guerra Mundial. O presidente afirmou que “na Faixa de Gaza, não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio”. Nisso nós concordamos, Presidente. E consideramos importante a sua atitude, enquanto um líder de Estado, em se posicionar e pressionar outras lideranças a voltarem seus olhares e sua solidariedade para o massacre vivido pelo povo palestino.

O termo genocídio foi cunhado em 1944 pelo jurista judeu Raphael Lemkin, que viu sua família ser dizimada pelo regime nazista e criou um termo específico para se referir àquele extermínio contra seu povo. Em 1948, após a Segunda Guerra Mundial, a Organização das Nações Unidas (ONU) definiu genocídio como o extermínio deliberado de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Entre os atos que se configuram como genocídio, vemos: dano grave ou assassinato em massa de membros do grupo, submissão a condições de existência que causem a destruição física total ou parcial do grupo, impedimento de nascimentos no grupo e transferência forçada de menores para outros grupos.

Pois bem, Excelentíssimo Presidente, de tempos em tempos a categoria genocídio aparece para acusar a extrema-direita de exterminar (por diversos meios) algum grupo humano. Pelas bandas de cá, no Brasil, a palavrinha mágica se inseriu no vocabulário dos autodeterminados progressistas brancos no mandato do inominável ex presidente. Mas ora veja só, se não foi justamente quando o efeito colateral de um projeto de nação genocida passou dos limites raciais negros e indígenas e atingiu quem tem a reserva de proteção racial-sócio-econômica deste país. A discussão sobre genocídio no Brasil durante a pandemia de covid-19 ganhou escala midiática e institucional porque pessoas brancas também foram vitimadas de forma massiva pela letalidade da doença, ainda que de forma desproporcional à população negra, conforme dados da FioCruz.

No entanto, desde o final da década de 1970, os movimentos negros brasileiros, destacadamente a partir da obra de Abdias Nascimento, “O genocídio do negro brasileiro”, já denunciava a violência racista na qual a sociedade brasileira está estruturada desde os tempos da escravidão e que se reconfigurou e persistiu mesmo após a abolição. Para reivindicar a condição de genocídio à qual a população negra esteve e continua submetida, Abdias apresenta fatos como a destruição das linguagens africanas, os assassinatos diretos, o processo forçado de miscigenação baseada na violência sexual – praticada sobretudo contra as mulheres negras – e as condições socio-econômicas em que os ex-escravizados foram lançados pós abolição.

De lá para cá, não faltaram intelectuais, juristas e ativistas de movimentos negros para elaborar, apontar e denunciar o genocídio contra o povo negro brasileiro. Desde a década de 1980 os Movimentos de Mulheres Negras vem denunciando que as políticas brasileiras sobre planejamento familiar são, na verdade, estratégias de controle populacional, estruturadas fundamentalmente a partir do período da ditadura militar – e enraizadas como cultura nas maternidades do Brasil até hoje.

Estas campanhas de controle de natalidade tinham como foco exclusivo a esterilização em massa de mulheres negras e indígenas, prioritariamente no Norte e Nordeste do país. Como consequência, até os dias atuais, os dados oficiais revelam que mulheres negras continuam sendo a maioria das que são submetidas ao procedimento de laqueadura. Em 2019, a Pesquisa Nacional de Saúde revelou que o número de mulheres negras que passaram pela cirurgia chegou a ser três vezes maior que o de mulheres brancas.

Em 2015, a Câmara dos Deputados chegou a montar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apurava os homicídios de jovens negras e negros, sobretudo em contexto de violência policial. Na ocasião, inclusive, a conclusão do relatório da Comissão foi de que existe um “genocídio simbólico” sendo praticado contra a população negra no país.

Periodicamente, organizações sérias e confiáveis apresentam dados sobre as condições de vida e morte da população negra brasileira que não deixam dúvidas sobre a existência de um projeto de nação genocida baseado no extermínio de uma raça. O último Atlas da Violência (2023), por exemplo, apontou que 80% das vítimas de homicídio no Brasil são negras. A Anistia Internacional, em seus relatórios, já destacou o extermínio da juventude negra brasileira e emitiu recomendações como a desmilitarização da Polícia Militar em caráter de urgência. 

Aqui na Bahia – estado que se encontra sob subsequentes governos petistas há 17 anos -,  presenciamos uma escalada da violência e letalidade policial contra o nosso povo, que em 2023 chegou ao seu auge, amparada pelo gigantesco investimento do Estado em aparatos de guerra para a Polícia Militar e pelas constantes declarações públicas de governadores em defesa de chacinas cometidas pela instituição. Só durante o governo de Rui Costa (2015 a 2022), a letalidade policial no estado teve aumento de 300%, como apontado pelo boletim “Pele alvo: a bala não erra o negro”, elaborado pela Rede de Observatórios, que apresenta também uma média de quatro pessoas negras mortas pela ação da polícia a cada 24 horas.

Sai Rui, entra Jerônimo Rodrigues e a violência e matança autorizadas pelo Estado continuam a escalar. Segundo o Relatório Anual do Instituto Fogo Cruzado, só em 2023, das 1.783 pessoas atingidas por disparos de arma de fogo na Bahia, 639 foram baleadas em ações e operações policiais. Além das centenas de feridos, as ações da polícia deixaram 136 mortos resultados das 36 chacinas executadas no estado. Embora não exista registro de raça/cor para identificar a grande maioria das vítimas, basta conhecer minimamente o modus operandi da polícia baiana para saber que estamos falando de corpos negros tombados em meio a uma guerra racial unilateral.

Isso sem falar das nossas irmãs e irmãos indígenas, historicamente massacrados, envenenados pelo garimpo e pela mineração, mortos diariamente enquanto resistem e reivindicam terras que são suas por direito. Entre os povos Yanomamis, por exemplo, só em 2023 foram registradas 308 mortes, causadas principalmente por doenças infecciosas, parasitárias e respiratórias, mas também em decorrência de confrontos diretos com garimpeiros que invadem as terras. Em Potiguará (BA), uma investida de ruralistas contra o povo Pataxó Hãhãhãe vitimou a liderança indígena Maria de Fátima Muniz Pataxó, a Nega, no último dia 21 de janeiro. A comunidade denuncia a participação da PM-BA no fechamento de estradas e facilitação da chegada dos criminosos até o local.

Como pode, Excelentíssimo Presidente, o senhor fechar os olhos para as milhares de famílias negras diariamente atingidas pelo projeto de morte em curso no país em que governa? Somos nós quem mais morremos pela bala, pela fome, pela falta de saneamento básico, pela negligência e falta de acesso a serviços de saúde adequados, e por aí vai. O senhor vai continuar fingindo que todas essas condições fazem parte de um estado de normalidade? Se ser massacrado de todas as formas e morrer aos montes diariamente é genocídio na Palestina que vive em estado de guerra, mas não é aqui no Brasil em estado democrático de direito? Genocídio que dá em Chico não dá em Francisco?

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