Paternidades interrompidas pela Polícia Militar da Bahia: o luto e a luta de pais negros que perderam suas crianças

Joel Castro, Robenilton Barreto e Maurício Menezes tiveram suas vidas atravessadas pela letalidade da Polícia Militar da Bahia e seguem na busca de justiça por seus filhos

Redação Odara

Quando se fala em paternidade, uma questão muito comum e que sempre vem à tona é o abandono. São muitos os casos em que esse abandono acontece antes mesmo do nascimento ou em algum momento da infância, trazendo solidão e sobrecarga para as mães e, muitas vezes, traumas para as crianças. Mas e quando a paternidade é interrompida, não por escolha, e sim como consequência da violência do Estado? Quem paga a conta quando é a polícia quem tira dos pais a possibilidade de exercer a paternidade, ao assassinar as suas crianças sem dar nem chance de defesa? Como ficam os pais que são lançados ao luto pela perda precoce dos filhos e ainda precisam arranjar forças para transformar esse luto em luta na busca por justiça? 

Joel Castro, Robenilton Barreto e Maurício Menezes são apenas alguns dos muitos pais negros que convivem com essa realidade dolorosa e revoltante. Os três homens são de comunidades periféricas da cidade de Salvador (BA) e têm as suas vidas marcadas por tragédias orquestradas pelo Estado e executadas pela Polícia Militar da Bahia.

Joel, o menino da capoeira

Em 2010, o menino Joel Conceição Castro, de apenas 10 anos, já se destacava por seu desempenho e paixão pela capoeira, seguindo os passos do pai, seu Joel, com quem compartilhava também o mesmo nome. Cheio de sonhos e com um futuro promissor pela frente, o menino Joel chegou a protagonizar uma propaganda televisiva do Governo do Estado da Bahia. Muito carinhoso e apegado ao pai, o garoto tinha como meta conseguir proporcionar uma boa vida para a própria família.

“Eu não tenho palavras para falar de Joel. Agradecia a Deus todos os dias pelo filho que me deu. Ele era inteligente, comunicativo e querido por todos. Ele era encantável”, lembra o pai.

Menino Joel em propaganda do Governo do Estado da Bahia

A vida e os planos do menino Joel, no entanto, foram interrompidos por uma bala disparada por um policial militar. Era noite de domingo, dia 21 de novembro de 2010, e a Polícia Militar realizava mais uma das suas ações truculentas no bairro Nordeste de Amaralina. Seu Joel voltava da igreja por volta das 22h e, encontrando três dos seus filhos na porta de casa, mandou que todos entrassem por conta do horário. O menino Joel e seus dois irmãos, ambos mais velhos, obedeceram o pai, que acreditava estar garantindo a segurança dos filhos ao guardá-los dentro da sua própria casa. Alguns minutos depois, a família foi surpreendida com o barulho de rajadas de tiro. O menino, que estava próximo à janela do quarto se preparando para dormir, foi atingido por um tiro na cabeça.

“Eu estava forrando a cama e ouvi um baque no chão. Quando olhei para trás, estava meu filho caído. Saí correndo desesperado, gritando por socorro e quando abri a porta, a rua estava cheia de policiais com armas apontadas para mim”, conta seu Joel. Os policiais negaram socorro ao menino, que foi levado ao hospital por um vizinho, mas não resistiu aos ferimentos. Morria Joel, o menino da capoeira, o garoto carinhoso de 10 anos que não desgrudava do pai e sonhava em lhe dar orgulho. 

Seu Joel durante Encontro de Mulheres Negras por um novo modelo de Segurança Pública, realizado pelo Instituto Odara | Foto: Milena Santana

“Joel era um menino pequeno que pensava muito grande”

afirma seu Joel.

Menos de um mês depois, o laudo do Departamento de Perícia Técnica (DPT) comprovou que o disparo que atingiu o menino foi feito pelo soldado Eraldo Menezes de Souza. O policial alegou que o tiro foi acidental. No início de 2011, o inquérito referente ao caso foi encaminhado ao Ministério Público (MP-BA), que passou a ser o órgão responsável pela apuração do crime. Eraldo e o tenente Alexinaldo Santana Souza, que comandava a operação policial, foram acusados de homicídio duplamente qualificado, por motivo torpe e impossibilidade de defesa da vítima. Quase 12 anos depois, o processo ainda não foi finalizado e os acusados seguem insistindo em recursos para protelar o encaminhamento do processo a júri popular.

“Muitas pessoas lá do Nordeste [de Amaralina] acham que não vai dar em nada. Eu me pergunto ‘cadê essa justiça? onde está ela?’. Eu não acredito mais na justiça. Eu acredito na luta”, afirma seu Joel, que afirma também que paternidade é sobre proteção, e por isso teme pela segurança dos seus outros quatro filhos: “Eu me preocupo muito com os meus filhos porque a violência no Brasil só cresce”, afirma. Um dos irmãos do menino Joel, após a morte do garoto, recebeu uma proposta para morar fora do país e o medo da violência que vitimou seu irmão fez com que aceitasse.

Confira a fala emocionada do Mestre de Capoeira Joel de Castro, ao contar o caso da morte de seu filho, durante o Encontro de Mulheres Negras por um novo modelo de Segurança Pública: “A gente combinamos de não morrer”.

Mirella, o grande amor da vida de Robenilton

Mirella do Carmo Barreto era uma garota de apenas 6 anos. Estudiosa, sonhava em ser fisioterapeuta, profissão que teve contato depois que sua mãe sofreu um acidente de trânsito e precisou passar por sessões de fisioterapia para se recuperar. Apesar do carinho e preocupação com a mãe, era com o pai, seu Robenilton, que Mirella estava sempre grudada, o acompanhando aonde quer que fosse. 

“Eu levava ela pra escola, brincávamos juntos. Era muito amor envolvido e uma ligação muito forte. Ela era muito alegre e tinha um coração bom”, conta Robenilton.

Menina Mirella, 6 anos | Foto: Arquivo Pessoal

Aluna exemplar, Mirella não perdia um dia de aula e recebia muitos elogios das professoras. No dia 17 de março de 2017, uma sexta-feira, Robenilton levou Mirella até a escola, carregando a menina no colo para impedir que a água da chuva molhasse seus pés. Naquele momento, o pai da garota jamais poderia imaginar que era a última vez que faria aquilo.

“Mirella era o grande amor da minha vida. Ela foi um anjo de Deus. Agora só resta a saudade”

diz Robenilton.
Robenilton durante Encontro de Mulheres Negras por um novo modelo de Segurança Pública, realizado pelo Instituto Odara | Foto: Milena Santana

Durante a noite daquela sexta-feira, por volta das 20h,  a Polícia Militar da Bahia entrava na localidade da Goméia, no bairro de São Caetano – onde a menina Mirella vivia com os pais – com a justificativa de que estavam seguindo um sinal de GPS para recuperar um aparelho celular roubado. Na casa de Robenilton, sua esposa preparava um cuscuz para a janta e, percebendo que faltava um dos ingredientes, ele saiu para comprar em uma mercearia próxima. Chegando na mercearia, Robenilton percebeu a presença da polícia na comunidade e esperou um pouco para voltar para casa. Em casa, a mãe de Mirella estava estendendo algumas roupas na companhia da menina. Ao perceber a movimentação dos policiais na rua, a mulher chamou Mirella para se proteger, mas não houve mais tempo. Um policial atirou em direção à casa, acertando a menina.

Robenilton ouviu os disparos e voltou para casa correndo quando um sobrinho gritou seu nome. Ao chegar, se deparou com sua filha sangrando no chão da sacada de casa e não pensou duas vezes antes de pegá-la no colo e sair em busca de socorro. Na porta de casa, se deparou com Aldo Santana do Nascimento, policial responsável pelo disparo, que tirou Mirella dos braços do pai para prestar socorro, mas devolveu em seguida, ao perceber que a menina já estava morta. Uma viatura que estava próxima levou Robenilton e a menina até uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da região, mas já era tarde para salvar a vida de Mirella.

Robenilton e Mirella em foto de família | Foto: Arquivo Pessoal

“Foi o dia mais terrível da minha vida. Eu pedia a Deus que aquilo tudo fosse só um pesadelo”

conta Robenilton.

Mesmo com o exame de balística revelando que o disparo que matou Mirella saiu da arma do soldado Aldo Santana do Nascimento e com o indiciamento por homicídio culposo (quando não há intenção de matar), o policial chegou a ser afastado da Polícia Militar por algum tempo, mas logo voltou ao trabalho. A PM alegou que o disparo foi acidental e aconteceu durante uma troca de tiros com bandidos, mas a população negou essa versão, afirmando que os policiais já chegaram na rua atirando.

Desde o ocorrido, a família passou apenas por uma audiência de instrução, que aconteceu antes da pandemia. Robenilton conta que ficou decidido que haveria mais uma audiência para ouvir as testemunhas e dar prosseguimento ao caso, mas nenhuma data foi agendada e, desde então, a família segue sem atualizações do processo. “Já são 5 anos sem Mirella e sem justiça. A gente busca por justiça e ela corre da gente”, diz Robenilton.

Micael, um sonho cortado como linha de pipa

Micael Silva Menezes tinha 11 anos, era morador da Santa Cruz, no Nordeste de Amaralina, e carregava consigo o sonho de se tornar jogador de futebol para ajudar financeiramente sua família. Ele havia sido diagnosticado com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e fazia acompanhamento psicológico no Centro de Referência da Assistência Social (Cras) do seu bairro. 

Menino Micael | Foto: Arquivo Pessoal

Maurício, o pai do menino, que trabalha lavando carros em um lava-jato no bairro da Pituba, por muitas vezes levava o filho para o trabalho junto com ele. Nas imediações do lava-jato, assim como na região da Santa Cruz, Micael era conhecido e querido por todos. “Micael era muito alegre e extrovertido. Se vocês conhecessem essa criança, iam saber que ele era realmente um menino de ouro”, afirma o pai.

Maurício conta que no dia 14 de junho de 2020, um domingo, o garoto acordou feliz e animado para empinar pipa na rua. Com a ajuda do pai, o menino passou as primeiras horas do dia se divertindo com o seu passatempo preferido em frente à casa onde vivia. Mais tarde, Micael e mais dois amigos foram brincar no fim de linha do Vale das Pedrinhas. Os meninos ganharam de uma conhecida um dogão e alguns copos de refrigerante para dividir entre eles. Pouco tempo depois de fazer o lanche, os meninos foram surpreendidos pela Polícia Militar, que chegou no local fazendo disparos de arma de fogo. Naturalmente, Micael tentou correr para se proteger, mas foi atingido pelas costas. Ferido, ainda conseguiu entrar na casa de uma moradora do local, que tentou estancar o sangramento provocado pelo ferimento, sem sucesso. Já sem vida, testemunhas afirmam que o corpo de Micael foi jogado no camburão e levado para o Hospital Geral do Estado.

“Infelizmente, o sonho dele foi cortado. Micael se foi”

diz Maurício.

Ao receber a notícia de que o filho havia sido baleado, Maurício, desesperado, se dirigiu andando por cerca de 5 km até o hospital com a esperança de encontrar o menino com vida. Mas o que encontrou lá foi o corpo do garoto e, perto dele, um policial com a farda ensanguentada e sem a etiqueta de identificação que costuma ser utilizada por agentes em serviço.

Maurício durante Encontro de Mulheres Negras por um novo modelo de Segurança Pública, realizado pelo Instituto Odara | Foto: Milena Santana

Após a confirmação da morte do menino Micael, a Polícia Militar divulgou uma nota na qual dizia que, no dia 14 de junho de 2020, policiais da 40ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM/Nordeste de Amaralina) foram acionados para atender um chamado referente à ocorrência de homens armados na região da Rua Santo André, no Vale das Pedrinhas:

“Houve troca de tiros e, ao cessar os disparos, os policiais encontraram um menino de 12 anos atingido, que foi socorrido para o Hospital Geral do Estado, onde não resistiu aos ferimentos.  No local onde houve o confronto, a guarnição encontrou ao solo um revólver calibre 38, duas porções de crack e de pasta base para cocaína, 50 pinos de cocaína e 17 trouxas de maconha”.

Testemunhas desmentem essa versão e contam que não houve troca de tiros no local. Todos os disparos foram feitos pelos policiais.

Passados dois anos da morte de Micael, a família já passou por duas audiências para discutir o caso, mas segue sem saber, sequer, o nome do policial que efetuou os disparos e, nem mesmo inquérito policial referente ao caso foi finalizado.

“É muita angústia e sofrimento por não ter a quem recorrer, mas não vamos desistir. Não podemos nos calar até que a justiça nos dê respostas”

desabafa Maurício.

Justiça para quem?

Além da dor, tristeza e indignação compartilhadas por Joel, Robenilton, Maurício e tantos outros pais, mães, familiares e amigos de crianças e adolescentes negros vítimas da violência do Estado, existe outro ponto que os une: os obstáculos para acessar a justiça para acompanhar e dar segmento aos processos. Os três homens, que têm seus casos tocados pela Defensoria Pública, relatam não saber ao certo como andam as investigações e que já tentaram se informar em diversos órgãos da justiça, sem sucesso. Eles contam também que já foram tratados de forma grosseira em alguns desses espaços, como se estivessem pedindo um favor ou como se fossem eles os bandidos e assassinos, ao invés de vítimas.

Seu Joel, familiares e amigos durante enterro do menino Joel, em 2010 | Foto: Divulgação

Joel, por exemplo, diz já não acreditar na justiça, por não entender porque depois de tanto tempo comprovado que seu filho foi assassinado por um policial, o assassino segue sem responder pelo crime que cometeu. “Nosso governo é perverso e nós temos uma máquina assassina que é a polícia militar. Estou há 11 anos procurando por justiça, sendo mandado de um lugar para outro e já não sei o que fazer”, diz, revoltado.

Seguimos em luta contra a impunidade e pela vida do Povo Negro

Segundo pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança, a Bahia é o estado com o maior índice de letalidade policial do Nordeste, chegando a registrar 787 vítimas só em 2020, das quais 98% eram pessoas negras. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta ainda que entre os anos de 2017 e 2020, 2.215 crianças e adolescentes foram mortas pela polícia no Brasil. Esses números seguem numa crescente e não se pode esperar que um sistema de justiça branco vá combater ou solucionar essa questão, sobretudo por se tratar de um projeto político de genocídio contra as vidas negras que se desenrola desde a constituição desta nação e deste Estado que se promoveu mundialmente vendendo uma ilusão de democracia racial.

Cabe a nós, cidadãos de bem, mães e pais de família, jovens, adultos e idosos, trabalhadores e estudantes, sobretudo organizações da sociedade civil, prestadores de serviço do funcionalismo público, ativistas atuantes dentro e fora dos partidos políticos, pessoas e instituições que se afirmam aliadas à luta antirracista e em defesa dos direitos humanos, cabe a nós expor, denunciar e cobrar justiça pela dor de tantas famílias negras.

Cabe a toda sociedade que reconhece a existência da prática histórica de barbárie das forças policiais contra as populações negras, pautar e propor estratégias e caminhos de justiça pelos nossos e construir um projeto político para tirar as miras das nossas cabeças e não mais permitir que o Estado tire de famílias e comunidades negras a possibilidade de criar as suas crianças.

Nesta perspectiva, o Projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, em parceria com a Mandata Coletiva Pretas Por Salvador, realizará a Audiência Pública pela Vida do Povo Negro e em alusão ao Dia Estadual de Combate aos Homicídios e à Impunidade. A atividade acontece no próximo dia 26 de agosto, às 15h, na Praça da Piedade, em Salvador (BA); e tem por objetivo dar visibilidade aos casos de homicídios protagonizados pelo Estado que seguem sem justiça, bem como, debater a ascensão dos números de homicídios na Bahia, mais especificamente em Salvador, apontando as possibilidades de enfrentamento institucional e político.

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