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Coluna Beatriz Nascimento #12 – 3ª Temporada: Ana Doroteia Santos Dias

A terra é meu quilombo – Beatriz Nascimento

Na escola Beatriz Nascimento eu aprendi que devo saudar minhas ancestrais, identificar os passos que vieram antes de mim, fui lembrada que os traços do meu rosto contam as histórias de minha mãe, meu pai, minhas avós e meus avôs. Depois de encarar o espelho de Oxum, em um círculo só de mulheres negras e olhar para mim com amor e orgulho, tudo mudou! Que orgulho identificar a grandeza de respirar e pulsar ancestralidade. Saber de onde viemos nos ajuda a pensar pra onde desejamos ir. 

Me chamo Ana Doroteia, sou filha de Mailde Santos e José Alves, neta de Ana Maria Alves, Dinair Gonçalves, Antônio Damasceno e Raimundo Vieira. Eu vim do Norte do Brasil, nasci em Belém do Pará, nascida e criada no bairro do Tenoné, periferia de Belém. Meus pais me criaram para me situar no mundo, saber de onde venho, fui ensinada a respeitar as diferenças desde criança, amar e respeitar as pessoas independente de sua cor de pele, classe social, sexualidade ou expressão de gênero. Desde sempre fui chamada por meu pai e minha mãe de Neguinha, eles se referiam a mim e minha irmã de “nossas neguinhas”, nunca tive dúvida se era negra. Contudo, no Norte, ocorre um fenômeno social e racial diferenciado, somos majoritariamente descendentes de povos indígenas e muitas vezes não sabemos a quais etnias pertencemos/descendemos. 

Minha mãe migrou quando criança para Belém, ela nasceu em Oriximiná, no oeste do Pará, lá sua/nossa ancestralidade foi/é composta por povos descendentes de quilombos e comunidades indígenas próximas da cidade. Quando cresci e entendi que não me parecia nem com brancos, nem totalmente com pessoas negras retintas, compreendi o apagamento intrínseco a minha identidade e de tantas outras pessoas do Norte do Brasil. Hoje eu considero ocupar a fronteira étnica de mulher negra e indígena. Consigo diferenciar um antes e depois da consciência de me perceber no mundo, por isso gravei a frase dita por Luciana Silveira em uma das aulas da EBN “Saber de nossa ancestralidade, nosso DNA, nossa memória, interfere completamente na nossa forma de pisar e estar no mundo, interfere no nosso posicionamento político”. 

Posicionamento político esse que adquiri durante minhas formações políticas em instituições populares situadas nas periferias de Belém, ONGs como República de Emaús e Universidade Popular- UNIPOP, nas quais realizei meus primeiros cursos de formação política para pensar problemáticas em torno do racismo, sexismo e LGBTQIAPN+fobias. Durante a graduação em História tive contato com a educação, área que sou apaixonada e na qual encontro com outras possibilidades de discutir fatos históricos. 

Contudo, durante o curso percebi que apesar de enfocar em uma perspectiva de esquerda e movimentos sociais, as epistemologias hegemônicas ainda eram/são majoritariamente eurocêntricas e patriarcais, nesse contexto, optei por buscar outros direcionamentos, não conseguia me pensar falando para alunes de camadas populares, nas periferias, para mulheres no geral e mulheres negras em específico, sobre uma história que não lhes inclui, ou que lhes relega somente a subalternização. Entendi a necessidade de descolonizar os saberes e nossas lentes de análise. 

Nesse ensejo, tentei o mestrado na Universidade Federal da Bahia, em um programa que diverge das lógicas dominantes do saber, mas durante esse percurso vivi a pandemia, foi um período doloroso e desafiador. Escrever e pesquisar se tornou um fardo, permeado de ansiedade e solidão. Durante a última aula da EBN, rememorando minha trajetória até ali, lembrei um dia em meados de outubro de 2022, enquanto enfrentava aquele monstro da escrita, que hoje sei ser minha maior aliada, quando Glória Anzaldúa soprou em meus ouvidos, a partir de uma leitura feita alguns anos antes, onde me dizia “enquanto tateio as palavras e uma voz para falar do escrever, olho para minha mão escura, segurando a caneta, e penso em você a milhas de distância segurando sua caneta. Você não está sozinha”3, naquele momento acreditei nessa afirmação e escrevi como quem tem medo de escrever, mas tem mais medo de não escrever. 

Naquele dia, durante a retrospectiva do meu percurso até a sala da Escola Tertuliano de Góes, situada no bairro do Alto das Pombas, em Salvador/Bahia, eu pude perceber que nunca estive só, minha escrita me trouxe, concretamente, onde eu sinto que nunca mais serei a mesma e jamais andarei sozinha, além de criar laços afetivos com minhas companheiras de luta, me reconectei com meus guias, com minha ancestralidade. 

Desde o primeiro dia do Curso eu apreendi conhecimentos tão potentes que reverberam até hoje nas batidas do meu coração. Questionamentos sobre “como matar a branca dentro de mim?” uma pergunta que me remete aos escritos de Grada Kilomba quando nos convida a sobrepor a colonialidade de gênero, entender que somos o outro do outro do outro, a outridade dissidente do masculino, do ser mulher, do que se considera humano. Como expurgar de nós aquela que nos ameaça, fere e nos provoca disforias? Ser negra é muito potente. Foi nesse curso que entendi a importância de me sentir deslocada no mundo, os desconfortos são sinais da necessidade de mudanças e de que nossa intuição é efervescente, nos guia “a encruzilhada traz desconforto, mas esse desconforto também fascina” (K.D, cursista). 

Na segunda aula pensamos como produzir rasteiras no racismo brasileiro, em grupo provocamos umas as outras a pensar instrumentos de combate e destacamos a importância de desviar da lógica capitalista, não somos objetos. Pensamos também que o afeto e o Aquilombamento são nossas tecnologias de resistência, assim como a raiva, que nos movimenta, pode ser vetor de mudanças. Damos rasteiras na colonialidade com a nossa língua, com a oralidade, com nossos discursos contra hegemônicos que desmascaram as histórias mal contadas sobre nós, e nos certificaremos que nossa narrativa orgulhará as que vierem depois. 

No terceiro encontro, aprendemos com Valdecyr Nascimento e Rita Santa Rita que as mulheres negras produzem intelectualidade desde sempre, elaboramos a importância de ocupar todos os espaços de poder, de sabotar o sistema desde dentro, no entanto rompendo com as lógicas impostas, criando outros sistemas que produzam o bem viver, que garantam nossas reivindicações e demandas. Dentro disso, que não andemos sós, não tenhamos medo de incomodar, que não falemos a língua dos brancos, que criemos nosso próprio modo de dialogar e nosso dialeto insurgente, como nos ensinou Lélia Gonzalez. Que confrontemos o racismo de peito aberto, não amenizaremos, não compactuaremos. Em contrapartida teremos a coletividade como foco principal. 

Nas aulas que se seguiram nos aprofundamos sobre direitos reprodutivos, nas escritas insubmissas e ao direito ao território. Todas as aulas foram essenciais para formar ativistas com vasto arcabouço teórico e prático. Esses debates ampliaram meu olhar sobre como produzir ativismo na minha comunidade e em qualquer lugar. A Escola Beatriz Nascimento forma ativistas da forma mais bonita e honesta que eu já presenciei ao longo dessa experiência de vida, a partir da do amor como ação, como prática, com irmandade. 

Por isso eu acredito que a incidência da Escola Beatriz Nascimento na vivência de mulheres negras e sua potência de coletivizar instrumentos de resistência contemporânea e Aquilombamento urbano, entre estas mulheres e suas comunidades, é uma manifestação da ética amorosa, de acordo com bell hooks (2020), o amor é uma junção de ações éticas que perpassam o cuidado, a afeição, a responsabilidade, o respeito, o compromisso e a confiança, é possível afirmar que a experiência das cursistas diante das práticas adquiridas na escola se concretizam como manifestações 

políticas de amor. Parafraseando Angela Davis (2017), a reunião de mulheres negras é sinônimo de revolução e juntas movimentamos toda a sociedade nas mais diversas estruturas, sejam elas: afetivas, sociais, políticas, acadêmicas e/ou educacionais, entre outras. 

Finalizo esse ensaio pensando que os sonhos existem como guias, é preciso imaginar, fantasiar, fabular para dar sentido a vida, como afirma bell hooks, “o que não imaginamos, não pode vir a ser” (2020, p.55). Eu sonhei com esse Aquilombamento que experenciei e fui presenteada na EBN. A surpresa que os sonhos guardam é tornar a 

realidade mais grandiosa, gostosa, vibrante e potente, “viver é melhor que sonhar” como cantava Belchior, saúdo e agradeço minhas ancestrais por terem me trazido até aqui.

Ana Doroteia Santos Dias é uma mulher cis, do Norte do Brasil,  historiadora pela Universidade Federal do Pará e Mestra em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia.


REFERÊNCIAS:
1Escritos durante a vivência do curso e editado sob meu olhar. 

2 Historiadora pela Universidade Federal do Pará. Mestre e Doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos (PPGNEIM) pela Universidade Federal da Bahia. Ativista pelos Direitos das Mulheres, na luta contra as violências de gêneros e os Feminicídios. Aprendiz de Capoeira, dança-afro e audiovisual. Sonhadora convicta em qualquer hora vaga. 

3 Anzaldúa, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos Feministas. Ensaios, Ano 8-1ºSemestre. P. 229-238, 2000. 

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