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Coluna Beatriz Nascimento #14 – 3ª Temporada: Isis Abena

Saudações, cara leitora.

Começo essa escrita preenchida com a sensação de alegria. Sinto-me feliz pela ideia de ser acompanhada nessa escrita de intimidade. Falarei sobre minha experiência na participação da 5ª turma da Escola Beatriz Nascimento. Trago em mim vozes silenciadas, emudecidas pela violência colonial, pelo desamparo discursivo construído para e sobre nós, mulheres negras. Ao contar de mim conto sobre essas vozes que me habitam também. 

Sou Ísis Abena, filha da dona Irá de Souza e Ivo Soares. Mulher amefricana nascida em Salvador, mãe de Ainá, uma menina pretinha linda de quase 5 anos. Nasci na Fazenda Grande do Retiro (Salvador – BA) mas minhas raízes são banhadas pelo mar do Recôncavo. Desde pequenina aprendi a arte de escutar e buscar pelas memórias das minhas mais velhas. Minha bisa, Idalina, cabocla pega pelo laço, foi a primeira que me ensinou a sentar para escutar nossas histórias e valorizar nossa memória. Idalina, cosia renda de bilros, vassouras e desde muito nova aprendeu a lida da roça para catar dendê e extrair a frio seu azeite. As memórias que carrego sobre Idalina estão impregnadas com o cheiro de azeite de dendê e do fumo de rolo que ela sempre tinha por perto para abastecer seu cachimbo. 

Escrevo diários há 23 anos, mas a autorização de deixar circular em minha identidade o significante escritora é uma conquista recente que ganhou outros significados com a convivência junto às 39 companheiras da Escola Beatriz Nascimento. Foi num dos encontros de formação com a querida Dayse Sacramento da editora Diálogos Insubmissos que falei pela primeira vez sobre os desafios para me nomear enquanto escritora. Nesse encontro refletimos sobre a escrita de si de mulheres negras. 

Para além de escritora, sou artesã da sensorialidade e psicanalista. Gosto de dizer que escuto memórias e crio perfumes. 

Para tentar dizer sobre os caminhos que meu corpo-voz, como ensina Conceição Evaristo, trarei aqui a minha escrevivência do primeiro dia de Formação da Escola Beatriz Nascimento: 

6 de maio de 2023 

Osupa (lua cheia) em escorpião 

Água. 

Transbordamento… 

Dar atenção aos sinais molhados que o corpo dá. 

Hoje foi o primeiro dia de formação política para ativistas negras da Escola Beatriz Nascimento, iniciativa do Instituto Odara em parceria com o Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (GRUMAP). Lembro do dia que fui para entrevista de seleção na casa amarela do Odara. Uma sexta-feira de sol. Sentia-me bonita naquele dia…passei no largo Dois de Julho e comprei flores. Rosa Menina. Coloquei as flores na minha sacola e desci a Rua Augusto França. Gosto da estética política de mulheres negras caminhando e carregando flores na Capanga. 

No caminho fiz minhas rezas. Pedi bênçãos às minhas Ancestrais. Sentia e sabia que aquele era um passo importante para nós. E quando escrevo nós é por compreender que sou muitas e ainda serei tantas outras… Saudei a encruzilhada e pedi benção por todas nós e segui confiante dos meus passos acompanhada. Tinha certeza que 1 das 40 vagas disponíveis seria nossa. 

Fui muito bem recebida na sede do Odara. Uma moça muito gentil e bonita me ofereceu água logo na chegada. Ritos ancestrais. 

Enquanto aguardava meus olhos foram capturados pelos quadros de mulheres que hoje são tão presentes na minha vida. Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, Maria Carolina de Jesus. Cartazes da Marcha das Mulheres Negras. 

Meu passeio foi interrompido porque ouvi meu nome sendo convocado. Na sala havia apenas duas mulheres negras, três comigo, mas senti que éramos muitas. 

Depois de responder meia dúzia de perguntas me despedi e fui caminhando até a reitoria da UFBA. Mais passos na direção do Bem Viver. 

Quero Bem Viver no Presente. 

Reivindico meu direito bio cósmico a alegria, prosperidade, saúde e território. 

E hoje, na aula inaugural, meu corpo informou através de lágrimas incessantes que há tempos não me visitavam, sobre confiar que estamos caminhando pelos espaços certos. 

Meu desejo é por comunidade. 

Quero a experiência de pertencer a uma comunidade afetiva onde o amor seja a ética. Desejo florescer nesse espaço de aquilombamento. Quero que Ainá cresça nesse ambiente e que seja formador para ela também. Sinto-me que estou onde preciso estar agora. Sinto-me grata pelas encruzilhadas, as Iyabas e Exu pela condução. 

Sinto que meu tempo é agora. 

Em 2022 criei o ciclo de Escrita Matinal e Intuitiva, uma imersão para mulheres negras que desejam escrever quem se é e imaginar quem queremos ser. Escrever para futurizar-se. Mais que narrar experiências individuais e coletivas, a escrita de si permite inventar a própria existência. Quando escrevemos memórias, escavamos o passado, ressignificamos experiências e, inevitavelmente, transformamos o presente. Ao contar sobre o que nos atravessa dizemos o que acontece no mundo. 

A ‘escrevivência’, conceito criado por Conceição Evaristo há mais de duas décadas, é uma prática de mulheres negras em que ‘a vida se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta’. 

Nessa perspectiva, meu ativismo se configura hoje nesse espaço de potencializar uma relação saudável para que nós, mulheres negras, possamos escrever e assim criar fricções e furos nessa temporalidade ocidental castradora que nos projeta para narrativas de futuros onde permanecemos em lugares de subalternização. Furar essa narrativa com a caneta. Criar outros imaginários onde nós, mulheres negras, possamos desfrutar de bem viver no presente, de saúde ventral, de justiça reprodutiva. 

Mudamos de posição quando escrevemos, quando falamos em associação livre numa análise mas também quando experienciamos uma dinâmica de tempo e espaço históricos onde já não nos cabe a posição de objetos e nos tornamos sujeitas de nossas próprias palavras. E já que o significante olhar circulou nessa escrita lembro-me de outro fragmento de memória que nasceu durante os meses de formação da EBN:

Osu Tun (Lua Nova) em Virgem – 17 de agosto de 2023 

Olhos para ver 

Mais além dessa visão 

Globo ocular ao Sol 

Olhos revirados, mirando o topo da Cabeça. 

Orí, mantenha-se receptivo às bênçãos das minhas ancestrais. 

O que meus ancestrais viam ao olhar o Mar? Quais sensações, sentimentos, se parecem com os meus de agora? Quais foram as preces que ofereceram ao Mar? 

Eu já pedi de um tudo a Grande Kalunga. Pedi que levasse minhas dores e sofrimento. 

Água salgada nos olhos.

 Me vejo grande, imensa e tão pequena perto do Mar. 

Como foram os banhos de Mar que Elas tomaram? Em piscinas de águas rasas na maré vazante ou desde muito nova aprenderam que onda grande a gente atravessa mergulhando? 

Nós, mulheres negras, fomos socializadas para ter medo. A escrita intuitiva de mulheres negras é para mim, um ato de emergência de sujeitas cuja subjetividade caminha na direção de construir uma nova paisagem interna para perseguir o próprio desejo, essa talvez seja a nossa maior oferenda ancestral: Um ebó de coragem. 

O que me move no pensamento de Beatriz Nascimento é a inter-relação entre corpo, memória, território e identidade. Beatriz Nascimento vai abordar Orí como uma memória coletiva que produz identidade coletiva capaz de responder à perda da imagem de si mesmos. Beatriz recupera a ideia de pessoa negra. 

Na escola Beatriz Nascimento percebi que meu corpo-território escolheu o Morro da Sereia para pertencer e florescer. Desterritorializada pelo sequestro transatlântico, meu corpo me deu a pertença que a colonialidade retirou. o Morro da Sereia me encheu de água… cabaça cheia do líquido amniótico da existência. Aqui Ainá é concebida, gestada e nascida. É nesse território, que vivo a minha primeira experiência de quilombo para além do meu próprio corpo e da morada primeira, útero de minha mãe. Renasço Mametu, me formo doulagem tradicional e refaço caminhos para retornar a pesquisa acadêmica. Transbordo matripotências e inauguro meu primeiro empreendimento: A Hawa Cosmossensibilidades. 

Mulheres negras que falam em primeira pessoa, donas de suas próprias palavras. No nosso primeiro encontro de formação, lemos Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira (1986) escrito por Lélia Gonzalez, oferenda das nossas ancestrais a nós, mulheres amefricanas, No texto, dialogando com a categoria infans de Lacan Lelia reflete sobre a infantilização de nós, mulheres negras, que somos faladas antes mesmo da queda do ventre de nossas mães. 

Sinto que meu tempo é agora. Recorro a voz da Iyá Stella de Oxóssi para dizer como me sinto diante deste tempo: – convocada a escrever e fazer ativismo com caneta e minha voz. Os sentidos africanos do Tempo, as temporalidades curvas, como diz Leda Maria Martins, propõem uma nova consciência sobre o Presente para mim. E é no presente que nós, mulheres negras, reivindicamos bem viver, o aquilombamento afetivo e nossas vozes. 

Agradeço a Escola Beatriz Nascimento pela possibilidade de recriar no meu imaginário as rotas que minhas ancestrais fizeram para que eu chegasse até aqui.

*Isis Abena é psicanalista, mestranda em Estudos sobre Gênero, Mulheres e Feminismos, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), filha da dona Irá de Souza e Ivo Soares. Mulher amefricana nascida em Salvador, mãe de Ainá. Nasceu na Fazenda Grande do Retiro (Salvador – BA) mas suas raízes são banhadas pelo mar do Recôncavo.

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