QUE DEUS, QUE PÁTRIA E QUE FAMÍLIA? GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA DE DIREITA E DE ESQUERDA NO BRASIL
10 de Dezembro – Dia Internacional dos Direitos Humanos
O Dia Internacional dos Direitos Humanos, celebrado hoje, 10 de dezembro, deveria ser um momento de reflexão sobre os avanços conquistados, mas é necessário falar sobre as cicatrizes profundas deixadas pelo racismo patriarcal e pela violência do Estado, que impõem dor e morte a milhares de brasileiros. Mães que perderam seus filhos por balas que só encontra corpos negros, filhos que perderam suas mães pelo feminicídio, famílias que não puderam celebrar o nascimento de uma nova vida porque foram vítimas da violência obstétrica, comunidades quilombolas que vivem o luto pela perda de suas lideranças. E enquanto a sociedade brasileira perde vidas e esperanças, o Estado ganha mais força para disparar munições contra a população negra e periférica.
O campo dos Direitos Humanos tem apresentado grande preocupação com a continuidade do bolsonarismo, o acirramento do ultraconservadorismo atribuído à extrema-direita no Brasil e no mundo, especialmente na América Latina. Mas e que nome damos à sucessão de violências perpetradas ou permitidas contra a população negra por governos de esquerda?
Nas últimas semanas, diversos casos de violência policial foram veiculados insistentemente nos meios de comunicação tradicionais. Gabriel Santos da Costa, 17 anos, foi morto no Alto de Ondina, em Salvador-BA. Gabriel estava acompanhado de Haziel Martins Costa, 19 anos, que também foi alvejado, mas sobreviveu aos ferimentos.Os jovens foram coagidos, postos deitados no chão e baleados pelo policial militar Marlon da Silva Oliveira, que estava fora do horário de serviço, com carro próprio, mas armado. O policial alegou que disparou em legítima defesa após ter sido alvo de uma tentativa de assalto, mas o vídeo gravado por uma testemunha prova que os jovens já estavam rendidos, desarmados e sem esboçar nenhuma reação antes de serem alvejados.
Se não fosse este vídeo e sua ampla circulação, era possível que mais uma vez as narrativas sobre auto de resistência (mesmo o policial estando fora de serviço) poderia prevalecer na opinião pública. No entanto, é importante refletirmos sobre o paradoxo que nos aflige em relação ao uso da internet porque há uma espetacularização do sofrimento e das violências raciais sofridas pela população negra, no entanto, se não fosse essa disseminação das provas, apenas a narrativa de um policial, investido da prerrogativa da fé pública, poderia ser exitosa e legitimar mais uma fraude procedimental/processual que sustenta os autos de resistência. Esse caso em especial chama atenção porque o policial não estava em serviço, ou seja, a morte de Gabriel não vai ser contabilizado nos dados sobre letalidade policial, mas está inescusavelmente relacionado com a lógica militarizada que está imposta à vida cotidiana da pessoas negras.
A militarização da segurança pública é um imperativo que transcende às ações oficiais das instituições policiais tendo se alastrado para todas as dimensões da vida de pessoas negras empobrecidas e mesmo dos agentes de segurança pública. A militarização provoca um estado constante de guerra porque as polícias brasileiras foram criadas para enfrentar um inimigo interno: a população negra. Óbvio que uma desmilitarização não se estabelece da noite pro dia, mas é procupante que os governos ditos progressistas jamais coloquem isso nas suas agendas tendo em vista que o movimento negro, parte construtora da esquerda brasileira, tem reinvindicado a pauta desde a década de 1970, aliado a denúncia das diversas formas de genocídio da população negra no Brasil. O que temos assistido é o endosso da autonomia das ações policiais somado à desídia das instituições que têm por obrigação constitucional e legal de fazer o controle, a exemplo dos Ministérios Públicos dos estados. Isso implicou no avanço voraz da letalidade policial estando a Bahia na dianteira deste ranking nefasto.
Desmilitarizar a segurança pública é imprescindível para um novo horizonte de civilidade na sociedade brasileira, é essa despolarização da qual estamos necessitando porque cessar com a violência de Estado contra a população negra transcende e antecede o enfrentamento ao ultraconservadorismo, ao bolsonarismo e/ou à extrema-direita. A Região Nordeste do país é prova substancial disso: na Bahia temos um exemplo paradigmático com 5 mandatos do Partidos dos Trabalhadores e a maior taxa de letalidade policial do país, onde só em 2013 mais de 94,6% das vítimas eram pessoas negras, conforme pesquisa Pele Alvo: Mortes que Revelam um Padrão realizada pela Rede de Observatórios. No Ceará, governado pelo Partido dos Trabalhadores, com uma rápida passagem de uma governadora do PSB, desde 2015, o número de pessoas negras vitimadas pela letalidade policial em 2023 foi oito vezes maior do que de brancos, segundo a mesma pesquisa.
Pátria, Deus e Família é o lema que sustenta os setores conservadores desde a ditadura militar, e atravessa a história como máxima da direita brasileira, permeada de valores cristãos e nacionalistas, mas que defendem essa tríade de forma seletiva e racializada. Não são as pessoas negras parte desta pátria? Admitimos, então, a condição de não cidadania e não humanidade das pessoas negras? Deus também é fiel e onipresente só na vida de pessoas brancas e às pessoas negras ele relegou as piores experiências de vida? Qual é essa justiça divina? E família só é aquela constituída por um casal heterosexual branco? As famílias negras podem ser destruídas por abortos e mortes maternas provocadas por violência obstetrica ou mesmo por mortes violentas de suas crianças, jovens e idosos? Essa família se sustenta à base de violência patriarcal desde que ninguém se desvie um milímetro sequer da heteronormatividade e da centralização do poder masculino?
Projetos de lei e outras iniciativas institucionais têm recrudescido a mortalidade de pessoas negras para além da violência policial. Este é o caso do projeto de lei que foi aprovado na comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Deputados no último dia 27 de novembro, que criminaliza qualquer tipo de aborto, mesmo aqueles casos excepcionais já autorizados pela legislação penal: gravidezes decorrentes de violência sexual ou nos casos de anencefalia fetal. O projeto, portanto, poderá ser apreciado pelo Congresso e, sendo aprovado, criminalizará meninas e mulheres vítimas de estupros, assim como imporá maior sofrimento a mulheres com gestações de fetos que não têm chances reais de sobreviver fora do útero.
Casos como o de Mãe Bernadete Pacífico, brutalmente assassinada em 17 de agosto de 2023, em Simões Filho, na Bahia, escancaram a face mais cruel do racismo institucional e da negligência com os direitos humanos no Brasil. Liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, Mãe Bernadete era uma mãe e mulher preta que lutava incansavelmente contra a violência policial, o racismo e a grilagem de terras que ameaçavam sua comunidade. Sua voz era um símbolo de força e resistência para milhares de mulheres negras que enfrentam, todos os dias, o luto imposto por uma política de segurança pública que privilegia o extermínio das populações negras e periféricas. O mesmo Estado que já havia tirado a vida de seu filho, Flávio Pacífico, conhecido como Binho do Quilombo, também a executou com 12 tiros, silenciando-a fisicamente, mas não simbolicamente.
A ONU (Organização das Nações Unidas), a Defensoria Pública da Bahia e outros organismos se comprometeram a investigar o crime, mas o histórico de impunidade em casos semelhantes deixa a sociedade brasileira em alerta. Assim como Marielle Franco, Mãe Bernadete tornou-se um ícone da resistência e um alerta sobre os riscos enfrentados por aqueles que ousam desafiar interesses empresariais e criminosos que exploram terras e comunidades. Essa violência não é isolada; é o reflexo de uma política que prioriza o lucro em detrimento da vida, da terra e da dignidade humana. A morte de Bernadete nos obriga a encarar a profunda crise de direitos humanos no Brasil, onde lideranças negras, quilombolas e periféricas continuam a ser alvos de um sistema que perpetua o ciclo de desigualdade, repressão e silenciamento.
O caso de Geovanna Nogueira, de 11 anos, assassinada pela polícia em Salvador, é um exemplo da brutalidade do Estado contra a população negra e periférica. Em janeiro de 2018, Geovanna foi baleada na porta de sua casa, enquanto abria o portão para receber o avô, durante uma operação policial no bairro Jardim Santo Inácio. O policial Nildson Jorge Sousa França, acusado de disparar o tiro fatal, foi julgado seis anos depois, mas inocentado, gerando indignação, já que a versão oficial falhou em esclarecer as circunstâncias da morte da criança. A defesa alegou falta de provas conclusivas.
O caso é acompanhado pelo projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, que oferece apoio a familiares de vítimas da violência do Estado. A morte de Geovanna ilustra a truculência e impunidade das forças policiais, que, em nome de operações de segurança, seguem perpetuando a violência contra a juventude negra, sem consequências.
E o que acontece quando a justiça falha? Quando os culpados são absolvidos e as vítimas não recebem sequer uma reparação simbólica? A luta de Mãe Bernadete, Maria Ângela (mãe de Geovanna) e de tantas mães e pais que enterram seus filhos não é apenas por justiça; é por um país que realmente respeite e valorize a vida da população negra. É por um futuro onde direitos humanos não sejam uma promessa vazia, mas uma realidade concreta.
A tragédia de Mãe Bernadete, assassinada em 2023, e o assassinato de Ágatha Félix, de 8 anos, não são casos isolados. Eles fazem parte de uma longa lista de vítimas da violência estrutural e do genocídio promovido pelo Estado brasileiro. A execução de Marielle Franco, em 2018, permanece um dos maiores símbolos da violência contra mulheres negras e lideranças políticas no país, com os mandantes do crime ainda impunes. Esses episódios representam um sistema de opressão que, ao longo dos anos, tem silenciado e exterminado aqueles que lutam contra as desigualdades.
Recentemente, o feminicídio da professora Elitânia de Souza, ocorrido em 2023, trouxe à tona a falência do sistema de proteção às mulheres no Brasil. Elitânia foi morta a tiros pelo ex-namorado, mesmo com medidas protetivas em vigor. Sua morte evidencia as lacunas no enfrentamento da violência doméstica, especialmente para mulheres negras e periféricas, que continuam a ser vítimas de um ciclo de impunidade e negligência por parte das autoridades. Isso fica evidente quando, na mesma cidade baiana, a jovem Thainara desapareceu após ter sido vista com seu ex-companheiro contra quem tinha uma medida protetiva em vigor, mas nenhum equipamento ou agente do Estado assegurando seu cumprimento.
Essa falência no sistema de proteção se reflete também nas tragédias envolvendo crianças e jovens, como o caso de Gabriel Silva, uma criança de 10 anos, morto durante uma ação policial em Lauro de Freitas, Bahia, em 2023. A morte do menino Gabriel, que foi baleado enquanto brincava com dois colegas na porta de casa, expõe a brutalidade das forças de segurança e a ausência de um sistema que deveria proteger, mas que, na prática, expõe os mais vulneráveis, como crianças e adolescentes, à violência. Assim como no caso de Elitânia, onde a falta de fiscalização e de medidas protetivas eficazes culminaram em uma tragédia, o assassinato de Gabriel também revela a falência do Estado em garantir a segurança e os direitos básicos de sua população, em especial das vítimas de violência institucional e sistêmica.
Esses casos, que vão desde a morte de lideranças políticas até a brutalidade contra mulheres e crianças, refletem um padrão de violência que permeia o Brasil, impactando principalmente as populações negras e periféricas. São milhares de vidas perdidas que, assim como Marielle, Mãe Bernadete, Elitânia e Yan, se tornam símbolos de uma luta constante por justiça e dignidade. Enquanto líderes como Mãe Bernadete se tornam mártires de um sistema desigual, a sociedade segue em sua busca por uma mudança real: uma mudança que traga não apenas justiça, mas também a garantia de que todas as vidas, especialmente as negras, sejam tratadas com respeito e dignidade. A luta por um Brasil justo e humano, mais do que nunca, é uma luta pela vida.
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