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“A intolerância religiosa é uma ação do racismo, e sabemos que racismo é crime”, afirma mãe Bernadete de Oxóssi, vítima e autora de processo contra a PM-BA

Por Redação Odara | Adriane Rocha

O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, celebrado neste 21 de janeiro, é um marco de reflexão e resistência em memória a Mãe Gilda de Ogum, do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum – localizado no bairro de Itapuã, em Salvador (BA). Mãe Gilda  faleceu em decorrência de ataques de intolerância religiosa feitos pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) nas páginas da Folha Universal. Apesar da data oficial no Brasil, os adeptos das religiões de matriz africana no Brasil ainda enfrentam uma realidade cruel de racismo religioso e violência institucional nos diversos setores da sociedade, como é o caso de Mãe Bernadete de Oxóssi.

Iyá Bernadete de Oxóssi, liderança religiosa da cidade de Ilhéus (BA), viveu um episódio de violência e tortura praticado pela Polícia Militar da Bahia (PM-BA) em 23 de outubro de 2010. Mãe Bernadete estava em sua residência, um espaço sagrado de culto e convivência para a sua comunidade em Ilhéus, quando PMs invadiram sua casa sem mandado judicial, durante uma operação de fiscalização sem respaldo legal. Ao questionar a legalidade da ação, Mãe Bernadete foi agredida fisicamente e humilhada. Durante a ação, a líder religiosa teve o corpo tomado pelo Orixá Oxóssi, ainda assim, a polícia, em um ato de brutalidade, a algemou, arrastou pelos cabelos e a jogou em um formigueiro, o que causou marcas de mordidas nas suas pernas. Além dos danos físicos, a violência psicológica e emocional que Mãe Bernadete sofreu foi imensa, especialmente pelo fato de ser agredida enquanto estava incorporada. “Pegaram Oxóssi, puxaram os cabelos, jogaram ele em cima de um formigueiro, pisaram no pescoço e disseram: ‘só assim para o demônio sair”, comentou a Iyá.

O grito de Mãe Bernadete ecoa como um pedido urgente de mudança: “Precisamos de gestores que tenham responsabilidades com o povo que, em sua maioria, aqui na Bahia, são vítimas de um sistema que deveria trazer segurança e não violência contra a população. A intolerância religiosa é uma ação do racismo, e sabemos que racismo é crime. Quem cometer precisa ser punido.”

O caso de Mãe Bernadete reflete um problema sistêmico, onde o Estado, em vez de proteger, agride e perpetua a violência. Na Bahia, o histórico de ataques a líderes religiosos é longo e dramático. Além de Mãe Bernadete de Oxóssi, temos inúmeros casos de racismo religioso no estado, como o caso de Mãe Jaciara de Oxum, do terreiro Axé Abassa de Ogum, que sofreu racismo no Centro Histórico de Salvador em Novembro de 2024. Em um episódio semelhante a   Ilorixá Mãe Iara D’Oxum que foi  vítima de intolerância religiosa em um salão de beleza dentro de um shopping no bairro de São Cristóvão,  e o recente caso da Egbomi Lindinalva Barbosa, do Terreiro do Cobre, em Salvador (BA), durante sua passagem pelo Aeroporto de Fortaleza (CE). A violência recorrente contra diversas lideranças religiosas de axé na Bahia são parte de um sistema que precisa ser desmantelado.

O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa é um lembrete da crueldade do racismo para os adeptos das religiões de matriz africana. A ausência ou morosidade de justiça em casos como o de Mãe Bernadete de Oxóssi e Mãe Gilda de Ogum apenas confirmam que enquanto o combate aos crimes de racismo e intolerância religiosa não forem encarados como responsabilidade do Estado, a violência continuará a ser parte do cotidiano de quem luta para preservar sua fé e sua cultura.

Mãe Bernadete acredita que a luta por respeito religioso exige ações concretas e imediatas: responsabilização dos agressores religiosos, com punição rigorosa, sobretudo quando os crimes são cometidos por agentes do Estado. 

“Fazer com que paguem por isso, seja com ações civis indenizatórias e também com pedidos de desculpas publicamente. Além disso, é urgente que o Estado assuma sua responsabilidade e proteja as comunidades de matriz africana e quilombolas, garantindo políticas públicas que respeitem os direitos e a segurança desses povos.”, afirma a líder religiosa.

Racismo religioso como extensão do racismo sistêmico 

Lindinalva Barbosa, ativista do Movimento Negro e de Mulheres Negras, Egbomi, professora e Mestra em Estudos de Linguagens, destaca a urgência de enfrentar o racismo religioso no Brasil. Ela aponta que, apesar de a população negra ser maioria no país, ainda enfrenta vulnerabilidades extremas devido à violência e violação de direitos, alimentadas por um sistema racista:

“Ainda temos muito a conquistar e muito a exigir do Estado em relação ao racismo e ao racismo religioso. O racismo religioso é um desdobramento do racismo estrutural, que continua tentando nos invisibilizar como população negra. Isso se reflete em diversas situações de violação de direitos, como o caso de crianças de religiões de matriz africana sendo impedidas de frequentar a escola por usarem suas roupas religiosas.”

Ela também compartilha sua própria experiência de intolerância religiosa, ao ser impedida de fazer uma oferenda em área pública em Ondina, Salvador, por policiais. Lindinalva denuncia o uso do poder público para discriminar e agredir as práticas religiosas de matriz africana:

“Já fui impedida de fazer uma oferenda em um espaço público, com a presença de policiais. Esse é um exemplo claro de como o racismo religioso se institucionaliza. Polícias evangélicas utilizam seu poder para coibir, agredir e praticar racismo, algo que o Estado precisa investigar e punir com urgência.”

Para Lindinalva, o Estado deve garantir os direitos dos cidadãos, especialmente das comunidades de matriz africana, criando políticas públicas que respeitem a liberdade religiosa e cultural. Ela defende a criação de mecanismos eficazes para garantir a segurança e os direitos dessas comunidades:

“O Estado precisa ouvir mais a população, criar políticas públicas que garantam o direito à vida e à liberdade religiosa, e não ser omisso diante da intolerância religiosa. A sociedade brasileira só será verdadeiramente livre e justa quando o racismo for enfrentado de forma estruturante.”

Ebós Coletivos como forma de combate à intolerância religiosa

A Frente Nacional Makota Valdina, ao longo de seus quase seis anos de existência, vem realizando o Ebó Coletivo como uma ferramenta no combate à intolerância religiosa e a todas as formas de racismo. Reafirmando o legado da educadora, líder religiosa e ambientalista Makota Valdina, que dedicou sua vida à consolidação dos direitos fundamentais das comunidades negras e à preservação da cultura, a FNMV promove ações voltadas para o bem viver e a valorização das contribuições sociais, culturais, políticas e econômicas das comunidades negras.

Nesse contexto, o Ebó Coletivo também se tornou um símbolo de resistência e mobilização. Como destacou a advogada da Frente Makota Valdina, Kota Gandaleci: “O Ebó Coletivo é essa expressividade política da FNMV, que agrega e mobiliza as comunidades de terreiro e toda a sociedade na defesa da igualdade racial e religiosa. Nosso último Ebó Coletivo ocorreu no dia 9 de dezembro de 2024. Intitulamos de ‘Ebó Coletivo: Reparação por Oxóssi e por outros Caçadores de Justiça!’ Foi um verdadeiro ajô do povo de santo, em especial dos filhos e filhas do Ilê Axé Odé Omí Ewá que, por amor a Oxóssi e a sua matriarca, Yá Bernadete Souza, clamaram por justiça e respeito à diversidade religiosa em frente ao Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA), juntamente com a FNMV e outros ativistas.”

O respeito às religiões de matriz africana e às suas diversas formas de existir e resistir no Brasil é fruto de uma luta árdua e contínua. Essa resistência se expressa não apenas na organização de atos como o Ebó Coletivo, mas também na atuação direta das comunidades de terreiro na construção de políticas públicas e no enfrentamento do ódio religioso.

O caso de Mãe Bernadete, por exemplo, revela com clareza o racismo estrutural e religioso que atravessa o Poder Judiciário brasileiro. As diversas violências  são atravessadas por múltiplos fatores – religião, gênero e território –, pois estamos falando de mulheres negras que ousam questionar as arbitrariedades do Estado: “Ainda existe muito trabalho a ser feito para a eliminação do racismo e a construção da liberdade religiosa. Enquanto não conseguirmos a sociedade que queremos, continuaremos na luta”, reforça Kota Gandaleci.

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