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OpiniãoOdara – 22 anos de Lei 10.639/03, o PNE, o PNEERQ e as Encruzilhadas de lutas das populações negras por acesso à Educação

Nas diversas referências de sabedorias afro-brasileiras, as encruzilhadas são pontos de partida e de chegada. É onde os caminhos se entrecruzam no tempo-espaço e contaminam-se para formar novos rumos. Para Lêda Maria Martins, importante referência em pesquisa das artes e manifestações culturais negras brasileiras, é através destes saberes que se tece o tecido da identidade afrobrasileira, entre discursos, corpos, territórios, multiplicidades que convergem e também se disseminam.

Pensando no contexto atual da educação, onde os caminhos de lutas das populações negras vêm de passos ancestrais, propomos um diálogo a partir da encruzilhada para uma análise acerca das três principais políticas públicas que convergem neste tempo-agora, para pensar educação e relações étnico-raciais no Brasil. São 22 anos da Lei 10.639/03, é tempo de construção, discussão e aprovação de um novo Plano Nacional de Educação(PNE) e de compreensão da dimensão e alcance da recém lançada Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (PNEERQ).

Em mais de duas décadas de existência, a lei 10.639, que institui o ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena (esta última desde 2008), ainda encontra desafios para sua implementação. Uma pesquisa recente realizada pelo Instituto Alana e Geledés – Instituto da Mulher Negra, aponta que de 1.187 Secretarias Municipais de Educação do país que participaram do levantamento, 53% realizam ações para implementação da Lei 10.639/03 de forma menos estruturada e esporádica, geralmente atreladas a projetos isolados ou em datas comemorativas, como o mês da Consciência Negra, celebrado em novembro.

Essas ações pontuais, por vezes são propostas por professoras (es) negras (os) que possuem um compromisso ético e político com o fazer educacional, mas que rotineiramente esbarram na institucionalidade que não se move em direção à mudança estrutural e curricular, conforme orienta a o artigo 26-A da Lei 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), bem como as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER).

Essa realidade expõe o racismo que permeia as políticas educacionais no Brasil. Quando a execução de uma política pública depende, em grande parte, da dedicação individual de educadoras e educadores negros, que carregam o peso de um compromisso político e por vezes a solidão no fazer educacional, fica evidente o descaso do Estado. A ausência de uma coordenação efetiva e de financiamento adequado transforma o que deveria ser uma política de reparação histórica em uma ação facultativa, relegada ao esforço isolado de quem já luta contra inúmeras barreiras.

Além disso, a pesquisa aponta uma realidade já discutida entre as organizações que compõem o Grupo de Trabalho de Educação para as Relações Étnico Raciais da Rede de Mulheres Negras do Nordeste: a falta de cooperação técnica e financeira por parte do governo federal e dos governos estaduais. O Instituto Odara, em sua atuação, reforça que a educação é um espaço estratégico para a luta antirracista e a construção de um projeto de Bem Viver. No entanto, como alcançar esse ideal quando a maioria das secretarias municipais sequer dispõe de recursos financeiros ou equipes específicas para implementar a Lei 10.639/03? Apenas 8% das secretarias municipais que responderam à pesquisa têm dotação orçamentária para viabilizar essa política, e 5% possuem áreas específicas para cuidar da educação para as relações étnico-raciais. Esses números traduzem a negligência de um Estado que não prioriza a vida e o futuro das populações negras.

Em 2024, a Abayomi – Coletiva de Mulheres Negras na Paraíba lançou o dossiê “20 anos da lei 10.639/03: a Paraíba fez a sua lição?” convocando os Conselhos de Educação, gestoras/es, professoras/es, e parlamentares a analisar o processo de implementação da lei no estado, convergindo para um cenário de incidência política na educação em todo o nordeste, fortalecido pelas ações do Edital Maria Elza dos Santos – Movimento de Mulheres Negras do Nordeste pelo Direito à Educação.

O dossiê aponta experiências exitosas na execução do projeto Imo Dudu: Letramento Racial como estratégia de fortalecimento da luta por uma Educação Inclusiva, e consolida a importância das organizações de mulheres negras do Nordeste enquanto agentes que executam a lei através da formação de educadoras/es e monitoram o processo de implementação nas escolas e universidades, fortalecendo também os processos de denúncia ao racismo, ações essas que deveriam estar sendo fomentadas pelo estado, afinal, a ausência de uma capacidade estatal voltada para uma coordenação federativa de aplicação e monitoramento da Educação para as Relações Étnico-Raciais – ERER, implica diretamente no não cumprimento da lei, e no tom facultativo que gestoras/es e profissionais da educação em geral assumem diante do planejamento de suas ações curriculares.

Em maio de 2024, o Ministério da Educação – MEC através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi) lançou a Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (PNEERQ). A política é estruturada em sete eixos e apresenta avanços no que tange os desafios de implementação de uma educação que assuma o compromisso de enfrentamento ao racismo. Dentre eles, destacamos o Eixo 1, que prevê a transferência de recursos e a criação de uma uma rede de governança e coordenação federativa para apoiar as redes de ensino, o Eixo 3, com formação de gestores escolares e professores em educação básica para as relações étnico-raciais e o Eixo 5, com a estruturação de protocolos de prevenção e resposta ao racismo.

Em seu Eixo 2, a Política institui a criação de um painel de diagnóstico de Equidade Étnico-Racial nas redes estaduais e municipais. Segundo o painel, 100% das Redes Estaduais no país já aderiram à Política, sendo o maior desafio alcançar as Redes Municipais com 97,8%. Ao analisar os dados apresentados pelo painel, são gritantes as divergências entre as estruturas estaduais e municipais. Olhando para o estado da Bahia, apenas 13% das secretarias municipais adotam alguma forma de transferência de recurso para as escolas considerando o perfil socioeconômico dos estudantes; apenas 20% têm indicadores de monitoramento e implementação da lei 10.639/03 e da lei 11.645/08; apenas 31,76% das secretarias municipais tem equipe específica responsável pela gestão da Educação Escolar Quilombola.

Considerando o índice geral de ERER, onde a média nacional é de 47,7 na Rede Estadual e 27,1 na Rede Municipal, a Bahia ocupa a 17ª e a 9ª posição, respectivamente, dados que são inaceitáveis para um estado de maioria negra, que se apropria de nosso discurso e conclama a negritude em espaços políticos e culturais exaltando as raízes afrobrasileiras, mas que parece não atentar-se com a execução da Lei, principalmente nas escolas municipais, que por vezes são os primeiros espaços de sociabilidade para as crianças e acabam reproduzindo estereótipos racistas, em uma cadeia que inicia nas ausências de formação continuada e de equipe especializada na gestão, e na interferência direta na produção de violências no corpo e imaginário de infâncias negras.

No tempo-agora em que entrecruzam os caminhos de 22 anos de Lei 10.639/03 e a criação da PNEERQ, acrescentamos mais uma rota para completar esta encruza, com o processo de construção do novo Plano Nacional de Educação (2024-2034). O Plano anterior encerra sua década de execução sem cumprir 90% de suas metas. São esses objetivos que influenciam diretamente em ações como a ampliação das unidades de ensino e número de vagas, estrutura adequada, qualidade da alimentação escolar, formação inicial e continuada, além do pagamento do piso salarial a educadoras (es).

O projeto de lei PL 2614-2024 já aguarda tramitação no Congresso, mas apresenta um texto enxuto e com diversas ausências que foram sinalizadas como inegociáveis na Conferência Nacional de Educação – CONAE, realizada em janeiro de 2024, em Brasília. A educação para as relações étnico-raciais não aparece como um eixo estruturante do Plano, ou seja, as metas e objetivos traçados não reconhecem em seu todo as desigualdades raciais que retratam este país. Além disso, não observamos objetivos que se comprometam com o enfrentamento às violências de gênero, com a aplicação da Lei Maria da Penha nas Escolas enquanto um compromisso nacional, já assegurada pela Lei 14.164/2021, que alterou a Lei 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), determinando a inclusão de conteúdos sobre a prevenção da violência contra a mulher nos currículos da Educação Básica.

Para nós, do Odara, que no segundo semestre de 2024 acompanhamos de perto a construção de audiências públicas de diversas organizações de mulheres negras no Nordeste com o intuito de garantir a aplicação da Lei 10.639/03 e a capilarização a nível regional dos debates em torno da construção do novo PNE, essa efetivação faz parte de um projeto político que não perpetue o racismo nos currículos escolares. Não basta reconhecer a importância da educação antirracista; é preciso garantir que ela seja central nas prioridades do Estado brasileiro. Isso exige vontade política, financiamento robusto e mecanismos de monitoramento e avaliação. É inaceitável que após 22 anos ainda estejamos discutindo o caráter facultativo de uma política que deveria ser obrigatória e estruturante.

A encruzilhada se confunde com os nossos horizontes e ações diante da estrada que nos faz questionar: Qual a educação que queremos para a próxima década?Neste aniversário da Lei 10.639/03, é urgente reafirmar que a educação não é um favor, mas um direito. E, como direito, ela deve ser garantida de forma plena e universal. As populações negras não podem continuar sendo tratadas como nota de rodapé nas prioridades do Estado.

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