Acolhimento e fortalecimento político marcam encontro de mães de vítimas do Estado promovido pelo Instituto Odara

A atividade integra a agenda coletiva da 11ª edição do Julho das Pretas – Mulheres Negras em Marcha por Reparação e Bem Viver

Redação Odara

Entre os dias 7 e 9 de julho, o Odara – Instituto da Mulher Negra realizou o Encontro de Autocuidado e Articulação Política de Mães de Vítimas do Estado. Organizada através do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, a atividade aconteceu em Guarajuba, na cidade de Camaçari (BA) e contou com a participação de 13 mães – e um pai – da Bahia e de outros estados do Nordeste.

Durante três dias, elas estiveram reunidas com a equipe do projeto, participando de diálogos e atividades voltadas para práticas de autocuidado, cuidado coletivo e organização política. Foram compartilhadas histórias, choros, risos e experiências de articulação política que vem sendo protagonizadas por essas mães no âmbito da luta por justiça para as vítimas. Algumas delas convivem com essa realidade há mais de 10 anos e falaram ao grupo sobre suas estratégias para resistir e continuar lutando.

O Encontro com foco no autocuidado foi pensado após o Encontro de Mulheres Negras por um Novo Modelo de Segurança Pública, também realizado pelo Instituto Odara, em julho de 2022. A ideia é criar um espaço de acolhimento para o diálogo e fortalecimento político para a luta. “Percebemos que precisávamos de um tempo para se encontrar, se conhecer, conversar, dar risada e trocar afeto. Isso são ferramentas importantes e fundamentais pra gente manter a cabeça em pé e organizada”, explicou Naiara Leite, coordenadora executiva do Instituto Odara.

Gabriela Ashanti, coordenadora do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, explica que ao recontar as situações de violência, muitas feridas são reabertas para essas mães e é daí que surge a preocupação em propor uma abordagem diferenciada para estabelecer esse diálogo. “Nós, enquanto uma organização de mulheres negras, precisávamos acionar essas mulheres de forma que fosse possível proporcionar cuidado e acolhimento e não tratando-as como fosse só mais um caso”, explica.

Retirando a dor da centralidade da narrativa

Para que as mães pudessem contar sobre as histórias dos seus filhos e filhas vitimados pelo Estado, foi realizada uma dinâmica com facilitação das psicólogas Victória Santana e Shirley Vasconcelos, da Afya Psicologia, clínica que atua há 10 anos com atendimento voltado às questões de saúde mental da população negra e aos efeitos psicossociais causados pelo racismo. 

O momento foi iniciado com uma dinâmica sobre as histórias dos nomes de cada pessoa presente, exercícios guiados de respiração e o preenchimento de um quadro nomeado de “Curtograma”, onde as mães falaram sobre atividades do dia a dia que gostam ou não de fazer e com qual frequência realizam essas atividades. Segundo Shirley, a proposta ali era “pensar em saúde mental através de outras vias, porque a dor nós já conhecemos”. 

Momento de dinâmica proposta pela Afya Psicologia | Foto: Jamile Novaes

Ao falar sobre como se sentia após os exercícios de respiração, Tatiane Assunção, cearense mãe de vítima do Estado, comentou sobre as perdas com as quais precisou lidar durante toda a sua vida e afirmou: “A gente vive 24 horas no automático e esquece de respirar, mas chega uma hora que o corpo pede isso”.

Já Joelma Andrade, de Pernambuco, comentou sobre sua rotina com o Centro Comunitário Mário Andrade – criado em homenagem a Mário Andrade, seu filho de 14 anos que foi morto pela Polícia Militar – e sobre as inúmeras demandas que recaem sobre ela. “A gente cuida de tanta gente, mas quem cuida da gente?”, questionou. Ela contou ainda que, embora seja considerada uma “guerreira” em sua comunidade, sente como se vivesse uma vida de mentira, onde precisa fingir ser forte o tempo inteiro. Outras mães se sentiram contempladas pelo comentário

Mirtes Renata, Joelma Andrade e Tatiane Assunção | Foto: Jamile Novaes

Ao falar sobre seus gostos, as mães compartilharam com o grupo os hábitos que foram abandonados após a perda de suas filhas e filhos. Atividades simples como ir à praia, à academia e outras coisas comuns do dia a dia, são possibilidades que foram arrancadas não apenas das crianças e jovens que perderam suas vidas, mas também dos seus pais, por conta do trauma causado pelas violências que vivenciaram.

Robenilton Barreto, pai da menina Mirella Barreto, morta pela Polícia Militar da Bahia na laje de casa quando tinha apenas seis anos de idade, compartilhou que ir à praia era um dos passeios que mais gostava de fazer em família, mas que ao tentar fazer isso após a morte da sua pequena, sofreu uma crise de pânico e voltou imediatamente para a sua casa. “Na minha cabeça, a qualquer momento ia aparecer alguém ali para me fazer mal”, explicou. Ele comentou também que tem dificuldade para frequentar bares e shoppings e que toma medicação para ajudar a lidar com isso.

“Para nós, estar com as mães e o pai deste projeto, reafirmou que o enfrentamento ao genocídio demanda espaços de promoção de saúde mental, fortalecimento de vínculos e valorização da potência dessas famílias”, concluíram as psicólogas ao final da dinâmica.

Em outro momento, foram realizadas sessões de aromaterapia e massoterapia, com facilitação da terapeuta Adeline Sousa, que ajudou as mães a identificarem e tratarem seus pontos de tensão física.

Reconhecendo caminhadas e tecendo caminhos

Após todos os diálogos e reflexões, o Encontro se encerrou com a dinâmica “Rios Memórias”, proposta por Luciana Silveira, ativista do Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap) para avaliar tudo o que foi discutido e pensar em perspectivas e caminhos para dar continuidade à luta por justiça.

A partir de questionamentos “o que você  sente a partir desta imersão no autocuidado e cuidado?”, “o que potencializa a nossa união?” e “o que fica de mais importante?”, os momentos vividos durante o final de semana foram revisitados durante o preenchimento do painel de memórias. Palavras como fortalecimento, solidariedade, união, coletividade, força, acolhimento e fortalecimento foram as mais citadas neste momento de avaliação.

Atividade de avaliação do encontro | Foto: Jamile Novaes

“Dividimos a nossa dor, mas também trocamos experiências e saímos mais fortalecidas. Espero que nós, mães de vítimas do Estado aqui no Nordeste, possamos nos unir para que um dia a gente viva uma era diferente”, disse Nadijane Macedo, mãe de vítima do Estado e articuladora do projeto Minha Mãe Não Dorme.

Mirtes Renata, mãe do menino Miguel Otávio, de cinco anos, que caiu do 9º andar após ser abandonado no elevador por Sari Corte-Real, relatou que o Encontro foi um espaço enriquecedor, onde pôde ter várias trocas, sorrir e chorar sem ser julgada. “A gente acaba se espelhando umas nas outras. Nossa luta é muito pesada, mas aqui podemos tratar desse tema de forma mais leve”, afirmou.

Mães e equipe do projeto durante café da manhã | Foto: Jamile Novaes

Gabriela Ashanti destacou que o Encontro foi um momento importante de integração e criação de laços entre essas mães, o que possibilitará um fortalecimento da articulação política entre elas. Ao final das atividades, ficou combinado a criação de um grupo com os familiares de vítimas do Estado, para marcar encontros virtuais para discussão e mobilização de ações, audiências e júris dos casos. “Vamos criar uma agenda periódica para manter toda essa força que foi mobilizada”, afirma Gabriela.

A expectativa é que o Encontro de Autocuidado e Articulação Política de Mães de Vítimas do Estado também se torne uma agenda contínua e que agregue outros familiares que vivem situações similares em diversos estados do Nordeste.

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