Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras e Rede de Mulheres Negras do Nordeste anunciam a 5ª edição do Março de Lutas

Edição deste ano traz o tema da Reparação como mote central de reflexões

Substantivo feminino, reparação significa, de acordo com o dicionário, consertar, restaurar, reconstruir algo. Movidas por essa perspectiva, a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e a Rede de Mulheres Negras do Nordeste trazem como tema da 5ª edição do Março de Lutas o mote: “Reparação no Brasil: o que as mulheres negras estão pensando?”. 

Mulheres negras são o maior grupo demográfico do país e tê-las ocupando os piores rankings sociais é o retrato de um Brasil que ainda insiste em não querer discutir os efeitos do racismo enquanto motor da nação, Estado e sociedade. Somos nós, mulheres negras, que experienciamos de frente uma realidade de violências interseccionadas que nos lançam a uma conjuntura de múltiplas opressões. 

Este cenário dialoga diretamente com os impactos deixados por um passado colonial que ainda insiste em se fazer presente. Em 523 de Brasil, vivemos um período de 388 anos de escravidão e somente 135 anos de abolição inconclusa. Discutir a questão social do Brasil e não jogar luzes sobre o longo período escravista é negar a história que nos ajuda a entender a realidade de desigualdades e opressões contra a população negra em geral, e contra as mulheres negras em particular – visto que assim como o racismo, o sexismo e as violências de gênero são igualmente fruto do colonialismo.

Como bem nos alerta Aimé Césaire: “A Europa é indefensável”. Durante séculos o continente europeu enriqueceu a partir da morte e exploração dos povos africanos e indígenas, negando a estes povos inclusive o direito de se perpetuarem como tal, criminalizando nossas culturas não brancas, e impondo o eurocentrismo como ideal de civilidade e sofisticação a partir do sequestro, roubo, escravização, estupro e morte de seres humanos em massa. 

Buscando contornar essas sequelas, alguns países pelo mundo têm trabalhado políticas de reparação que visam combater os impactos do período escravocrata, como Barbados, no Caribe Oriental. O país, na esteira do debate sobre a temática, criou a Força-Tarefa Nacional de Barbados sobre Reparações. Já nos Estados Unidos, a universidade Harvard criou um fundo para financiar projetos que abordem temáticas a respeito da escravidão dos séculos 17 ao 19 nos EUA, com o intuito de reparar os efeitos ocasionados pela escravidão no país, levando em consideração que, no passado, a própria universidade defendeu teses racistas. 

Nesse sentido, é importante expandir o diálogo sobre políticas de reparação no Brasil, último país do mundo a abolir o regime escravagista. Uma abolição falsa, incompleta, sem oferecer meios para pessoas negras libertas construírem vida digna, adotando na ciência e na legislação que imperou em quase todo século 20, teses eugenistas que defendiam e acreditavam que não chegaríamos vivos até aqui, e hoje, o Brasil seria um país branco.

O Brasil que criou e perpetuou em toda América Latina o mito da democracia racial para “abafar” seus quase 4 séculos de escravidão, não contava que mesmo com toda violência, exclusão e genocídio que vivenciamos depois do inevitável 13 de maio de 1888, em apenas 135 anos seríamos nós, pessoas negras, 56% da população.

Este ano, a Constituição Federal, de 1988, alcança seu 35º aniversário, este que é considerado um documento que marca um período de retomada da democracia no Brasil. Democracia para quem? Pois, como bem nos lembra Lélia Gonzalez, no livro “Por um feminismo afro-latino-americano” – publicado em 2020 -, não podemos falar em redemocratização brasileira “porque para nós negros (…) para nós mulheres jamais houve democracia neste país”.

Nós, mulheres negras, vivemos a contradição de sermos o maior grupo demográfico e o mais abastado dos direitos fundamentais no Brasil. Somos as que menos ocupam empregos formais: No segundo trimestre do ano passado, a taxa nacional de desemprego correspondeu a 9,3%; já entre as mulheres negras o percentual foi de 13,9%, o que aponta uma disparidade quando comparado a outros grupos. Os maiores níveis de desemprego estão no Nordeste e Norte – regiões mais negras do país. 

Mulheres negras também são as principais alvos de feminicídio, correspondendo a 67% dos casos notificados em 2020 no Brasil. Com a volta do país ao mapa da fome, marca atingida durante o período de pandemia de Covid-19 sob a gestão do governo negacionista e neofascista de Jair Bolsonaro, foram as mulheres negras as mais afetadas

No campo da segurança pública, quando não somos nós o alvo direto da bala fruto da ação ou negligência do Estado, somos as vítimas indiretas por sermos as mães, tias, irmãs, primas e companheiras dos homens negros jovens, vítimas preferenciais da polícia no Brasil.

Sendo assim, o Março de Lutas de 2023, em sua 5ª edição, vem negritar que o Estado e a sociedade brasileira possuem uma dívida histórica com a população negra, e em especial com mulheres negras. Em meio à complexidade da temática, é necessário ir mais além do pouco já conquistado e abrir o leque de possibilidades do que ainda é necessário ser feito. É importante destacar, por exemplo, a importância das cotas raciais nas universidades, lei que completou 10 anos de sua implementação, em 2022, bem como as cotas nos concursos públicos – regra estabelecida em 2014 – mas entender que isso não é suficiente em um país de desigualdades estruturais, que tem como marcador social a cor da pele.

A reparação é, portanto, um caminho que necessariamente deve ser trilhado e construído juntamente com a população negra, principalmente com nós mulheres negras, grupo mais afetado pela política racista brasileira. O Brasil dos próximos anos, cujo governo se diz comprometido com a defesa dos direitos humanos, precisa dar vazão à perspectiva da reparação para criarmos, enquanto país, caminhos de emancipação que nos garantam o Bem Viver.

O mês de março marca o Dia Internacional das Mulheres (8), o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial (21), e uma série de datas importantes para as lutas de igualdade de gênero e raça, e para reforçar nossa incidência política, nós, dos Movimentos de Mulheres Negras, criamos o Março de Lutas.

Somos mulheres negras plurais: Urbanas, rurais e quilombolas; de terreiros, católicas, evangélicas; mães, periféricas, LBTs (lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis); trabalhadoras de todos os campos; de todas as gerações. Defendemos uma reparação que inclua nossa pluralidade e que não nos enxerguem pelas lentes redutoras e desumanizantes do racismo. Nesse sentido, o Março de Lutas vem, mais uma vez, reforçar a construção de uma sociedade onde mulheres negras não tenham mais como palavra de ordem o verbo “resistir”, mas que possamos com abundância “viver”. 

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