Dia Nacional da Visibilidade Trans: respeito e acolhimento para além do uso dos pronomes
Presença de Linn da Quebrada no BBB acende debates sobre o uso correto dos pronomes para se referir às pessoas trans e travestis. Mas respeito vai muito além disso!
Por Jamile Novaes e Jéssica Almeida / Redação Odara.
Com a entrada da cantora, atriz e ativista, Linn da Quebrada, no reality show Big Brother Brasil, da Rede Globo de Televisão, acendeu-se o debate sobre o respeito aos pronomes pessoais utilizados para se referir às pessoas trans e travestis.
Em poucos dias de confinamento, Linn, que é travesti e tem a palavra “ela” tatuada na testa, vivenciou diversas situações em que outros participantes do programa a chamaram de “ele” ou “o Linn”, ou questionaram as vivências de travestis, afirmando que nem todas têm tanta persistência para chegar ao lugar em que a cantora chegou.
Enquanto, dentro da casa, Linn segue corrigindo esses “equívocos” no momento em que acontecem e se desgasta com a recorrência de tais atitudes, aqui fora, grande parte do público do programa denuncia a transfobia presente nas falas, apontando que o acesso a esse tipo informação está cada dia mais amplo e que o erro já não se justifica pela falta de conhecimento.
A conquista do direito ao uso de nome social e alteração do sexo nos documentos oficiais de registro civil é recente no Brasil, e as situações enfrentadas por Linn em rede nacional demonstram que ainda se faz muito necessário lutar para que seja efetivamente garantido no dia-a-dia. A discussão tem importância e peso inegáveis. No entanto, o desrespeito expressado pelos brothers através da língua, é só a ‘ponta do iceberg’ da transfobia enfrentada pela comunidade trans.
Portanto, hoje decidimos direcionar a nossa discussão para o entendimento de como a transfobia se configura e opera de forma estrutural, atravessando os corpos de travestis e pessoas trans em praticamente todos os seus espaços de socialização, reduzindo as suas oportunidades e colocando as suas existências sob risco constante. Pretendemos assim, elucidar a urgência do tema e da necessidade de que toda a sociedade se engaje para combater a transfobia e contribuir com mais que o uso correto dos pronomes.
O dia 29 de janeiro está marcado no calendário brasileiro como o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data foi instituída em 2004, quando um grupo de ativistas transgêneros foi ao Congresso Nacional em um ato de político de protesto durante o lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, que tinha por objetivo combater o preconceito e promover o respeito à diversidade de gênero Brasil.
Desde então, a institucionalização e garantia dos direitos para a comunidade trans vêm caminhando de forma lenta, não por falta de organização, luta e resistência, mas pelo enraizamento da transfobia nas instituições brasileiras. Começando pela família, passando pelo sistema de educação, saúde, segurança pública, mercado de trabalho, dentre outros espaços, as pessoas trans lidam com uma série de violências simbólicas e físicas e experimentam a sensação de inadequação, já que tudo é pensado por uma lógica cisgênera que deslegitima as suas existências e vivências.
Caio Pinheiro, homem trans de 19 anos, conta que a parte mais difícil da sua experiência sempre foi lidar com a não aceitação por parte da própria família. Ele conta que, no ambiente escolar, muitas pessoas o olhavam estranho e se recusavam a tratá-lo no masculino. “Eu não tinha muitos amigos e me afastei daqueles que não me respeitavam. Minha estratégia era pensar que faltava pouco para tudo aquilo acabar e isso ajudava. Estava focado em terminar o Ensino Médio.”, explicou.
Apesar da falta de acolhimento na escola, Caio concluiu o Ensino Médio, e faz planos de cursar uma graduação na área administrativa financeira ou de análise de sistemas. No entanto, uma pesquisa realizada em 2017 pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil, aponta que 82% das pessoas trans abandonam o Ensino Médio entre os 14 e os 18 anos.
Thiffany Odara, mulher trans, Pedagoga e mestranda em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), acredita que para garantir o acesso e permanência da população trans na educação básica, é preciso diversificar para pensar no processo pedagógico, além do currículo, “implementar a educação da desobediência e travestilizar a educação”, através de práticas de formação de educação a partir do pensamento Freiriano e de feministas negras.
O funil se fecha ainda mais quando se trata do acesso ao Ensino Superior público e gratuito para pessoas trans. Em 2018, a Pesquisa do Perfil dos Graduandos das Instituições Federais da Andifes identificou que estudantes transexuais representam só 0,1% do total dos alunos de universidades federais no Brasil.
Estudantes trans e travestis que conseguem acessar o espaço da universidade ainda precisam lidar com a transfobia explícita ou velada e deslegitimação do conhecimento acadêmico. Thiffany conta que, durante a graduação, chegou a ser expulsa da sala de aula, ouviu falas transfóbicas de uma professora e teve dificuldades para chegar ao mestrado.
“Escutei de uma professora doutora que ‘pessoas do meu tipinho não eram pra estar na universidade’. Tentei três vezes a seleção para o mestrado. Lutei para garantir o mínimo, que foi concluir minha graduação. Isso porque eu catei reciclagem, eu me prostitui, eu não deitei pra transfobia e foi difícil”, contou.
A dificuldade financeira enfrentada por Thiffany também não é um caso isolado. A Aliança Nacional LGBTI estima que o desemprego atinge 70% da população trans no Brasil. Um levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) mostra ainda que 90% tem como principal fonte de sustento a prostituição.
As iniciativas e programas de inclusão de pessoas trans no mercado de trabalho existem, mas não são suficientes. “Quantas pessoas trans existem na empresa que você trabalha?”, questiona Caio, que é estagiário do Odara – Instituto da Mulher Negra. “Independe do que falem, conquistar a estabilidade financeira é a chave para a nossa liberdade, para ser quem a gente é, sem medo, livre, feliz e suficiente”, conclui.
É necessário pensar e construir políticas públicas que incentivem a contratação formal, segurança no local de trabalho e impeçam que tantas pessoas se exponham ao risco de sofrer discriminação, violência sexual e física que, muitas vezes, acaba sendo letal.
No entanto, seja dentro ou fora do contexto de prostituição, travestis e transexuais são alvo constante de atos violentos e assassinatos. A Antra aponta que, em 2020, 175 travestis e mulheres transexuais foram assassinadas no país. Levantando e acompanhando esses dados desde 2008, a Antra identificou um crescimento de 201% no total anual de assassinatos, o que concede ao Brasil o 1º e vergonhoso lugar no ranking de países que mais matam essa população no mundo.
Além de cobrar essas mortes do poder público e exigir providências para que o número de vítimas não continue aumentando, Thiffany acredita no “aquilombamento e na construção de redes e pontes” que possam traçar estratégias de auto proteção.
Outra condição que se associa ao preconceito transfóbico e atravessa corpos trans, é o racismo. Segundo o Transgender Europe (TGEU), travestis e mulheres trans negras (pretas e pardas) correspondem a 78% dos casos de assassinato no Brasil. “O racismo é uma tecnologia que dispõe de diversas formas e maneiras para aniquilar tudo aquilo que não está em conformidade com o que ela determina. O racismo e a transfobia andam juntos e são aliados” afirma Thiffany.
Diante de tantas problemáticas, o aquilombamento citado por Thiffany, acaba por ser uma das poucas ferramentas de apoio e cuidado com a saúde mental. Foi buscando a sua espiritualidade através do Candomblé, que a Yalorixá do terreiro Oya Matamba, em Lauro de Freitas, encontrou acolhimento, se consolidou enquanto uma liderança comunitária e, através de ações sociais, tem a oportunidade de também acolher a suas iguais.
No entanto, ela aponta que, mesmo no Candomblé, que se configura como uma religião matriarcal, esse matriarcado está atrelado à cisheteronormatividade ocidental e muitas vezes “nega aos nossos corpos o direito de estar dentro dos terreiros”. Thiffany comenta que “as pessoas vão pro candomblé à procura de algo: paz espiritual, do acolhimento, de uma benção, um direcionamento, e as pessoas trans elas precisam desses direcionamentos dos terreiros de candomblé. Porque lá fora é muito complexo e violento”.
Em meio a todo esse cenário que desfavorece, exclui e mata essa população, de que forma as pessoas cisgêneras podem contribuir com a luta (não só no Dia Nacional da Visibilidade Trans, mas durante o ano inteiro)? Caio e Thiffany nos deixam algumas pistas:
“É seguindo pessoas trans, dando apoio a elas, ouvindo o que elas têm a dizer, tratar as pessoas que se identificam como trans do jeito que se sentem bem, corrigir o outro quando estiver desrespeitando o pronome da pessoa, ou até mesmo usando o nome morto da mesma. Respeitar o direito de utilizar o banheiro do gênero com o qual ela se identifica. Evitar certas perguntas sobre coisas íntimas como: “qual sua orientação sexual?” ou “como você se relaciona com as pessoas?”. Isso é muito desrespeitoso e inconveniente. Falar mais sobre oportunidades de emprego, por exemplo: Quantas pessoas trans existem na empresa que você trabalha? Ou na sua escola/faculdade? E estudar sobre gênero e sexualidade”, explica Caio.
“Somente ouvindo essa população e efetivando, de fato, a partir da margem, que iremos reduzir os índices de assassinatos e iremos promover outras oportunidades para pessoas trans. Diante desse caos completo, é preciso pensar nessa população, que possui garantias de direitos. Precisamos valorizar a dignidade humana dessas pessoas. Mais uma vez ratificamos: iremos ocupar todos os espaços! Ainda que não abram a porta da frente, iremos arrombar, porque o movimento de travestis está lutando pelo que nos foi negado durante séculos: a dignidade humana”, conclui Thiffany.
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