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DOIS CASOS, MESMA DATA, MESMO BAIRRO, A MESMA POLÍCIA: Marcus e Wellington, jovens negros executados pela PM – BA em 24 de abril de 2020 e 2023, no Nordeste de Amaralina, em Salvador

Um estava a caminho da padaria, o outro jogava bola – quando o braço armado do Estado lhes roubou a vida e os arrancou de suas famílias e comunidades 

Não é de hoje que a juventude do Complexo do Nordeste de Amaralina, em Salvador (BA) vive sob o medo. Medo não só da criminalidade que a mídia insiste em associar automaticamente às periferias, mas também do Estado. A Polícia Militar, que deveria garantir segurança, atua como força de ocupação. Exemplo disso é o que aconteceu no dia 24 de abril, em 2020 e em 2023, dois jovens negros foram assassinados pela Polícia Militar da Bahia, a poucos quilômetros de distância um do outro, no mesmo território , o Nordeste de Amaralina, em Salvador.

Marcus Vinícius Silva Cidreira Santos, 21 anos, saiu de casa, na manhã de sexta-feira, 24 de abril de 2020, para jogar o lixo fora e comprar pão. A ocasião era especial: ele preparava o café da manhã para comemorar o primeiro mês de vida do seu filho. Foi alvejado pelas costas por uma guarnição da PM. Moradores negam qualquer confronto naquele momento do dia e há vídeos que mostram o início da operação policial. Marcus era trabalhador, músico, entregador de lanches e pai.

A investigação, conduzida tardiamente pela Polícia Civil após pressão da assessoria jurídica do Movimento Negro Unificado em parceria com o Ministério Público, caminha para o arquivamento. A fragilidade da apuração, somada à falta de diligência inicial, compromete a responsabilização dos autores. O silêncio e a negligência do Estado gritam mais alto do que qualquer protocolo de justiça.

Três anos depois, em  24 de abril de 2023, Wellington Vinícius Santos de Jesus, 20 anos, foi morto a tiros enquanto jogava bola com amigos, na Chapada do Rio Vermelho, também no Complexo do Nordeste de Amaralina. Morador do Vale das Pedrinhas, motoboy, jovem negro. A polícia chegou atirando. A versão oficial dizia que Wellington estaria armado, em um carro roubado, e que os “meliantes” iniciaram o confronto. Mas a comunidade desmente: não havia carro, nem arma. Só a história de mais um jovem tentando viver, respirar em um espaço cercado pelo medo.

Wellington foi baleado na perna, colocado numa viatura da PM com a promessa de ser levado ao hospital. Demorou quase duas horas até chegar ao Hospital Geral do Estado (HGE). Quando chegou, já estava morto. Seu corpo apresentava várias perfurações, inclusive na cabeça. O caso está sendo investigado pela Corregedoria da PM e pela 7ª Delegacia Territorial do Rio Vermelho, mas a história já é conhecida: a de mais uma execução policial sem punição.

Essas mortes escancaram a farsa das políticas públicas de segurança e da proteção à juventude negra. O direito de ir à padaria, jogar bola, trabalhar, cuidar do filho… negado. Quem pode viver sua rotina tranquilamente? Quem pode sair de casa sem medo de não voltar?

No Nordeste de Amaralina, o território fala. E o que ele diz é que existe uma política de extermínio em curso. A Polícia Militar da Bahia tem como alvo sistemático esse complexo de bairros negros e periféricos. O caso de dona Maria de Jesus da Silva, de 87 anos, que foi morta no dia 27 de março, deste ano, com um tiro de fuzil da PM enquanto almoçava em sua casa, é a síntese trágica desse descaso. Não havia confronto. O tiro atravessou a parede de sua casa e atingiu seu corpo. Ela não era suspeita, não era alvo. Era uma mulher idosa negra almoçando em paz, dentro da própria casa. E isso foi o suficiente para ser executada.

Dona Maria, mãe, avó, moradora do bairro, representa tudo o que o Estado nega: o direito básico à vida e à paz. Sua morte recente reforça que a presença da PM nesses territórios não tem como objetivo a proteção, tem como lógica o controle e a repressão. Não há neutralidade na bala disparada. Ela tem destino certo.

Diante disso, é impossível não denunciar a falência das políticas públicas deste governo que afirma se importar com nossas vidas. Um exemplo claro é o Plano Juventude Negra Viva (PJNV), lançado em agosto de 2024 com a promessa de enfrentar o extermínio da juventude negra. Passados vários meses desde o seu lançamento, nada mudou. Se o plano veio como resposta às mortes e reivindicações históricas, ele falhou. A juventude negra continua morrendo nas ruas, nas calçadas, dentro de casa, pelas mãos do próprio Estado.

Mesmo após escutas com movimentos sociais, o plano ignora as demandas centrais e se limita a discursos institucionais. É um documento que ocupa lugar, mas não cumpre papel. Se foi lançado como solução, o cenário mostra que ele não resolveu nada. Pelo contrário, a letalidade continua, os nomes mudam, mas a lógica se repete: o Estado segue matando, e agora com um plano para dizer que está tentando. Sem estrutura, sem força e, sobretudo, sem compromisso com a vida.

Num país em que a juventude negra segue sendo assassinada diariamente, o que mais o Governo Federal precisa ver para agir com seriedade? Até quando o genocídio da população negra será tratado com burocracia e discursos vazios? Não queremos estatísticas, queremos ter direito a vida. Não queremos mais planos no papel, queremos políticas vivas e aplicadas. A juventude negra quer viver. A população negra quer viver. Quer andar na rua. Jogar bola. Envelhecer com dignidade. Comprar pão. Criar seus filhos. Quer existir. 

Até quando o Estado vai continuar fingindo que se importa? Até quando a vida da juventude negra vai ser descartável? O Nordeste de Amaralina, como tantos outros territórios negros, grita por justiça. A pergunta permanece: a quem é dado o direito de viver?

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