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Julgamento por tentativa de feminicídio é marcado por manifestação em apoio à vítima e argumentações machistas por parte dos advogados do réu

José Carlos Rodrigues foi a júri popular na última quarta-feira (29), por atacar a ex-companheira, Rosa Maria Crispina, com sete facadas; Crime aconteceu há quase sete anos, no Engenho Velho de Brotas, em Salvador (BA)

Redação Odara

Não eram nem 8h da manhã do último dia 29 de março quando um grupo de ativistas do Odara – Instituto da Mulher Negra e TamoJuntas – Assessoria Multidisciplinar​ Gratuita para Mulheres se concentrava em frente ao Fórum Ruy Barbosa, no centro de Salvador (BA). Dividiam o espaço com alguns pedreiros que realizavam reparos na fachada do prédio, estudantes de direito e juristas que chegavam para mais um dia de trabalho e cristãos que aproveitavam a manhã movimentada para pregar a sua fé a quem passasse por ali.

Com cartazes e faixas que denunciavam a violência contra as mulheres e o feminicídio, o grupo estava lá com a missão de apoiar Rosa Maria Crispina (59), vítima de uma tentativa de feminicídio cometida há quase sete anos por José Carlos Rodrigues, conhecido como Zé, seu ex companheiro – no Engenho Velho de Brotas, em Salvador (BA). 

“Pela vida das mulheres” era uma das frases estampadas em uma grande faixa. Uma equipe local da TV Bandeirantes registrava a movimentação. 

Com um microfone e uma caixinha de som, Alane Reis, ativista do Instituto Odara, explicava aos transeuntes do que se tratava aquela manifestação e tentava provocar a empatia de quem podia lhe ouvir. “Assim como foi Dona Rosa, poderia ser qualquer mulher negra das nossas famílias ou qualquer uma das mulheres que me ouvem neste momento”, enfatizava.

Enquanto isso, do lado de dentro do fórum, era realizado o sorteio para definir as sete pessoas a compor o júri popular – que só é acionado quando o julgamento trata de crime doloso contra a vida, ou seja, quando há intenção e tentativa de matar a vítima. Seriam aquelas pessoas que, ao final do dia, votariam pela condenação de José Carlos pelo crime de tentativa de homicídio qualificada em feminicídio por motivo torpe (quando o crime é asqueroso, indecente) e sem chance de defesa da vítima.

Revivendo o crime

Por volta das 9h começava a audiência que se estenderia pelas próximas 11 horas. Durante toda a manhã foram ouvidas a vítima, as testemunhas convocadas pela acusação e o réu, respectivamente. Embora a defesa também tivesse o direito de convocar testemunhas, nenhuma foi apresentada para depor. 

De um lado, as perguntas eram feitas pelo promotor Cássio Marcelo de Melo Santos, representando o Ministério Público, e pela advogada Laina Crisóstomo, assistente de acusação e integrante da TamoJuntas. Do outro lado, os advogados Fabrício Penalva e Rodrigo Damasceno (assistente de defesa) faziam as perguntas de interesse da defesa.

Dona Rosa, primeira a ser ouvida, por medo, preferiu fazer o seu depoimento sem a presença do réu. Durante quase uma hora ela precisou reviver o evento mais traumático de sua vida contando sobre aquele dia 23 de maio de 2016, quando José Carlos a atacou com sete facadas na boca, braços e tórax. Ela falou também sobre o relacionamento e o término motivado por uma ameaça de agressão.

Contou que, no dia do crime, ao voltar de uma comemoração na casa de familiares, na Ilha de Itaparica, se deparou com sua casa arrombada, eletrodomésticos danificados e alguns cartões furtados. Contou que confrontou o ex-companheiro sobre a autoria do arrombamento e que estava se dirigindo à delegacia para denunciar a invasão e furto, quando foi interceptada e atacada por José Carlos.

As testemunhas, duas vizinhas e Raquel Gomes, filha de Dona Rosa, confirmaram em seus depoimentos a versão apresentada pela vítima. Uma das vizinhas, que foi testemunha ocular do crime, contou, aos prantos, ter visto Zé desferindo incontáveis golpes de faca contra a vítima, que lutava pela própria vida. Ela também presenciou o momento em que o agressor fugiu, ao ouvir que seria agredido por outras pessoas que estavam no local e, um pouco mais tarde, já na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM), ouviu o homem afirmar que era uma pena não ter conseguido matar sua ex-companheira.

Já Raquel, narrou as inúmeras vezes em que, após o término, recebia ligações de sua mãe avisando que Zé estava visitando-a em sua casa e pedindo que a filha fosse até lá para que não ficasse sozinha com o homem. “Eu nunca atendia o celular. Um dia minha mãe falou que eu só atenderia no dia que fosse para receber uma notícia ruim sobre ela”. Como previu a mãe, Raquel recebeu essa ligação de um conhecido na manhã de 23 de maio para contar que a estava levando ao Hospital Geral do Estado (HGE).

Em seguida veio o depoimento do réu que, para tentar se defender da acusação de tentativa de feminicídio, já iniciou a sua fala alegando que teria tido a mesma atitude caso a vítima fosse um homem. Ao ser perguntado se tentava reatar o relacionamento, rapidamente respondeu “sim, mas ela não dava importância” e, em seguida voltou atrás afirmando que não havia entendido a pergunta. De acordo com sua narrativa, o crime foi motivado pela revolta que sentiu ao ser acusado de arrombamento e roubo. “Eu estava na porta da minha casa e ela veio gritando ‘pega, ladrão’”, afirmou. No entanto, até esse momento, esse relato não constava em nenhum dos depoimentos prestados anteriormente. José e seus advogados também não conseguiram nenhuma testemunha que confirmasse esta versão.

Naturalização do machismo como justificativa para a violência contra mulheres

Testemunhas ouvidas, começava a fase dos debates orais entre acusação e defesa. A acusação, primeira parte a explanar sua argumentação, elucidou a qualificadura de tentativa de feminicídio, apresentando suas características e um vídeo com casos e dados sobre o crime no Brasil. “A cultura machista torna o lar um espaço de insegurança. Esse caso representa o cotidiano de dor e sofrimento vivenciado por tantas mulheres no Brasil”, afirmou, convicta, a advogada Maria Letícia, da TamoJuntas.

A defesa de Zé concentrou os seus esforços em apresentá-lo como um bom homem que cometeu um deslize porque estava emocionalmente abalado com o assassinato de um dos seus filhos, três meses antes do crime; e por ter a sua moral questionada por Rosa. “Ele é um homem do interior [da Bahia], tem os seus princípios”, chegou a afirmar o advogado Fabrício Penalva. “Não existem direitos humanos no interior?”, sussurrou alguém na platéia.

Seguindo essa linha de argumentação, os advogados alegaram que Zé teve um relacionamento anterior que durou 23 anos, no qual não havia registros de agressão, e que mesmo após o término com Rosa, ambos mantinham uma relação amigável. O objetivo da defesa ali era convencer o júri de que o crime foi praticado por violenta emoção, desqualificando a acusação de tentativa de feminicídio e tentando, ao mesmo tempo, descartar a ideia de que houve motivo torpe para, assim, conseguir a diminuição da pena.

O tom sarcástico de Fabrício Penalva ao falar sobre feminicídio e ao se referir às advogadas da TamoJuntas era perceptível e causava incômodos em algumas das pessoas que assistiam. “Agora vamos falar sobre o tal do feminicídio”, disse, com desdém, o advogado enquanto se dirigia ao júri. “Precisamos ter cuidado com isso. Então agora todo homicídio cometido contra uma mulher é um feminicídio”, questionou em outro momento. Para defender o seu argumento, o advogado chegou até a dizer que, embora a vítima tivesse afirmado que Zé sempre foi ciumento, nunca foi agressivo. “O ciúme saudável é bom. As mulheres gostam disso. Eu, por exemplo, sou ciumento”, disse.

“Esse discurso foi surreal, além de violento e desrespeitoso. É sobre o machismo estrutural e o patriarcado que todos os dias lutamos para combater. Ciúmes é a causa da morte de inúmeras mulheres no Brasil e no mundo. É sobre controle, posse, objetificação dos corpos das mulheres como propriedade dos homens.”, rebateu Laina em entrevista após o julgamento. 

Também em entrevista ao Instituto Odara, Raquel denunciou que sua mãe passou por outras situações de machismo e violência simbólica durante os sete anos em que processo vem sendo encaminhado. “Já perguntaram para ela o que motivou a fúria de Zé e também já ouvimos que algumas mulheres utilizam da Lei Maria da Penha para acabar com a vida do homem. Isso e muito mais dentro das salas de audiência”, contou.

Condenação x Segurança da vítima

As colocações do advogado, além de provocar inúmeras expressões de reprovação na platéia, não foram suficientes para convencer o júri. Ao final, ficou entendido que houve sim uma tentativa de homicídio qualificada em feminicídio por motivo torpe e sem chance de defesa da vítima. A juíza Gelzi Maria Almeida Souza ajuizou a pena em 15 anos de prisão, que foram reduzidos a 10 anos a serem cumpridos em regime fechado, por se tratar de um réu primário que confessou o crime cometido. Logo após a sentença, os advogados protocolaram um recurso para recorrer da condenação. Durante o período de julgamento do recurso, que pode durar cerca de um ano, Zé continuará em liberdade. A medida protetiva de urgência emitida em favor da vítima continuará válida durante este período.

Apesar da condenação do réu, a possibilidade de recorrer em liberdade é um ponto que ainda gera insatisfação e preocupação para as advogadas, vítima e familiares. “A grande angústia é não ter sido preso imediatamente, mas é direito a defesa e por isso ainda precisaremos aguardar um pouco para que ele cumpra a pena em regime fechado”, afirmou Laina. Ela reforça também que “enquanto isso, seguiremos tendo estratégias de segurança e caso ele tente se comunicar, ou algo do tipo, será preso imediatamente”.

Para Dona Rosa, a grande preocupação é a garantia da segurança e integridade física dela própria e de seus filhos. “Eu me sinto amedrontada, mas tenho fé em Deus que ele nunca vai saber onde eu ‘tô’ vivendo”, contou. Após o julgamento, ela já procurou a Ronda Maria da Penha para saber sobre o serviço de visitas domiciliares, mas foi informada que só quem pode fazer a solicitação é a vara onde o crime foi julgado. 

“Estamos confusas em relação a isso”, disse Raquel, que afirmou ter entrado em contato para pedir que sua mãe fosse acompanhada até o julgamento e como resposta foi informada de que a Ronda não presta esse tipo de serviço. Raquel comentou ainda que é difícil para uma mulher amedrontada correr atrás dos seus direitos. Para ela, a DEAM deveria ser o órgão responsável por orientar e encaminhar as mulheres já no momento do registro do Boletim de Ocorrência, o que não foi feito no caso de sua mãe.

Dona Rosa contou que o apoio da TamoJuntas e do Instituto Odara foi fundamental para que o caso não fosse arquivado. A outras mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, ela aconselha que denunciem e não desistam de lutar por seus direitos. “Nós [mulheres] somos seres humanos e merecemos respeito. Cabe aos homens nos respeitar”, afirma.

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