#Opinião Odara – Nem escravizadas, nem quase da família: Trabalhadoras domésticas merecem Reparação e Bem Viver

Brasil, último país a abolir a escravidão legal, tem o maior número de trabalhadoras domésticas no mundo; explodem denúncias de casos análogos à escravidão
Enquanto o Brasil insiste em fingir ser moderno e democrático, milhares de mulheres negras seguem trancadas no quartinho dos fundos da história. O trabalho doméstico é uma das heranças mais perversas da escravidão, e o que vemos hoje é a continuidade de uma estrutura que normaliza a servidão de corpos negros em nome do conforto das elites e da indiferença da classe média.
A Emenda Constitucional 72, derivada da proposta que ficou conhecida como PEC das Domésticas, foi promulgada pelo Congresso Nacional, em abril de 2013. O objetivo declarado era estender para a categoria os direitos que já existiam para os trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Em primeiro momento, a PEC foi apresentada como avanço, mas o que ela revelou foi o incômodo da casa-grande diante da ideia de acesso a direitos a quem historicamente lhes serviu a partir da mão de obra escravizada. Quando essas mulheres passaram a ter direitos como férias, FGTS e aposentadoria, a reação não foi de celebrada, mas gerou queixas e incômodo vindo que quem, no fundo, sempre quis a manutenção dos privilégios dos herdeiros dos senhores de engenho. Muitos empregadores alegaram “dificuldades” para manter as trabalhadoras com carteira assinada.
Os dados mostram que o trabalho doméstico, apesar de essencial, sempre foi sustentado por uma lógica de servidão disfarçada. Quando essas mulheres passaram a reivindicar o básico, direitos, a sociedade respondeu com resistência. Doze anos depois da PEC, a informalidade ainda é a regra. De acordo com dados da Pnad Contínua (IBGE), em dezembro de 2023, havia mais de 6 milhões de pessoas atuando no trabalho doméstico no Brasil. Dessas, apenas cerca de 1,4 milhão tinham carteira assinada. A cada 10 trabalhadoras, 7 estão na informalidade.
Uma das faces dessa precarização é o uso generalizado do regime de diárias. Apresentado como flexível, ele tem servido para desresponsabilizar o contratante e deixar a trabalhadora sem garantias. Sem férias, sem 13º, sem aposentadoria, sem proteção. A diarista vive com medo de adoecer, de não ser chamada de volta, de não conseguir pagar as contas no fim do mês. A lógica das diárias é a versão contemporânea da desvalorização: um jeito moderno de manter a instabilidade como norma.
E em meio a tudo isso, há histórias que gritam, como o caso de Sônia Maria de Jesus. Mulher negra, com uma série de deficiências, mantida por mais de 40 anos em situação análoga à escravidão na casa do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Jorge Luiz de Borba. Ela não recebia salário, não tinha folga, era vigiada constantemente. Quando finalmente foi resgatada, a Justiça determinou que ela fosse “devolvida” para a família do agressor. A palavra “devolvida” é cruel, mostra como esse sistema enxerga as mulheres negras como propriedade, como um objeto.
É nesse cenário triste e desafiador que surge a pergunta: é possível falar em Reparação Histórica para essas mulheres? A resposta exige que se entenda que o trabalho doméstico é fundamental para o funcionamento da sociedade e precisa ser valorizado como tal. Isso inclui acesso à educação, aposentadoria justa, moradia digna, reconhecimento dos saberes acumulados ao longo da vida. Mas também inclui escuta, representatividade e poder de decisão.
Aqui vale reforçar: o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão, em 1888. E, hoje, é o país com o maior número de trabalhadoras domésticas no mundo. Esses dois dados não são coincidência. Eles expõem como a cultura escravocrata segue impregnada nas relações sociais, especialmente na forma como patrões ainda tratam as trabalhadoras domésticas. O trabalho doméstico, vale lembrar, era uma das principais funções atribuídas às mulheres escravizadas. E não eram apenas os grandes senhores de engenho que possuíam escravizados: famílias de classe média também mantinham pessoas escravizadas, muitas vezes justamente para o serviço doméstico. Essa naturalização histórica da exploração ajuda a entender por que até hoje o trabalho doméstico é tão desvalorizado, precarizado e atravessado por relações de poder.
O Brasil precisa olhar com seriedade para o que significa justiça histórica. Isso passa por entender que não basta reconhecer que houve escravidão: é preciso enfrentar o que veio depois dela. A suposta abolição não foi seguida por inclusão, mas por abandono. Mulheres negras, como Laudelina de Campos Melo, pioneira na organização das trabalhadoras domésticas no Brasil, entenderam cedo que essa luta seria longa. Laudelina fundou, em 1936, a primeira associação de trabalhadoras domésticas, enfrentando de frente o racismo e o machismo institucionalizados.
Na construção coletiva da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, nacionalmente tem sido debatido com força o quanto a Reparação Histórica e o Bem Viver são urgências inadiáveis neste país. Mas para que a reparação aconteça de fato e para que o caminho do Bem Viver seja possível, o Estado brasileiro precisa garantir os direitos das mulheres negras que historicamente sustentam este país. Isso significa romper com a lógica de controle e exploração que ainda persiste, mesmo que hoje venha disfarçada de crachá e folha de ponto em vez de correntes.
O Brasil precisa escolher: continuar sustentando a casa-grande ou construir, de fato, um país justo. E essa escolha começa escutando quem foi historicamente silenciada.
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