OpiniãoOdara – 1 ano sem Bernadete Pacífico: Quem garante a proteção e a vida das mulheres negras defensoras de direitos humanos?
Há exatamente um ano, no dia 17 de agosto de 2023, recebemos com tristeza e indignação a notícia do assassinato brutal de Bernadete Pacífico, liderança quilombola da comunidade Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA). Naquela noite, Bernadete se encontrava na sede da associação do quilombo, junto a três netos, de 12, 13 e 18 anos, quando foi covardemente alvejada por 25 tiros em seu corpo, a maioria deles no rosto, sem qualquer chance de defesa.
O caso causou comoção e revolta nacionalmente, e se tornou mais um caso emblemático de homicídio contra uma mulher negra brasileira defensora de direitos humanos com repercussão internacional.
Os acusados pelo crime, Arielson da Conceição Santos, Marílio dos Santos e Sérgio Ferreira de Jesus irão a júri popular para responder por homicídio qualificado cometido por motivo torpe, de modo cruel, sem possibilitar a defesa da vítima e para assegurar a execução. Outros dois acusados, Josevan Dionísio dos Santos e Ydney Carlos dos Santos de Jesus, continuam foragidos.
Segundo informações do Ministério Público (MP), “Mãe Bernadete foi executada porque se posicionou de maneira firme contra a expansão do tráfico de drogas na região e especificamente contra a construção da barraca ‘Point Pitanga City’, ponto de venda de drogas de Marílio e Ydney, edificada pelo grupo criminoso na barragem de Pitanga dos Palmares de forma ilegal, uma vez que o local é área de preservação ambiental”.
Bernadete estava no programa de proteção à testemunha, executado pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, desde 2017, quando passou a receber ameaças após o assassinato de seu filho, Binho do Quilombo. Desde então, câmeras de segurança foram instaladas no entorno de sua casa e uma ronda policial foi designada para fazer a sua proteção. No entanto, ficou constatado que três das sete câmeras instaladas no local não estavam funcionando e que os policiais permaneciam no local por apenas 20 a 30 minutos por dia.
Bernadete tinha dimensão do risco que as ameaças representavam à sua vida e não se sentia segura, apesar do programa. Não à toa, menos de um mês antes do crime que a vitimou, ela se encontrou com a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, e na oportunidade falou publicamente sobre falta de respostas em relação ao assassinato do seu filho e denunciou as ameaças disparadas contra ela e sua comunidade por parte de “fazendeiros e outras pessoas da região”.
Violência Política de Raça e Gênero
O assassinato de Bernadete Pacífico é mais um caso – dentre os inúmeros que temos denunciado – que se enquadra na perspectiva de Violência Política de Raça e Gênero. A pesquisa “Na Linha de Frente: violência contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil“, desenvolvida pelas organizações Terra de Direitos e Justiça Global, identificou 1.171 casos de violência e 169 assassinatos cometidos contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil entre os anos de 2019 e 2022. A pesquisa mostra ainda que as regiões Nordeste e Amazônia são as que registram o maior número de violações e que pessoas negras representam 34% das vítimas em casos nos quais foi possível identificar a cor/raça.
A maior parte dos assassinatos registrados na pesquisa foram cometidos por agentes privados, como fazendeiros, garimpeiros e seguranças privados. No entanto, é comum observarmos a ocorrência de casos onde a violência é cometida pelo próprio Estado. Em 2010, outra defensora de direitos humanos e da luta por terra e território, Bernadete Souza, mãe de santo e coordenadora de educação do assentamento Dom Helder Câmara, em Ilhéus (BA), foi vítima de tortura e racismo religioso praticados por policiais militares. Na ocasião, ela foi agredida fisicamente, puxada pelos cabelos e jogada em um formigueiro enquanto estava incorporada pelo Orixá Oxóssi.
A Violência Política de Raça e Gênero, embora nem sempre praticada de forma direta pelo Estado, envolve a sua responsabilização a partir de vários aspectos. Primeiro, porque o Estado é incapaz de proteger e garantir a vida das ativistas. Segundo, porque não dispõe de políticas com enfoques específicos que consideram raça e gênero como fatores que potencializam as violências contra mulheres negras defensoras dos direitos humanos. Terceiro, por não priorizar uma abordagem jurídica que configure o crime de Violência Política de Raça e Gênero e responsabilize os autores por tal ato.
Mecanismos para a proteção da vida das mulheres negras
Recentemente, ao final de 2023, o Comitê de Peritas do Mecanismo de Seguimento da Convenção de Belém do Pará – MESECVI (Nº 5) “Violência de gênero contra as mulheres afrodescendentes” publicou um documento com recomendações que abordam as diversas violências sofridas por meninas e mulheres afrodescendentes na América Latina. O MESECVI é um importante mecanismo da Organização dos Estados Americanos (OEA) para monitorar os avanços realizados pelos Estados Parte no cumprimento dos objetivos consensuados através da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, realizada em 1994 e mais conhecida como Convenção de Belém do Pará.
O documento reconhece que: “O discurso de ódio baseado em raça e gênero aumentou com a ascensão das redes sociais digitais, aumentando as agressões e a violência simbólica contra mulheres afrodescendentes, especialmente ativistas e defensoras dos direitos humanos, que defendem publicamente sua identidade, corporeidade ou origem étnico-racial”.
Dentre as recomendações, o Comitê aponta que deve ser um dever do Estado adotar e fortalecer políticas para a prevenção da violência de gênero, abordando a interseccionalidade de raça e gênero e levando em conta o racismo como causa e fator agravante das violências, bem como adotar mecanismos para monitorar comportamentos discriminatórios. Em outra recomendação, o Comitê aponta ainda que deve ser incorporada a “abordagem interseccional de gênero e étnico-racial aos procedimentos de acesso à justiça, garantindo que os casos de violência sejam tratados em tempo hábil”.
Responsabilização do Estado brasileiro
O Brasil é o 4º país que mais mata defensoras e defensores de direitos humanos no mundo e vive um crescente no número de homicídios de mulheres negras. O Estado brasileiro precisa estar atento à adoção das recomendações do Comitê de Peritas da MESECVI, ao reconhecimento dos fatores de raça e gênero como potencializadores das violências contra defensoras de direitos humanos, além de reconhecer a Violência Política de Raça e Gênero como um crime que atinge e leva à morte de muitas mulheres negras que ousam lutar por uma sociedade sem racismo, machismo e tantas outras formas de violência.
As mulheres negras historicamente têm se colocado na linha de frente em defesa das suas comunidades e têm recebido a violência e a morte como resposta. Nossa luta é para que o nosso direito à vida seja garantido, para que, a partir dele, possamos lutar por todos os outros direitos. Queremos uma vida livre de ameaças e violências. Queremos lutar e construir o Bem Viver sem que o Estado nos mate ou limite o nosso acesso à proteção e à justiça.
Exigimos justiça por Bernadete Pacífico, que mesmo dentro de um programa de proteção à testemunha, foi negligenciada enquanto mulher negra e quilombola. Que mesmo não se furtando da denúncia pública sobre as ameaças contra a sua vida, teve sua voz silenciada por aqueles cuja ganância pela exploração da terra ultrapassa o respeito aos direitos das comunidades tradicionais construídas e ocupadas pelo povo negro.
Exigimos também a responsabilização do Estado brasileiro e a reparação por todas mulheres negras violentadas, silenciadas e mortas por defender direitos que deveriam ser garantidos pelo próprio Estado, para que suas lutas não sejam em vão e suas vidas não sejam banalizadas.
As vidas das mulheres negras não são descartáveis!
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