#OpiniãoOdara – O racismo como política de saúde pública: Mulheres negras seguem morrendo de causas evitáveis, adoecendo no luto e sendo ignoradas pelo Estado

Mesmo com leis e diretrizes, o Estado brasileiro continua falhando com a saúde da população negra
Os dados estão postos. No Brasil, nascer, viver e parir sendo uma pessoa negra, especialmente uma mulher negra, é correr risco constante. O sistema de saúde, que deveria garantir cuidado, segue sendo uma máquina que nega acesso e silencia as demandas da população negra.
Entre 2014 e 2021, mulheres negras tiveram a maior taxa de complicações graves no parto, como pré-eclâmpsia e eclâmpsia: 32,8 a cada mil partos, enquanto as mulheres brancas registraram 24,9. A situação se agrava quando olhamos para a mortalidade materna por hipertensão. Enquanto as mulheres brancas apresentaram queda nas taxas, as mortes entre mulheres pretas aumentaram 5% entre 2010 e 2020. A doença é conhecida, há tratamento, há prevenção. Mas, para mulheres negras, o cuidado chega tarde, ou não chega.
O cenário foi ainda mais cruel durante a pandemia de Covid-19. Em 2020, 63% das mortes maternas foram de mulheres negras. O que se chama de vulnerabilidade é, na prática, negligência do Estado. Nas Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST’s) e outras infectocontagiosas, o mesmo padrão: os maiores índices estão entre a população negra. E ainda há o agravante da culpabilização. A responsabilização individual disfarça a omissão do sistema. Fala-se em “comportamento de risco” para não falar de racismo, de abandono, de desigualdade histórica.
Além disso, a invisibilização da população trans e travesti e das meninas negras em políticas de saúde reprodutiva reforça que justiça reprodutiva, no Brasil, ainda é um discurso mais do que uma prática. Não há garantia de acesso, nem segurança, nem respeito. A falta de dados específicos sobre esses grupos não é acaso: é parte da estratégia de apagamento. Nós, do Instituto Odara, através do Nós por Nós – Observatório de Justiças Reprodutivas do Nordeste, no dossiê de lançamento do Observatório, rompemos com esse silêncio e denunciamos as injustiças reprodutivas vividas por meninas e mulheres negras. O Observatório coloca no centro da análise dos dados sobre os indicadores de saúde o impacto do racismo patriarcal na vida dessas populações, abordando suas trajetórias em relação ao direito à saúde, à maternidade desejada e digna, ao aborto legal, além de temas como violência obstétrica (no parto e abortamento), abuso sexual, mortalidade materna e dignidade menstrual.
E quando o adoecimento não é físico, mas mental, a violência continua. Só em 2024, o Brasil teve mais de 472 mil afastamentos do trabalho por problemas de saúde mental. As mulheres negras são as que mais sofrem e as que menos recebem suporte. São elas que enfrentam assédio, metas abusivas, jornadas exaustivas e invisibilidade. A saúde mental da mulher negra ainda é um tema negligenciado nas políticas públicas.
O luto das mulheres negras, especialmente mães que perdem seus filhos para a violência do Estado, também adoece. Em nosso dossiê, “Quem vai Contar os Corpos?”, revelamos que essas perdas causam danos físicos, mentais e sociais profundos. Muitas dessas mães desenvolvem hipertensão, diabetes, distúrbios de sono e sintomas depressivos severos após os assassinatos. O processo de espera por justiça, marcado por negligência e impunidade, prolonga o sofrimento e agrava o adoecimento. Qual a assistência pensada para essas mulheres?
Essas desigualdades também se manifestam na saúde bucal. O estudo “Associação entre iniquidades raciais e condição de saúde bucal: revisão sistemática”, publicado em 2024, mostra que a população negra apresenta as piores condições de saúde bucal do país. A situação é ainda mais grave entre comunidades quilombolas, que enfrentam altos índices de cárie, perda dentária, periodontite e uma insatisfação generalizada com a própria saúde bucal. O estudo aponta que essas condições não são apenas consequências do acesso precário ao atendimento odontológico, mas resultado direto da exposição constante ao racismo, que se soma a fatores econômicos e sociais.
A pesquisa também identificou uma associação entre a perda dentária e o baixo nível econômico, revelando como as desigualdades impactam a saúde de forma ampla e contínua. A saúde bucal, frequentemente negligenciada nas políticas públicas, é mais um reflexo da forma como o racismo estabelece uma cadeia de violências para manter a exploração, subalternização e controle da população negra. Como aponta o estudo, trata-se de uma “crueldade sistemática” que atravessa não apenas a vida, mas o corpo, os sentidos e o bem-estar dessa população.
A relação entre racismo e adoecimento também se expressa no câncer. Um estudo publicado na revista JAMA (Journal of the American Medical Association), realizado nos Estados Unidos, acompanhou durante 10 anos mulheres negras e brancas com câncer de mama e revelou que a discriminação racial, o estresse crônico e o isolamento social estão associados ao aumento de metástase entre mulheres negras. O racismo, enquanto fator biológico e social, ativa respostas inflamatórias no corpo e modifica o funcionamento do sistema imunológico, o que afeta diretamente a progressão da doença. No Brasil, o cenário é igualmente alarmante: segundo o Instituto Nacional de Câncer, mulheres negras têm 57% mais chances de morrer de câncer de mama do que mulheres brancas, em grande parte devido ao acesso tardio ao diagnóstico e ao tratamento pelo SUS. Mesmo sendo 80% dos usuários do sistema público, a população negra continua sendo a última a ser atendida — quando é atendida.
Conselho Nacional de Saúde
Dezoito anos após a aprovação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), o país ainda está longe de garantir esse direito. Embora aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde em 2006 e formalizada por portaria em 2009, a política segue sem implementação plena. Criada a partir da pressão dos movimentos negros, especialmente pelo movimento de mulheres negras, que denunciaram práticas como esterilização forçada, a PNSIPN deveria ser um instrumento de combate ao racismo no SUS. Na prática, segue sendo ignorada ou mal aplicada.
Em 2024, o Conselho Nacional de Saúde reconheceu os terreiros de candomblé como equipamentos de promoção de saúde e cuidado. Porém, tecnologias ancestrais negras para o cuidado da saúde não são reconhecidas e amplamente disseminadas no SUS como práticas capazes de restabelecer a saúde do corpo e da mente.
A PNSIPN parte dos princípios do SUS e reconhece o racismo como determinante social da saúde. Mas reconhecer não basta. O desafio está em garantir que o sistema público funcione para todos e isso não acontece enquanto o racismo seguir sendo a regra, e não a exceção. E haja processos de resistência nessa história: Nos anos 1980, o movimento negro já colocava o direito à saúde como pauta estratégica; Em 1995, surge o Grupo de Trabalho Interministerial para valorização da saúde da população negra; Em 2001, o Brasil assina a Declaração de Durban e, só cinco anos depois, aprova a política.
Falar em equidade na saúde sem enfrentar o racismo é continuar escolhendo quem vive e quem morre. É preciso romper com a lógica de que o cuidado é privilégio. Saúde é direito mas, no Brasil, ainda é um direito negado para corpos negros.
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