#OpiniãoOdara – Olhares Condicionados: A Semiótica Visual das Vítimas da Violência Estatal nas Mídias Hegemônicas e Policialescas

Não é apenas o braço armado do Estado que mata: a câmera da mídia racista também é uma arma precisa e cruel na destruição da nossa dignidade
Antes que o sangue negro seque no asfalto, ele já escorre pelas telas da televisão, nos horários sagrados do café da manhã e do almoço das famílias baianas, ou nos feeds e grupos de redes sociais. São os nossos corpos expostos como espetáculo. É preciso dizer sem rodeios: na Bahia, o sangue negro derramado pela violência estatal não seca, ele é renovado todos os dias, com aval do Estado e o silêncio cúmplice da sociedade.
E não para por aí. A mídia hegemônica, branca, racista, cumpre seu papel: assassina de novo, agora pela imagem, pela narrativa, pela memória. Não basta nos matar, é preciso também arrancar nossa humanidade, desfigurar nossa história, nos transformar em estatística ou em ameaça.
A imagem do corpo negro tem sido historicamente construída a partir de estigmas, estereótipos e silenciamentos. A análise da semiótica visual das vítimas da violência estatal revela que não se trata apenas de omissões editoriais, mas de um projeto narrativo que legitima o genocídio da população negra. A mídia tradicional, majoritariamente controlada por olhares brancos e masculinos, condiciona o público a ver a dor negra com indiferença ou suspeição.
Programas “populares”, como Alô Juca, Se Liga Bocão, Na Mira e tantos outros veículos policialescos da Bahia não informam, eles espetacularizam a morte negra. Eles não noticiam, eles os condenam.
Nestas telas que corpos negros mortos aparecem acompanhados de fotos pessoais fora de contexto, imagens que possam sugerir “periculosidade” para justificar a violência sofrida. Crianças negras assassinadas em operações policiais são retratadas como “efeitos colaterais”, enquanto seus rostos raramente ganham espaço e dignidade na cobertura jornalística. As mães negras, marcadas pela dor, são mostradas como personagens trágicas, mas raramente como protagonistas políticas em luta por justiça.
Essa construção semiótica reforça o mito da periculosidade das pessoas negras, desumaniza nossas histórias e nega o direito ao luto público. Nos jornais locais de Salvador é comum a exposição de fotos de jovens negros após operações policiais, mesmo sem condenação.
A mídia usa registros desses jovens em poses desfavoráveis: fotos de redes sociais com roupas simples ou fazendo gestos que podem ser interpretados como “ameaçadores” (como sinalizações manuais associadas erroneamente a facções). Essa escolha de imagem cria um signo visual que associa negritude e periferia ao crime.
A insistência em retratar corpos negros na morte, na suspeição ou no exotismo repete a mesma lógica colonial que via nossos ancestrais como corpos descartáveis ou espetaculares. A estética da violência policial ganha espaço nas imagens dos noticiários, enquanto a memória das vítimas é apagada. Essa lógica colonial e racista precisa ser urgentemente rompida.
Pouco se veem retratos afetivos dessas pessoas: fotos sorrindo, com a família, exercendo trabalhos, estudando. Essa ausência visual reforça o signo do “corpo descartável”, um conceito forte na crítica social e semiótica.
A Chacina do Cabula, em 2015, foi um marco brutal deste fenômeno. Doze jovens negros foram executados e, na cobertura da imprensa, seus rostos apareceram como suspeitos, mais uma vez. Foram mostrados corpos caídos no chão, fotos de redes sociais em poses informais, como se a juventude negra merecesse morrer por existir.
O mesmo recurso cruel foi usado no caso do menino Micael Silva Menezes, de apenas 12 anos, morto a tiros em 2020 durante uma operação da Polícia Militar no Vale das Pedrinhas. A mídia escolheu divulgar uma foto de Micael com cabelo pintado de louro, reforçando estigmas racistas e estetizando a marginalização do menino. Mais uma vez, a infância negra foi negada e substituída pela criminalização da imagem.
Em cada operação policial, como a do BOPE que ocorreu em abril de 2025 no bairro Rio Sena, que deixou cinco pessoas assassinadas, vemos a repetição do mesmo enredo: imagens aéreas que reduzem bairros inteiros a zonas de guerra, corpos deitados sem rosto, sem nome, sem vida. Para a mídia, as favelas são sempre “cenário de confronto”, nunca lar, aconchego, comunidade.
Recentemente, também em abril de 2025, com Ana Luiza Silva, a história se repetiu: a estudante universitária foi morta aos 19 anos no bairro da Engomadeira, em Salvador (BA), quando retornava da casa de uma amiga. Sua morte provocou indignação e protestos na comunidade.
Mesmo assim, a mídia escolheu ilustrar a cobertura do protesto com uma foto de Ana Luiza de biquíni e com um copo de cerveja na mão, um gesto editorial que revela muito mais do que descuido: revela a insistência em reduzir corpos negros, mesmo em sua dor mais legítima, a imagens estigmatizadas e hipersexualizadas.
O contraste se evidencia ainda mais quando olhamos para o caso de Larissa Azevedo, mulher branca, dentista, de 28 anos, morta após ser baleada durante um tiroteio na Avenida Paralela, em Salvador, no dia 14 de março de 2025.
Larissa seguia para o trabalho em um mototáxi quando foi atingida. A tragédia, sem dúvida dolorosa, foi amplamente noticiada com imagens dela em trajes profissionais, sorrisos serenos e legendas que reforçaram sua inocência, seus sonhos e sua trajetória de vida.
Esse tipo de cobertura é como deveria ser: respeitosa, humana, sensível. O que está em jogo, no entanto, é que esse mesmo respeito raramente é estendido às vítimas negras. Quando pessoas negras são atingidas, a imagem publicada costuma ser fora de contexto, criminalizante ou hipersexualizada.
A mídia escolhe, seletivamente, quem merece comoção e quem será retratado como suspeito, mesmo que tenha sido assassinado. O problema não está na dignidade concedida a Larissa, mas na dignidade negada sistematicamente a corpos negros. A escolha das imagens revela quem é autorizado a ter sua dor reconhecida, e quem continua sendo descartado até na memória. Para uns, luto; para outros, julgamento.
Essa cobertura midiática, além de cruel, opera como engrenagem fundamental na manutenção do racismo. Essas escolhas matam duas vezes. Primeiro o corpo; depois, a memória. Primeiro a carne; depois, a dignidade.
Contra essa máquina de assassinato simbólico, é urgente construir outra semiótica: aquela que reconhece nossas vidas como dignas, que resgata a humanidade roubada, que quebra o ciclo de imagens que alimentam a necropolítica. Não é apenas o tiro que atravessa os nossos corpos; é também o olhar distorcido que atravessa nossas existências.
Quando a mídia hegemônica molda a memória coletiva através da criminalização e da desumanização de nossas vítimas, ela também dispara contra o nosso direito de existir plenamente. Romper essa lógica é mais do que uma urgência: é uma exigência de vida.
Denunciar é necessário, mas também é preciso reconstruir: nossa resposta precisa ser a afirmação de outro projeto de sociedade, baseado na reparação e na construção do Bem Viver, onde nossas vidas negras e periféricas não sejam mais negociadas no espetáculo da morte, mas celebradas na plenitude dos direitos, da memória e da dignidade.
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