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Coluna Beatriz Nascimento #3 Polyana de Ruas

Durante os meses de agosto e setembro, veremos por aqui, a escrita insubmissa de mulheres negras na Coluna Beatriz Nascimento, uma exposição dos produtos das mulheres participantes da 3ª Turma da Escola de Ativismo e Formação Política para Mulheres Negras – Beatriz Nascimento e o terceiro produto é uma carta destinada às mulheres negras brasileiras e escrita pelas mãos da Polyana de Ruas.

A seguir, leia a carta na íntegra.

Barra da Estiva, 22 de julho de 2022

Polyana de Ruas Silva Carneiro

“É preciso saber de onde se vem, para saber aonde se vai.” Começo esse trabalho citando Beatriz Nascimento por uma primeira razão muito óbvia: a formação para o qual o realizo leva o seu nome. Mas não é somente por isso que escolhi começar por aqui, é certo que poderia citar qualquer um de seus ensaios ou poemas, pois, todos me tocam profundamente, mas quando Beatriz nos convoca a olhar para trás enquanto seguimos em frente, eu sinto vontade de viver! 

Ser negro é buscar cotidianamente meios de se manter vivo, não só pela violência direta que nos persegue e nos tira a certeza de ir e vir, mas também por esse continuo estado de banzo que adoece os nossos corpos e fragiliza nossa psiquê. 

Enquanto pesquisava Beatriz, descobri que ela havia passado por “questões de saúde mental” em alguns de seus poemas, pude encontrar essa Beatriz adoecida que buscava formas de se manter viva. Em “Rocio” poema escrito em 1984, ela descreve a alegria de sentir-se ela mesma depois de muito tempo: 

Feliz por esta oportunidade. De me sentir curada. Em todas as

minhas forças […] Sem neuroses. Sem medo. Minha mente em paz.

Minha vida ressurgida […] Como há muito não acontecia. 

Minha beleza original. Sem pressa de nada. (RATTS et al., 2015, P.32)

É certo que me identifico com muitas faces de Beatriz, a mulher, a negra, a estudiosa, a poeta… Mas é na Beatriz que lutou contra sua própria mente que me mantenho curiosa, não só porque também luto cotidianamente para não me deixar ser vencida pela perversidade dos meus pensamentos acerca da minha própria existência, mas também porque quando uno “Beatriz Nascimento e saúde mental” nas minhas pesquisas, tudo que encontro é muito pouco.

Não sou da área da psicologia e portanto, não cometerei o desrespeito de entrar num campo ao qual não faço parte, no entanto, não é preciso ser especialista na área para saber que numa estrutura que nos obriga a estarmos constantemente em estado de alerta e nos diz todos dias de diferentes maneiras que nossa vida não vale nada, ter uma boa saúde mental não é uma coisa simples.

Não venho de uma realidade fácil, ainda assim, tive alguns acessos que a maioria das pessoas que vieram dos mesmos lugares que eu não tiveram, um deles foi praticar yoga ainda na adolescência. Trabalhava na recepção de um estúdio em troca de aulas gratuitas e quando tive possibilidades financeiras, decidi que iria ser professora também, além de adorar as práticas, havia uma outra razão: nas aulas que participava, não havia gente como eu. 

Queria ser professora para servir a minha comunidade, mais que um meio de viver, desejava democratizar os espaços, missão difícil, mas não tanto para quem se compromete com uma agenda. Junto com o acompanhamento psicológico, praticar Yoga foi o que me salvou de mim muitas vezes, queria, portanto, ser o veículo para que outras pessoas pudessem encontrar algo parecido, ser de alguma forma o veículo para que mais pessoas como eu pudessem ter a oportunidade de sentir “o que existe da pele pra dentro”. Cito o Yoga porque é o que eu vivencio, facilito práticas há pelo menos quatro anos e pratico há muito mais do que isso, mas não é sobre Yoga esse trabalho e sim sobre Beatriz e o desafio de se manter saudável vivendo contínuas situações de violência.

É terrível ser uma pessoa negra nesse país e é dilacerante ser uma pessoa negra consciente de que vive nesse país. Quando digo que ler Beatriz me trás a vontade de viver estou falando também sobre os meus meios de não ser consumida pela tristeza e pânico que me espreitam e atacam ao meu menor sinal de distração. Tudo que eu desisti e tudo que eu conquistei tem um preço. 

Tudo que Beatriz, e outras mulheres negras intelectuais produziram e produzem também tem e muitas vezes esse preço é pago nas noites mal dormidas, nas crises de ansiedade, na alimentação comprometida, na conta dos antidepressivos que aqueles que nos enaltecem por sermos “fortes”, “corajosas” e “comprometidas com a causa”, jamais saberão. 

Quando nas minhas buscas procurei saber exatamente que tipo de doença mental acometia Beatriz e percebi a escassez das informações, tive dois pensamentos, o primeiro me animou: interessante que ela não tenha tido sua obra deslegitimada ou resumida a isso. O segundo me inquietou: que tipo de reconhecimento é esse que não nos humaniza? Que nos leva ao limite da exaustão e sanidade e quando isso acontece nos oferece a solidão de enfrentarmos tudo isso sozinhas? “Há prisão na liberdade.

Chama-se solidão que os demais nos criam. O corpo sólido no espaço, quente ou frio ao redor. Sou o meu próprio nó….!” Agradeço por Beatriz ter continuado apesar das suas dores, não fosse isso não estaria hoje aqui escrevendo em seu nome, vendo nela tantas de mim, mas anseio que outras de nós possam ter onde se amparar, quando as dores forem maiores que a gente.

Se é importante saber de onde se vem, para saber aonde se vai e isso me resgata o frisson de viver. Quero ter a certeza de que poderei seguir em busca da nossa emancipação estando inteira para que possamos viver nosso oásis saudáveis e plenas. Se minha voz importa altiva, que me ouçam também quando eu disser a partir dos meus silêncios e/ou desistências que preciso descansar.

Finalizo agradecendo pela oportunidade de viver essa formação que carrega o nome de Beatriz, foram dias intensos e de muita alegria. Acredito que quando Vilma Piedade nos convida a repensar o termo sororidade e nos apresenta dororidade como alternativa de abarcar a nossa pretitude e as dores que nós mulheres negras temos em comum, ela também está nos convidando a criar espaços seguros onde nossas dores sejam legitimadas e nossas potencialidades afloradas, e, sem dúvidas, o Instituto Odara e a formação Beatriz Nascimento materializam esse ideal.

REFERÊNCIA

RATTS, Alex; GOMES, Bethania (org.). Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento. São Paulo: Editora Ogum’s Toques Negros, 2015. 

Polyana de Ruas tem 24 anos e mora no interior da Bahia. Mulher, negra, favelada, bissexual e muito bem posicionada a esquerda. Professora de Yoga, feminista negra, escritora e defensora-estudiosa da cultura periférica. Atualmente, conduz projetos de práticas de bem estar coletivo e consciente em espaços marginalizados de maioria preta e pobre.

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