Coluna Beatriz Nascimento #5 – 2ª Temporada: Mara Pereira dos Santos
Durante os meses de maio a julho, veremos por aqui, a 2ª edição da Coluna Beatriz Nascimento: uma exposição de produtos e pensamentos das mulheres participantes da 4ª Turma da Escola de Ativismo e Formação Política para Mulheres Negras – Beatriz Nascimento. E o quinto produto desta temporada, é um poema chamado “Silêncios”, produzido por Mara Pereira dos Santos.
A seguir, veja o poema na íntegra.
SILÊNCIOS
Mara Pereira dos Santos
Hoje eu estou livre como se tivesse ar nas veias.
Beatriz Nascimento
Uma mulher preta sozinha.
Uma mulher preta sozinha na rua.
Uma mulher preta com uma criança em uma cidade do extremo norte do Brasil.
Caminho só, a olho nu.
Com olhos de ver é possível sentir a multidão.
A Escola Beatriz Nascimento me acompanhou em muitas andanças, entre a escola do meu filho e a nossa casa.
Muitas aulas assistidas pelas ruas. Uma escola na rua.
Enquanto ouvia e andava, Exus e Pombo-Giras (em)caminhavam.
Cura poder ouvir tantas vozes, tantos sotaques de Norte e Nordeste.
Morar no Norte com sotaque do Sudeste diz muito sobre a importância do silêncio muitas vezes.
Muito a dizer, mas também muito e muito mais a ouvir e aprender.
Aprendo muito com meu silêncio audível. Minha presença preta de cabelo crespo, ultra-visível.
Não caminhamos sós e, por isso, aprendemos bem – com o tempo –, o tempo de cada coisa.
E que nesses caminhos feitos aprendemos a calar.
Não um calar de opressão. Ele existe. E sim. E muito.
Mas aqui um calar de respeito, de gratidão, de aprender com outres e também de ensinar, sem ter que necessariamente falar.
A fala tida como libertadora bem o é quando acompanhada de insubmissão. Enquanto insubmissas que somos, o silêncio é um desafio.
Silêncio-insubmisso é diferente de silêncio-cansaço, silêncio-dor, silêncio-medo, silêncio-morte, silêncio-indiferença. Ora podem até se encontrar, ora se distanciam.
Silêncio-insubmisso pode ser silêncio-descanso, silêncio-desejo, silêncio-melodia, silêncio-sorriso, silêncio-bonito, silêncio-estratégia, silêncio-política, silêncio liberdade.
A simples e confortável vontade de silenciar, sem que isso signifique incapacidade de fala. Sem que isso seja uma armadilha colonial, um disfarce de decisão tomada por quem silencia. Mas sim, a necessidade da quietude, da calma, da cautela, da pausa. Já tendo passado por tantos desafios. A vida tem sido intensa. Desde sempre. Desde algumas vidas anteriores nossas e de nossas ancestrais nas quais não tivemos sossego algum. Aqui estamos agora para falar-silenciar. Sobre nossas dores, amores, trabalhos, memórias, famílias, sonhos, alegrias, conquistas, (des)encontros. A certa altura da vida, ela nos concede alguns desejos sendo realizados e a necessidade de aprendermos algumas estratégias de sobrevivência. E uma delas é o silêncio. Escrevo com ele como se escrevendo com um amigo, um companheiro, um parceiro, a quem muito tenho agradecido.
O que nos ensina o silêncio em contextos de debates sobre nossos lugares de fala? Quem/o que silencia quem/o quê?
Grada Kilomba conversa sobre isso quando se refere ao ambiente de uma sala de aula universitária questionando quem sabe o quê, quem responde sobre o quê. Adianto um pouco mais e trago algumas incongruências, respostas enviesadas que apontam que sobre determinados assuntos que são de conhecimento de pessoas pretas, nós podemos responder com o corpo, com afirmação. Se os conhecimentos são não pretos, podem ser respondidos por outres e por nós. Corpos, mentes, histórias e memórias diferem. A hierarquia colonialista ensina o acanhamento de umas e o descaramento de outras. A nós, cabe subvertê-la. Sempre.
O silêncio como respeito tem me interessado. Respeito a mim mesma. Sem egoísmo. Sem afetações descabidas. Sem tempo a perder. Sem medo, mas com a vontade plena de viver plena e ser quem eu tenho que ser. Eu mesma. Mas quem sou eu mesma. É por vezes no silêncio que hei de saber. É preciso saber.
O caminho é duro e bonito. Inesperado. Aprendizado. Aprendizado. Aprendizado.
Acabo por silenciar mais que o esperado por mim e por outras. Mas, sim, se faz necessário.
Não por vingança, despeito, nem lição a ser dada. Quem decide não sou eu, mas ao mesmo tempo eu mesma. Meu caminhar.
Penso que algum dia tudo será explicado. Ou já esteja sendo sem que eu saiba ou tenha certeza.
Há uma escrita sendo traçada na história. Penso que ao ser bem velhinha ela será uma linda e bela memória, mas agora é trabalho. Em silêncio. No tempo da vida e das coisas. Tempo da terra, da dança nela, das manifestações divinas pretas, afrodiaspóricas e indígenas. Nas conclusões inconclusas, nas veemências dos ventos e das mortes a cada esquina.
O silêncio como respeito tem me interessado.
O silêncio como opressão tem sido debatido por muita gente, como o artista visual Yhuri Cruz, que, com Anástácia Livre (2019), liberta a todas nós das máscaras de silenciamento e confirma socialmente nossa imagem no patamar de seres falantes, opinantes, autônomos, capazes de argumentar, falar, ler, escrever com o pretuguês que Lélia Gonzalez nos dá a certeza de não nos envergonharmos, mas de assumi-lo enquanto possibilidade linguística em um país massacrado pelos nossos corpos chicoteados, nossas línguas assassinadas e nossas mentes cooptadas, mas que assim como a Flor de Lótus, somos capazes de manter nossa beleza e inteireza em diálogo com a beleza do lodo, da lama, dos organismos do lamaçal. Somos ambas. Mesmo sendo tão diferentes e tão próprias à cura, e que enxerguem a beleza só de uma delas, classificando a pretura da outra enquanto sujeira e podridão, nesta, nós vemos Nanã, vemos sabedoria e insumos para a prática poética-política libertadora. Nas águas, mesmo que parecendo paradas, vemos movimento, insurgência e insubmissão. Sempre. Já temos dito.
Se políticas de desconstrução, de desconfiguração do imaginário social se fazem também pela substituição de imagens, Anastácia Livre (2019) adentra os livro didáticos, a TV, os museus, os livros, revistas, sites de arte, os “santinhos” e (des/re)faz o imaginário social posto sobre nós enquanto inadequadas. Tira a máscara e reitera a nossa a decisão de falar ou não, diante do que nos cabe individualmente, coletivamente e daquilo que é preciso ser feito. Sendo que sozinhas, completamente sozinhas, não caminhamos, não.
É preciso ter ouvidos de ouvir os passos. Ter olhos de ver. Ter passos para dar e assim continuar caminhando. Entre a escola e a casa, a casa e a escola, nas ruas desse país afora. Na certeza de que se o silêncio por hora se faz necessário, pode ser por autocuidado, por autoamor, por estratégia. Política.
Axé!
Roraima, 15 de novembro de 2022.
Quem é Mara Pereira?
“Mulher preta, neta, filha, irmã, mãe, educadora, escritora, artista, curadora e gestora em conversa com a ancestralidade. Criadora e realizadora da Biblioteca Comunitária Alecrim. Interessada em conhecimentos africanos, afrodiaspóricos e indígenas; infâncias, crianças e relações étnico-raciais; arte-cultura-saúde-educação ancestrais; encontros, imagens, palavras, livros; nos fazeres com as mãos que envolvam comidas, terras, águas, pedras, fogo, ventos, aromas, escritas, tarot, arte, artesanato, benzimentos, folhas das árvores, das plantas e das ervas; bichos, matas, florestas, montes, rios e mares. Mestra em Artes Visuais (PPGArtes-UERJ), especialista em História da Arte e Arquitetura no Brasil (PUC-RJ) e Graduada em Produção Cultural (UFF).
Há vinte e cinco anos atuando no campo da educação, da arte e da cultura. Fui idealizadora, coordenadora e curadora do projeto Erù-Iyá: movimentos antirracistas; educadora no Paço Imperial, CCBB-RJ, MAC-Niterói; coordenadora pedagógica no CCBB-RJ; coordenadora de ações e conteúdo no Núcleo Experimental de Educação e Arte – MAM-RJ; educadora-supervisora no Museu de Arte do Rio; coordenadora de educação na Fundação Eva Klabin e na Biblioteca Parque Estadual, dentre outras instituições e projetos. https://linktr.ee/marapereiras”