Racismo na saúde: da esterilização às mortes maternas

Por Vinícius Martins

O termo racismo institucional foi definido pela primeira vez pelos integrantes dos Panteras Negras (EUA), Stokely Carmichael e Charles Hamilton em 1967, no livro Black Power: the politics of liberation in America.

Segundo os autores, “trata-se da falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica”. No Brasil a ideia é apresentada pela pesquisadora do campo da saúde e diretora executiva da Anistia Internacional, a médica Jurema Werneck.

Para ela, o racismo institucional é “um modo de subordinar o direito e a democracia às necessidades do racismo, fazendo com que os primeiros inexistam ou existam de forma precária diante de barreiras interpostas na vivência dos grupos e indivíduos aprisionados pelos esquemas de subordinação deste último”.

A história da população negra no Brasil conta com diversos exemplos de racismo institucional. Para além dos conflitos urbanos, as desigualdades econômicas e sociais geram violações em diversos campos.

“O Estado brasileiro é racista. As instituições públicas e privadas agem para excluir e para negar direitos. Nós estamos falando de racismo institucional e ele ocorre em todas as áreas, seja na saúde, na educação, na cultura, na segurança, na economia”, afirma Lucia Xavier, coordenadora geral da ONG Criola, organização que busca igualdade e garantia de direitos para mulheres negras brasileiras.

No Brasil, a saúde pública é uma das áreas que exemplificam o racismo nas instituições. Episódios e práticas de controle da população negra brasileira são indicadores das desigualdades do país, com efeitos negativos até hoje, sobretudo no direito à maternidade para as mulheres negras.

A esterilização como política pública, as negligências no acompanhamento do sistema público e a dificuldade no acesso a serviços qualificados amplificam essa questão.

Do branqueamento à esterilização

A eugenia, adotada historicamente no Brasil, marcou a história do país sob várias formas. Uma delas se deu no controle do crescimento populacional da comunidade negra e pobre, desde a tentativa de eliminá-la completamente ou controlar seu crescimento.

O fim da escravidão expunha um Brasil majoritariamente negro, comandando por uma elite branca minoritária numericamente. Os antigos líderes republicanos do país tinham medo de que algo semelhante às revoltas haitianas acontecessem no Brasil. Como forma de controlar e eliminar a população negra, entrou em cena o ideal de branqueamento.

Em 1911, no I Congresso Internacional da Raças, o Brasil enviou João Baptista de Lacerda, diretor do Museu Nacional à época, como delegado oficial do país para acompanhar o evento em Londres, na Inglaterra.

Lacerda apresentou ao resto do mundo um dos projetos racistas mais ambiciosos do mundo: eliminar a população negra e indígena do Brasil até 2011, através da miscigenação, imigração controlada e outra políticas públicas. As teorias científicas daquele momento acreditavam que a superioridade genética dos brancos iria prevalecer e, assim, o fenótipo negro desapareceria do país em 100 anos.

O branqueamento se converteu em políticas públicas. De acordo com a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, em 1921, os então deputados federais Andrade Bezerra e Cincinato Braga elaboraram um projeto no Congresso Nacional que proibia a imigração de “indivíduos humanos das raças de cor preta”.

Na mesma época, o deputado Fidélis Reis propôs um projeto semelhante, mas que também fosse capaz de limitar o percentual de “amarelos” no país. Entre vários outros dispositivos legais adotados para implementar o branqueamento brasileiro, o decreto-lei 7967 de 1946 foi um dos mais importantes.

A partir daquele momento a legislação determinava que “os imigrantes serão admitidos de conformidade com a necessidade de preservar de desenvolver o Brasil na composição de sua ascendência europeia”.

A entrada de imigrantes brancos europeus no Brasil no período que sucedeu a abolição da escravidão até os anos 50, consolidou a ideologia de branqueamento no país. Estima-se que quatro milhões de novos imigrantes brancos tenham chegado ao Brasil nesse período.

Nesse mesmo contexto, convivia com o branqueamento o pensamento pró-natalista. Gerar novos brasileiros era muito bem visto socialmente. Em 1940, o número médio de filhos por mulher no Brasil era de 6,5 pessoas. Estima-se que o período pró-natalista no Brasil foi da independência do país até 1965.

lacerdaCrueldade inacreditável da esterilização

Em meio a inevitável falha do ideal de branqueamento da população brasileira, entra em cena, também, uma nova ordem de pensamento na política de natalidade brasileira e novos métodos de limitação da população negra e pobre: a esterilização.

“No mundo a esterilização de populações negras foi uma realidade. O surgimento de tecnologias reprodutivas na década de 60 ampliou as ações eugênicas e estratégias de controle das populações indesejáveis com a limitação compulsória da fecundidade das mulheres negras, indígenas e asiáticas”, comenta Emanuelle Goes, enfermeira e coordenadora do Programa de Saúde das Mulheres Negras – Odara Instituto da Mulher Negra.

O golpe civil-militar de 1964 abriu caminho para a influência dos EUA no Brasil. O estreitamento de laços entre os dois países estabelece a aproximação e o aumento da influência de órgãos e empresas estrangeiras em terras brasileiras.

“O Brasil, povoado majoritariamente por indígenas e afrodescendentes, viveu um forte movimento eugenista que influenciou a adoção de práticas extraoficiais de esterilização de mulheres, a maioria delas negras, indígenas, pobres”, afirma a médica e pesquisadora Jurema Werneck.

A International Planned Parenthood Federation (IPPF) e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) foram algumas das organizações a atuar no Brasil a partir desse período. As instituições tinham como objetivo financiar e divulgar programas e projetos de ideologia controlista voltados para países em desenvolvimento, como é o caso das nações de latino-americanas, africanas e asiáticas.

Durante os primeiros anos do regime, vários grupos sociais divergiam no país a respeito da melhor forma de lidar com o planejamento familiar no país. Haviam grupos que defendiam o controle demográfico como forma de acelerar o desenvolvimento brasileiro.

Por outro lado, os militares, a igreja católica e os movimentos de esquerda concordavam que era inviável controlar a natalidade no Brasil. As Forças Armadas acreditavam de que era necessário manter a ocupação do território nacional, e manter a natalidade alta era um caminho para isso. A igreja era contra a intervenção humana e controladora na geração de novas vidas. As esquerdas consideravam o controle populacional uma interferência direta dos EUA no Brasil e uma ameaça à soberania nacional, como um empecilho ao desenvolvimento do socialismo na América.

Ainda assim, a atuação de organismos internacionais foi inevitável. A partir da IPPF, um grupo de médicos obstetras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), liderados por Otávio Rodrigues Lima, fundaram no Brasil a Sociedade de Bem-Estar Familiar no Brasil (BEMFAM).

Essa organização não-governamental atuou principalmente nos anos 70, influenciando diretamente na lógica de planejamento familiar em municípios do interior do país, principalmente na região Nordeste.

Nesse período, setores do exército passaram a ver o planejamento familiar forçado como uma arma eficiente contra a principal ameaça ao Brasil, as convulsões sociais internas. Para eles, uma família grande tinha mais possibilidades de se sentir insatisfeita em relação às necessidades sociais básicas. Assim, a probabilidade dessas pessoas se juntarem à perturbação da ordem social era maior.

Na mesma época, a igreja católica muda de postura, alegando que um planejamento familiar poderia ser feito, desde que se utilizasse métodos naturais para isso. A aceleração da industrialização e da urbanização no Brasil também torna-se um fator determinante.

O Brasil deixa de ser um país rural. Em 1950, 36% da população nacional vivia em cidades. Na década de 1980 esse percentual passa a ser de 68%.

“A BEMFAM – Sociedade Civil Bem Estar Familiar no Brasil – é o exemplo mais emblemático como a organização não governamental que apoiava o Brasil para o controle de natalidade atuando nos municípios com distribuição de métodos contraceptivos hormonais, sobretudo em bairros populares e periféricos, locais com maior concentração da população negra”, afirma Emanuelle Goes.

Por ser uma ONG, a BEMFAM atuava no território nacional sem qualquer tipo de fiscalização. A organização firmou convênios com municípios e entidades comunitárias que utilizava métodos de planejamento familiar sem adotar critérios de saúde adequados.

Debate sobre realidade das mulheres negras brasileiras na Câmara em 2015 (Foto: Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

Ainda na década de 70, outro órgão passa a compor o contexto do planejamento familiar brasileiro. É criado no Rio de Janeiro o Centro de Pesquisa e Assistência Integrada à Mulher e à Criança (CPAIMC). A entidade treinava médicos para a execução do planejamento familiar a partir de laqueaduras tubárias, método anticoncepcional definitivo que causa interrupção no trajeto de ambas as trompas.

A CPAIMC também tinha larga influência nas escolas de medicina e nos departamentos de ginecologia e obstetrícia, sendo capaz de ampliar o alcance do seu modelo de planejamento familiar.

Entre os anos 1970 e 1980, o número de mulheres esterilizadas cresceu significativamente. De acordo com o IBGE, antes de 1970 haviam cerca de 312 mil mulheres esterilizadas no país. Em 1992, 45% de todas as mulheres brasileiras em idade reprodutiva estavam esterilizadas.

“O que se via era que a cirurgia de esterilização – procedimento caro, sofisticado se comparado aos usos de camisinha, pílula ou qualquer outro método anticoncepcional – era disponibilizada para mulheres negras e indígenas, das áreas mais pobres, e que não tinham acesso às informações adequadas e a métodos seguros de prevenção de gravidezes indesejadas”, afirma Jurema Werneck.

A pesquisadora complementa que as cirurgias de laqueadura eram oferecidas de forma irresponsável para mulheres, muitas vezes a partir de informações falsas.

“Diferentes organizações e até o serviço público ofereciam a elas a cirurgia, sem informarem dos riscos e, algumas vezes, com a falsa informação de que poderiam desfazer a esterilização quando desejassem”, explica.

Socialmente a esterilização também determinava o acesso de mulheres a serviços e empregos. Em algumas regiões do país também foi utilizada como moeda de troca por votos e influência nas áreas mais pobres.

“Muitos empregadores passaram a exigir um “atestado de esterilização” para candidatas ou empregadas, além de políticos oferecerem a cirurgia em troca de voto”, afirma Jurema Werneck.

CPI e nova lógica de planejamento familiar

Em 1992, uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso Nacional investigou os processos de esterilização no país e seu uso eleitoreiro no Brasil, bem como a atuação de organismos internacionais nesse contexto. A comissão foi presidida pela deputada Benedita da Silva e teve relatoria do senador Carlos Patrocínio.

O documento faz uma extensa análise dos contextos sociais, políticos e econômicos dos diversos atores sociais envolvidos no planejamento familiar brasileiro entre as décadas de 1970 e 1980.

Participaram das discussões 15 senadores e 15 deputados federais além de movimentos sociais e instituições estaduais da área médica e da área política, durante um ano de investigações e debates.

O relatório final da CPMI constatou que o país dispunha de uma baixa oferta de métodos contraceptivos alternativos e seguros para as populações de baixa renda no Brasil. A comissão também confirmou a atuação de clínicas de planejamento familiar, financiadas por órgãos internacionais, em um ambiente de poucas políticas públicas para a saúde reprodutiva no Brasil.

Para Jurema Werneck, a CPMI foi importante para denunciar de que modo o racismo afetou a vida de mulheres negras pobres no Brasil

Benedita da Silva presidiu a CPMI que apurou os casos de esterilização de mulheres negras no Brasil (Foto: Senado Federal/Wikimedia Commons)

“A CPMI reverberou e investigou uma denúncia feita por mulheres negras através de suas organizações. A Deputada Benedita da Silva, também mulher negra, teve forte influência na instalação desta Comissão”, relata.

Ela também acredita que a CPMI ajudou a ampliar o debate em áreas ligadas aos direitos humanos e às crenças do movimento feminista da época.

“Foi uma oportunidade de abordar os temas de anticoncepção, direitos das mulheres, etc, apontado o impacto do racismo nesta área e rediscutindo também a crença do movimento feminista de que a esterilização significaria liberdade”, explica.

E completa que para negras e indígenas a contracepção não aconteceu pelo viés da liberdade e, sim, através de uma imposição: “ao contrário, foi possível demonstrar que não havia escolhas para as mulheres negras e indígenas e sim, muitas vezes, processos que forçavam a esterilização”.

Saúde e mulheres negras atualmente

Por recomendação da CPMI, foi aprovada em 1996 a Lei do Planejamento Familiar (Lei 9263/96) que estabelece direitos e garantias para a constituição familiar no país. A legislação proíbe qualquer tipo de controle demográfico e passa a regular o uso da esterilização.

Além disso, garante acesso à assistência à concepção e contracepção, ao atendimento pré-natal, assistência ao parto e o controle de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). A lei também estabelece parâmetros para a fiscalização de entidade públicas, privadas e filantrópicas que atuam no setor de planejamento familiar do país.

No entanto, o setor de saúde do Brasil ainda tem algumas questões em aberto, sobretudo no que diz respeito ao cuidado de mulheres negras e à maternidade. Apesar da Lei de Planejamento Familiar garantir assistências para a maternidade de mulheres brasileiras, as estatísticas revelam algumas deficiências no país.

“As mulheres negras são atingidas em todos os níveis no campo da saúde, mas a saúde reprodutiva tem uma condicionante que por meio da reprodução pode controlar e/ou eliminar a população negra”, afirma a pesquisadora Emanuelle Goes.

(Imagem: Ministério da Saúde)

Informações oficiais também mostram que a mortalidade materna afeta majoritariamente as mulheres negras. Do total das mulheres acometidas pela morte materna 62,8% são negras. Segundo a Fiocruz, as mulheres afro-brasileiras são as maiores vítimas de violência obstétrica. Do total, 65,9% são mulheres negras.

“No caso da morte materna, nós consideramos uma expressão do sexismo e do racismo, porque sendo essa mulher negra alguém que tem uma representação negativa na sociedade, as pessoas vão tratá-las como tal. Então, não vão ouvir suas queixas, não vão dar resolubilidade em relação ao problema que ela apresenta. Em alguns casos vão castigá-las, deixando esperar, humilhando, ofendendo e negligenciando no atendimento”, afirma Lucia Xavier, coordenadora da ONG Criola.

Em relação ao aleitamento materno, apenas 62,5% das mulheres negras afirmam terem recebido informações sobre a prática, enquanto 77% das mulheres brancas puderem acessar informações.

No âmbito regional, casos como o do estado de São Paulo, reproduzem a mesma lógica. De acordo com informações da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE) de SP, a média de mortalidade materna entre 2002 e 2004 foi de quase 2200 mulheres entre 25 e 39 anos.

Desse total, mulheres negras morreram quatro vezes mais se comparadas às mulheres brancas. Mais de 1700 negras morreram em consequência de causas maternas no estado de São Paulo nesse período.

No Estado da Bahia, região com a maior concentração de negros e negras do país, o acesso aos serviços de saúde em nível “bom” é de 15,4% para mulheres brancas, enquanto o percentual para as negras corresponde a 7,9%.

“Há um debate complexo de que a sociedade valoriza a maternidade, mas na prática não para esse grupo [de mulheres negras e pobres]. Para esse grupo, a maternidade é compreendida como um problema: aumento da população, da pobreza, e se quer controlar o máximo possível a natalidade desse grupo”, afirma Lucia Xavier.

Para a enfermeira e pesquisadora Emanuelle Goes, o racismo é o principal fator que determina a forma e os processos de cuidados de mulheres negras na área da saúde.

“No acesso aos serviços de saúde o racismo determina o processo de cuidado e adoecimento em que esperam mais para serem atendidas, recebem menos analgesia, levam menos tempo no atendimento, tem menos consultas de pré-natal e mais morrem de morte materna”, explica.

Em 2014, o Ministério da Saúde lançou a campanha “SUS sem racismo”. A iniciativa baseava-se em alguns dados recolhidos pela instituição que demonstravam diferenças no atendimento entre mulheres negras e mulheres brancas. O objetivo era combater o racismo no Sistema Único de Saúde brasileiro.

Segundo o ministério, uma das disparidades consistia no tempo de atendimento que os profissionais de saúde dedicavam aos dois grupos. Mulheres negras recebem em média menos tempo de atendimento que mulheres brancas no sistema de saúde brasileiro.

Mesmo sendo uma campanha baseada em dados e estatísticas objetivas sobre o cenário da saúde brasileira entre as mulheres, a iniciativa sofreu resistência de órgãos oficiais da medicina brasileira.

Como é o caso do Conselho Federal de Medicina (CFM). A entidade alegou à época que a campanha possuía um tom racista por desconsiderar “problemas estruturais que afetam toda a população”, ignorando o componente racial da discussão.

De acordo com Lucia Xavier, o atendimento de má qualidade para mulheres negras se enquadra no genocídio da população negra brasileira. Ainda que não exista o assassinato direto, a negligência e os problemas estruturais de cuidado afetam diretamente a vida dessa população.

“Nós consideramos a morte materna a partir do processo de genocídio. No caso da mulher negra, algumas dessas mortes poderiam ter sido evitadas, desde o momento que ela entra no pré-natal até o parto, a falta de informação, a negligência o uso dos sinais vitais para o acompanhamento, a definição da complexidade ou não da sua maternidade, se ela é de risco ou não”, afirma.

Questionado sobre as políticas disponíveis para o atendimento da população negra no sistema de saúde, o Ministério da Saúde reconhece as desigualdades étnico-raciais brasileiras.

O Ministério também diz que desde 2009 implementa medidas e recomendações elaboradas na Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: “Essa política tem como marca: o reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde. Seu objetivo é promover a saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e nos serviços do SUS”.

Fonte: Yahoo Notícias.

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